22. No dia seguinte, a multidão que permanecera no outro lado do mar, viu que ali não havia senão um barquinho, e que Jesus não entrara nele com seus discípulos, mas que estes tinham partido sós.
23. Chegaram, todavia, outros barquinhos de Tiberíades, perto do lugar em que tinham comido o pão, depois de o Senhor haver dado graças.
24. Quando, pois, a multidão viu que Jesus não estava ali, nem seus discípulos, entraram nesses barcos e foram a Cafarnaum, à procura de Jesus.
25. E, tendo-o encontrado no outro lado do mar, perguntaram-lhes: "Rabbi, quando chegaste aqui"?
5) o desfecho prático.
Os três primeiros versículos deste longo trecho de João, que se segue imediatamente à multiplicação de pães e de peixes, são um tanto confusos estilisticamente. Mas uma vez explicados o sentido torna-se claro.
A multidão que acorrera a Betsaida-Júlias e vira o extraordinário fato, e que ainda se achava insistentemente do outro lado do mar, tinha observado que só havia na praia um barco. Observara além disso que os discípulos haviam regressado nesse barco sozinhos. Portanto Jesus lá ficara, sem a menor dúvida.
E eles, uma minoria entusiástica, continuaram esperando por Ele e procurando-O, até o dia seguinte.
No entanto, nesse segundo dia haviam chegado a Betsaida-Júlias, provenientes de Tiberíades, outros barcos. Esses barcos que lá chegaram no dia seguinte, foram aproveitados para a travessia por aqueles que lá haviam ficado, e que já tinham desistido de encontrar Jesus naquelas bandas. Evidentemente, não eram os cinco mil: apenas alguns, os mais entusiastas.
Uma observação a ser feita é que muito dificilmente os barcos pernoitavam no lado oriental do lago, por causa do perigo que correriam de serem lançados e de se arrebentarem contra a margem, pelos ventos violentos. que tinham sempre a direção oeste-leste.
Quando chegam a Cafarnaum, ficam estupefactos: lá estava Jesus! Como regressara? É o que eles não compreendem; e então, no invés de perguntar "como", indagam "quando" lá chegou...
Estava naturalmente armado o cenário para a aula teórica que ia desenrolar-se: lá se achavam os doze, mais os discípulos que costumavam acompanhá-Lo de perto, e lá acabavam de chegar os mais sequiosos ouvintes, que haviam aproveitado da multiplicação dos pães, e que não tinham desistido de ir em busca de mais alguma coisa, após o esforço penoso de uma noite passada no deserto à sua procura, e de uma travessia em busca do Taumaturgo.
Era de presumir-se que todos estivessem amadurecidos para ouvir as grandes verdades: assim o demonstravam exteriormente, que mereciam um ensinamento de sabedoria acima do plano vulgar; Jesus resolveu dá-lo, para ver se algum deles chegava a percebê-lo. No final, mais uma vez se decepcionará.
Que podemos nós esperar? Resultados melhores do que os que obteve Jesus? Daí a sabedoria oriental ensinar que se deve agir sem cogitar dos frutos da ação: "seja teu interesse apenas na ação, jamais em seus resultados; não seja o resultado o teu móvel" (Bhagavad Gita, 2:47); ainda: "Firme na yoga, realiza tuas ações abandonando o apego, ó Arjuna, sendo indiferente ao êxito ou fracasso; a yoga é definida indiferença" (Ib, 2:48); e mais: Livre de apego, não falando de si mesmo, cheio de resolução e energia, imutável no êxito e no fracasso, quem assim age é chamado sattvika (bondoso)" (Ib. 18:26).
Muitas vezes essas circunstâncias se repetem no mundo hodierno, quando o pregador começa a revelar capacidade para ensinar certas verdades. Um grupo cada vez mais numeroso vem cercá-lo, manifestandose ansioso na busca dos conhecimentos, mas realmente querendo novidades e acepipes exóticos para seu paladar ávido de novos sabores.
