Sabedoria do Evangelho - Volume 4

CAPÍTULO 16

A CURA DO EPILÉPTICO



MT 17:14-18


14. E chegando eles à multidão, veio a ele um homem e, ajoelhando-se diante dele, disse:


15. "Senhor, com padece-te de meu filho, porque é lunático e sofre horrivelmente; pois muitas vezes cai no fogo e muitas outras na água;


16. eu o trouxe a teus discípulos e eles não puderam curálo". 17. Respondendo, pois, Jesus disse: "Ó geração sem fé e pervertida, até quando estarei convosco? Até quando vos tolerarei? Trazei-me aqui o menino".


18. E Jesus repreendeuo e o espírito desencarnado saiu dele e desde aquela hora ficou curado o menino.


MC 9:14-27


14. E chegando para os discípulos, viu grande multidão em redor deles e escribas discutindo com eles.


15. Imediatamente toda a multidão, vendo-o, surpreendeu-se e, acorrendo, saudava-o.


16. Ele lhes perguntou: "Que estais discutindo com eles"?


17. Respondendo-lhe um dentre a multidão, disse: "Mestre, eu te trouxe meu filho que tem um espírito mudo.


18. e este, onde quer que o apanhe convulsionao; e ele espuma e range os dentes e vai definhando; roguei a teus discípulos que o expulsassem, e eles não tiveram força".


19. Respondendo, disse-lhes: "Ó geração sem fé, até quando estarei convosco? Até quando vos tolerarei? trazei-mo".


20. E eles lho trouxeram. E vendo-o (a Jesus), logo o espírito o convulsionou e, caindo no chão, contorcia-se, espumando.


21. Perguntou (Jesus) ao pai dele; "Há quanto tempo acontece-lhe isso"? Respondeu ele: " Desde a infância;


22. e muitas vezes o lançou ora no fogo, ora na água para destruí-lo; mas, se podes alguma coisa, compadece-te de nós e ajuda-nos".


23. Disse-lhe Jesus: "Se podes? tudo é possível ao que crê".


24. Imediatamente o pai do menino exclamou; "Creio! Ajuda minha incredulidade".


25. E vendo Jesus que uma multidão afluía, repreendeu o espírito, dizendo-lhe: "Espírito mudo e surdo, eu te ordeno, sai dele e nunca mais nele entres".


26. Gritando e convulsionando-o muito, saiu; e o menino ficou como morto, de modo que a maior parte do povo dizia; "Morreu".


27. Mas Jesus, tomando-o pela mão, despertou-o e ele levantou-se.


Lc 9:37-43


37. Aconteceu no dia seguinte que, tendo eles descido da montanha, grande multidão foi encontrá-lo,


38. E do meio da multidão um homem gritou: "Mestre, suplicote que olhes meu filho porque é o único que tenho,


39. e um espírito o toma e ele repentinamente grita e convulsiona-o e fá-lo espumar, e dificilmente se afasta, jogando-o por terra.


40. Supliquei a teus discípulos que o expulsassem, mas não puderam".


41. Respondendo, disse Jesus: "Ó geração sem fé e pervertida, até quando estarei convosco e vos tolerarei? traze aqui teu filho".


42. Quando se aproximava, o espírito desencarnado derrubou-o e convulsionou-o; mas Jesus repreendeu ao espírito atrasado curou o menino e entregouo ao pai.


43. E maravilharam-se todos da grandeza de Deus.

Neste episódio, Mateus e Lucas apresentam um resumo de Marcos, que narra a cena com pormenores vividos, reproduzindo, ao que parece, o que a memória priviligiada de Pedro conservou do fato. Seguiremos Marcos em nossos comentários, acrescentando-lhe as achegas novas que porventura encontremos nos dois outros.

Lucas, por exemplo, anota que eles "chegaram no dia seguinte", donde concluir-se que a "Transfiguração" ocorreu durante a noite, e eles desceram do monte na manhã do outro dia.

Nas últimas curvas da descida, já deve Jesus ter percebido pequena aglomeração no sopé. Além dos nove discípulos, que não haviam escalado a montanha, aguardavam a comitiva numerosas outras pessoas que discutiam animadamente.

