Sabedoria do Evangelho - Volume 3

CAPÍTULO 26

OPINIÃO DE HERODES



MT 14:1-2


1. Nessa época, ouviu o tetrarca Herodes a fama de Jesus.


2. e disse a seus cortesãos: "esse é João o Batista; ele despertou dentre mortos, e por isso os poderes operam nele".


MC 6:14-16


14. E Herodes o rei ouviu (porque o nome dele se tornava conhecido) e disse: "João o Batista despertou dentre os mortos, e por isso os poderes operam nele". 15. Outros diziam: "É Elias"; outros ainda: "É profeta, como um dos profetas".


16. Mas, ouvindo isso, Herodes dizia: "É João, que eu degolei, que despertou dentre os mortos".


LC 9:7-9


7. Ora, o tetrarca Herodes ouviu tudo o que foi feito por ele (Jesus), e admirouse, porque era dito por alguns:


8. "João despertou dentre os mortos", por outros: "Elias apareceu", e outros: "reencarnou um dos antigos profetas".


9. Disse, porém, Herodes: "Eu degolei João, mas quem é este de quem ouço tais coisas". E procurava vê-lo.

Além da ação pessoal de Jesus a pregar as Boas-Novas, houve um recrudescimento de fatos extraordinários, que se multiplicaram com a saída dos Emissários Dele, por diversas aldeias concomitantemente.

A fama de Jesus, em nome de Quem todos agiam, cresceu muito, estendendo-se tanto que chegou aos ouvidos do tetrarca daquela região.

As palavras de Herodes dão a perfeita impressão de que ele se convenceu da ressurreição de João Batista ressurreição" no sentido atual do termo, isto é, que o "morto" voltara a viver no mesmo corpo.

Herodes não se refere à reencarnação, conforme o notara já Jerônimo (Patrol. Lat. vol. 26, col.
96) com razão: Jesus tinha mais de trinta anos, quando João desencarnou.


* * *

Para fins de estudo, observemos o emprego dos verbos gregos nesses textos, e para isso analisemos antes os próprios verbos.

Aparecem dois; egeírô e anístêmi, ambos traduzidos correntemente com a mesma palavra portuguesa: "ressuscitar". Mas o sentido difere bastante de um para outro.

EGEÍRÔ, composto de GER com o prefixo reforçativo E (cfr. o sânscrito ajardi, que significa "estar acordado") tem exatamente o sentido de "despertar do sono, acordar", ou seja, passar do estado de sono ao de vigília. Era empregado correntemente com o sentido de ressuscitar, isto é, sair do estado de sono da morte, para o da vigília da vida. Para não haver confusão, acrescentava-se ao verbo o esclarecimento indispensável: egeíró ek (ou apó) nekrôn, "despertar de entre os mortos".


ANÍSTÊMI, composto de ANÁ (com três sentidos: "para cima", ou "de novo" ou "para trás") e ÍSTÊ-MI ("estar de pé"). De acordo com as três vozes, teríamos os seguintes sentidos:

a) voz ativa (transitivo) - "levantar alguém", "elevá-lo"; ou "tornar a levantar", ou então "fazer alguém voltar";

b) voz média - "levantar-se" (do lugar em que se estava sentado ou deitado, sem se cogitar se se estava desperto ou adormecido), ou "tornar a ficar de pé", ou "regressar" ao lugar de onde se viera;

c) voz passiva - "ser levantado por alguém", ou "ser posto de novo em pé", ou "ser mandado embora de volta".


Esse verbo, portanto, apresenta maior elasticidade de sentido que o anterior, podendo, inclusive, ser interpretado como "ressuscitar"; com efeito, não só a ressurreição pode ser compreendida um "despertar do sono da morte" (egeírô, que é o mais exato tecnicamente), como também pode ser entendida como um "levantar-se" de onde se estava deitado (o caixão); ou como um "tornar a ficar de pé"; ou como um "regressar ao lugar de onde se veio". No sentido de ressuscitar foi usado por Homero ("Ilíada",

24, 551), por Ésquiles de Elêusis ("Agamemnon", 1361), por Sófocles ("Electra", 139), etc.