O fenômeno que então ocorre é sempre identico: todos querem, todos buscam, todos pedem, todos reclamam, todos exigem tudo dele. E o pregador encontra-se num bívio crucial: ou a) atende à multid ão, que crescerá permanentemente e a quantidade resultará em prejuízo da qualidade, pois o ensino terá que baixar de nível para atender ao grande número," ou b) o pregador manterá o nível elevado de seu ensino, e verá seus ouvintes se distanciarem "escandalizados", por não poderem perceber a Verdade.
Aves ainda implumes, não podem acompanhar os altaneiros vãos daqueles que já singram as grandes altitudes. Tentam, então, criticar o pregador, atribuindo-lhe todos os defeitos possíveis, para desculpar-se da própria apostasia. Não querem confessar sua incapacidade de penetrar os mistérios da Vida, e mascaram essa deliciência, procurando rebaixar o pregador.
Outros envidam todos os esforços para desviá-lo de seu rumo, sob a alegação de que ele deve "conquistar multidões", deve "atender a todos, porque isso é que é caridade"; deve, como obrigação básica, descer de seu nível para "salvar o maior número de almas" ... São razões tentadoras que, em muitos casos, impressionam o pregador e o fazem ceder e tornar-se um "repetidor banal" de generalidades, paralisando sua própria evolução. Isto porque, não sentindo necessidade urgente de penetrar o "segredos do Reino", de viver em meditação profunda para descobrir novas vias, mas bastando-lhe soltar em qualquer canto as mesmas migalhas em palavras bonitas, ele se deixa levar pelo comodismo e pela falta de estímulo e estaciona, nivelando-se aos ouvintes, ao invés de elevá-los à altitude de seu conhecimento espiritual.
Não foi esse o exemplo dado por Jesus. Aos que desejavam segui-Lo e O buscavam ansiosos, disse a VERDADE, e deixou, embora triste, que se afastassem os imaturos; permitiu que os próprios discípulos se escandalizassem e o abandonassem, mas não traiu o ensino; e ainda indagou de Seus próprios escolhidos para Emissários especiais, se também não queriam retirar-se. Temos a impressão de que o Mestre estava disposto a perder todos os seguidores, mas não concordava em baixar o nível da aula que devia dar, porque especialmente para isso viera dos altos planos ("do céu"). As verdades comuns já tinham sido ditas por numerosos outros Enviados do Pai, por criaturas de grande elevação moral e espiritual; a Ele cabia ensinar o curso superior, e Ele o fez, mesmo com o risco de ficar falando sozinho.
Daí deduzimos a lição. Se muitos há que distribuem o "leite às criancinhas" espirituais (cfr. Paulo, 1CO
Também estes são filhos de Deus, e não podemos, por causa dos alunos incompetentes, prejudicar os aplicados e inteligentes. Lógico que quanto mais alto é o padrão do ensino, menos pessoas capazes de assimilá-lo serão encontradas. Quanto mais no alto do cone, menor o diâmetro da circunferência.
Para cinco mil pessoas que comeram os pães multiplicados, houve doze que perceberam a explicação teórica do fenômeno. A multidão apenas se satisfez na vida material, enquanto os evoluídos cresceram na vida imanente.
Trazendo para nossa personalidade essa lição, compreendemos que, frequentes vezes esta se manifesta ávida de progredir. Mas quando a individualidade a quer levar pelos caminhos árduos da renúncia e do desprendimento, encontra terríveis barreiras que resistem. Assim, por exemplo, quando o Cristo Interno quer cultivar no Espírito o sentimento do AMOR, comprova triste que logo aparecem, ofuscando esse sentimento, as emoções egoístas que, em vez de dar e distribuir, querem receber e gozar sozinhos; em vez de amar a todos, querem ser amados com exclusividade; não admitem ama "dando-se", mas fazem questão de ser os "únicos", e então amam "vigiando" o ser amado, com o ciúme exacerbado pelo medo de perder o domínio e a exclusividade do "amor" que, no fundo não é AMOR, mas apenas desejo emocional.
Nesses casos, o Cristo Interno não cede em rebaixar sua exigência: apenas isola-se, aguardando maior evolução do Espírito, para então tornar a atraí-lo a Si, na mesma existência ou na encarnação seguinte, ou daí a dez, a vinte, a cem ou a mil encarnações. Mas, enquanto o Espírito não amadurecer através do aprendizado e da experiência, burilado pela dor, não será possível colher seu fruto.