No entanto, esse verbo anístêmi apresenta outro sentido muito importante, e que geralmente é desprezado pelos hermeneutas, que procuram esconder as ideias originais dos autores, quando não estão de acordo com a sua, e isso até em obras "cientificamente" organizadas (Não estamos fazendo acusações levianas. Para só citar um exemplo moderno, tomemos a obra "Lexique de Platon", publicada em dois volumes (1
964) pelas edições "Les Belles lettres" (portanto editora crítica, da qual se espera fidelidade absoluta ao original). Pois bem, nessa obra, preparada pelo padre Édouard des Places, jesuíta, não figuram anístêmi, nem egeírô, nem o substantivo anástasis, nem qualquer outra palavra que signifiqu "reencarnação" ...), e é o sentido de "reencarnar". Realmente, a reencarnação é um "levantarse" para reaparecer na Terra; é um "tornar a ficar de pé", e é sobretudo um "regressar ao lugar de sua vida anterior". Nesse sentido foi bastante empregado pelos autores gregos. Anotemos, todavia, que esse não era um verbo especializado nesse sentido, como o é, por exemplo, ensómatóô ou o substantivo paliggenesía. Numerosas vezes é usado, mesmo nos Evangelhos, com a simples acepção de "levantarse" do lugar em que se estava sentado (cfr. MC 3:26; LC 10:25; AT 6:9, etc.) .

Daí a necessidade de interpretar, pelo contexto, qual o sentido exato em que foi empregado.

Ora, nos textos em estudo, os três sinópticos referem-se à opinião de Herodes com o mesmo verbo egeírô (que sistematicamente traduzimos por "despertar", seu significado real e etimológico). No entanto, o próprio Lucas que empregou egeírô para exprimir a ideia de "ressurreição", nesse mesmo versículo 8, para exprimir o "regresso à Terra" de algum dos antigos profetas, muda o verbo, e usa aníst êmi... Então, não era a mesma coisa: João "ressuscitara", despertara do sono da morte; mas o antigo profeta "regressara à Terra", ou seja, em linguagem moderna, "reencarnara". E assim traduzimos, acreditando haver agora justificado nossa tradução afoita.

Para antecipadamente responder à objeção de que não havia esse rigor "literário" nos evangelistas, queremos chamar a atenção para o verbo usado com referência a Elias. Era crença geral que Elias não desencarnara, mas fora raptado num carro de fogo (cfr. 2RS 2:11). Ora, nesse caso especial, não podia ser empregado egeírô (despertar dentre os mortos), nem anistêmi (reencarnar); e de fato, nenhum dos dois foi usado por Lucas, e sim um terceiro verbo: epháne, isto é "apareceu".


* * *

A Herodes não ocorria outra explicação mais plausível, em vista dos "poderes" (dynámeis) espirituais que se manifestavam, e de cujos resultados assombrosos ouvia falar com insistência. Realmente, enquanto Jesus permanecera em Cafarnaum e adjacências, sua fama aí ficara adstricta ao pessoal mais humilde. Mas depois das excursões mais prolongadas, sobretudo após a ação conjunta dos doze emissários que se espalharam por muitas aldeias e cidades, os fatos começaram a atrair a atenção e admiração gerais, tanto mais que, durante sua existência terrena João jamais operara prodígios nem fizera demonstrações de curas, limitando-se seu ensino a falar e exemplificar.

Os "poderes" exprimem aqui (como em MC 5:30, em 1. º Cor. 12:10, 28, 29, em GL 3:5 e em HB 6:5) a faculdade, a força de realizar obras extraordinárias; e não as próprias obras em si mesmas (como em MC 6:2, em AT 2:22; AT 8:13 e AT 19:11, em 2. ª Cor. 12:12, em HB 2:4, etc.) .

Entretanto, a opinião de Herodes não foi aceita concordemente pelos cortesãos, já que alguns diziam que Elias reaparecera na Terra, e Jesus havia afirmado o mesmo em relação ao Batista, como lemos em MT 11:4-3 17:10-13, e em MC 9:9-13, garantindo a reencarnação de Elias na pessoa de João Batista; o mesmo também foi confirmado por Lucas (Lucas 1:17). Dizem alguns comentaristas ortodoxos (cfr. Lagrance, "Le Messianisme", cap. 6, pág. 210-213), que essa assertiva de Jesus se prende a uma "saída" do Mestre, para que Seus contemporâneos não Lhe objetassem que Ele não era o Messias, porque Elias não viera antes! Então Jesus "inventou" isso. Até esse triste papel é atribuído a Jesus, por Seus" representantes" na Terra, contanto que o pensamento deles não seja "atrapalhado" pelo ensino do Mestre!

Mas outras vozes fazem-se ouvir: trata-se de um profeta, como tantos já houve em Israel; e mais: "é a reencarnação de um dos antigos profetas" que teria regressado a seu povo, para reavivar o entusiasmo religioso. Não obstante essas opiniões, que pretendiam desviar o tetrarca de suas apreensões, Herodes insiste, amedrontado, em seu ponto de vista: "eu degolei (por "mandei degolar") João, mas ele voltou do meio dos mortos"... E procurava conhecer Jesus, para certificar-se da veracidade de seus temores, com a secreta esperança de que não fosse João... Mas só conseguiu esse intento por ocasião da condenação de Jesus (cfr. LC 23:8).

A atuação de Herodes é típica das personalidades ainda sem o contato íntimo com o Cristo: apavoramse com as experiências, temem o resultado de seus erros, supõem as mais absurdas coisas, olhando outras criaturas como abantesmas que as assustam. Obra do remorso que lhes estrangula o consciente e que, sufocado de um lado, surge de outro, como as cabeças da Hidra de Lerna.

A personalidade, que vive presa na materialidade, julgando real apenas o curto período de uma exist ência terrena, amedronta-se diante de qualquer ocorrência que lhe pareça comprovar uma sequência da vida após a cadaverização no túmulo. A voz da consciência fala em silêncio, mas nem por isso deixamos à e ouvi-la, pois é mais forte que os ruídos de que nos possamos cercar externamente para abafá-la.

Daí a necessidade absoluta de aniquilarmos não a consciência, mas a personalidade, mergulhando em busca do Cristo Interno que em nós habita. Só assim nos libertaremos do medo. O desconhecimento dessa verdade leva a esses paroxismos angustiosos, e como os involuídos só conhecem a personalidade, esta é temida.

Verificamos que Herodes não teme a realidade, mas aparências: não tem medo da individualidade eterna (que ele nem sabe existir), mas se apavora diante das personalidades palpáveis e visíveis (únicas que conhece). O temor do tetrarca refere-se a um reaparecimento da personalidade do Batista, entidade concreta que o aterrorizava. Assim, hoje, o ser imaturo teme a polícia, não o Espírito; tem medo das enfermidades e da morte, e não das consequências mais remotas de seus erros na existência seguinte.

Ao lado disso, comprovamos o medo pânico que os involuídos têm, naturalmente, do plano astral: dos fantasmas, das ameaças de espíritos atrasados, dos "lobisomens", etc., sem experimentarem o menor receio da Lei de Causalidade, tão rigorosa em seus efeitos, depois que "plantamos" as causas. Escondemse de um homem para que os não veja praticar más ações, e não se dão conta de que o Cristo Interno, habitando dentro deles, é permanente e silenciosa testemunha de tudo o que fazem, embora sozinhos, embora trancados num quarto à noite, embora apenas em pensamento...

Outro ponto ainda a considerar é que, nesses ambientes, os seres jamais ficam de acordo: cada um tem sua opinião, que procura fazer prevalecer acima da dos outros. Daí surgem as divergências, as discussões, as separações, surgindo sérias controvérsias que os tornam até inimigos, levantando-se perseguições de uns contra outros. Comportamento totalmente diferente ocorre no âmbito das individualidades cônscias de si: todos os grandes místicos, de qualquer religião ou seita, do oriente e do ocidente, dizem a mesma coisa, falam a mesma língua espiritual, qualquer que seja a época de sua vida terrena, acreditam nas mesmas verdades, unem-se ao mesmo Pai que em todo habita.