A aparição súbita de Jesus causou surpresa no povo. Não há necessidade de supor (com Teofilacto, Cajetan, Jansênio, Cornélio a Lápide e outros) que o rosto de Jesus ainda conservasse um resquício do brilho da transfiguração, tal como é narrado de Moisés ao descer do Sinai (EX 34:29). Bastaria o inesperado da chegada, num momento crítico de dificuldade para surpreender a todos. O povo voltou-se imediatamente e correu a saudá-Lo. Recebidas as saudações - que, para serem assinaladas, devem ter sido muito efusivas - dirige-se o Mestre não a Seus discípulos, mas aos escribas que viu ali presentes.

Porque os discípulos estavam tão cabisbaixos e confusos, que davam a impressão de terem sido derrotados.

Com efeito, já tantas vezes haviam expulsado obsessores, sentindo-se alegres com os resultados obtidos (cfr. MC 6:13), que não conseguiam descobrir por que não dominaram este. E logo diante da primeira tentativa falhada, a dúvida cresceu, automaticamente diminuindo-lhes a fé a respeito de suas possibilidades. Daí ao fracasso total foi um passo. E os escribas devem ter aproveitado o ensejo para menosprezar os nove e, através deles, o próprio Jesus, o que mais os magoou. Ora, o fracasso era natural: o "espírito" era surdo, e portanto não podia ouvir as "ordens" verbais.

Jesus indaga da aglomeração qual o assunto do litígio com Seus discípulos. Notemos, de passagem, a confiança de Jesus em Seus seguidores. Qualquer mestre humano e cioso de suas prerrogativas (isto é, vaidoso) interpelaria os próprios discípulos: "que é que vocês fizeram em minha ausência sem minha ordem"? E estaria pronto a repreender os discípulos, para não perder o prestígio diante dos adversários.

Jesus age diferente (como sempre!). Interpela "os outros", já se colocando na atitude de defender Seus escolhidos.

Mantendo-se silenciosos, demonstraram respeito e confiança no Mestre justo e bom, que saberia defend ê-los e ensinar-lhes o caminho certo.

Quem falou foi "um da multidão", um anônimo, que explicou a situação. Trouxera seu filho (Lucas esclarece que era "único", como de outras vezes, em 7:12 e 8:
42) e que estava possuído por um espírito obsessor mudo (mais tarde Jesus esclarecerá que era também surdo). E Marcos coloca nos lábios do pai aflito a descrição dos sofrimentos do filho.

Mateus resume as súplicas do pai em uma palavra: "lunático". Dizia-se lunático o epiléptico, porque as crises violentas geralmente coincidiam com a lua nova. Marcos e Lucas citam apenas, como express ões do pai, a possessão pelo obsessor. Era crença antiga que a epilepsia era provocada pela incorporação de um obsessor violento. E hoje, com o conhecimento trazido pelo Espiritismo, sabemos com seguran ça que, excetuada pequena percentagem de casos devidos a lesões ou disritmia cerebral, todo o grande volume restante é realmente isso: ação de obsessor violento em incorporação total (possessão).

Digno de nota que, contrariamente ao que sói acontecer, a descrição da enfermidade em Marcos cont ém mais pormenores médicos que a de Lucas: convulsões violentas, gritos inarticulados seguidos de queda, o espumar e o rilhar de dentes, a contração dos músculos e o retesamento dos membros e, finalmente, após a crise, a prostração absoluta.com palidez cadavérica, chegando enfim ao sono.

Depois da descrição, vem a queixa, embora em termos respeitosos e quase desculpando os discípulos: "eles não tiveram força".

Jesus, depois de repreender os presentes pela falta de fé, numa frase em que revelava profundo amargor, lamentando se de ter que permanecer entre criaturas tão retardadas, pede que o garoto lhe seja trazido.

Mas logo que o obsessor enfrentou o Mestre, deu mais uma demonstração de sua violência, prostrando o menino na habitual convulsão: bastava a presença de Jesus, com Seus poderosos fluidos, para perturb á-lo.

Observemos, com atenção que Jesus não se "afoba", não se apressa, mas, antes de agir, indaga dos antecedentes, a respeito da época em que se iniciara a obsessão. O pai informa que o fato ocorria "desde a infância", embora não especifique a idade. E, aproveitando que estava novamente com a palavra, roga a Jesus que se compadeça, mas já antecedendo o pedido de uma condicional: diante do fracasso dos discípulos, a dúvida se instalara em seu íntimo, e ele diz com sinceridade "se podes alguma coisa".

Jesus aproveita para dar uma de Suas lições, quase com ironia: "se podes? ... Mas tudo é possível àquele que crê".

O pai não se descoroçoa: humilde reconhece que ele crê no poder de Jesus, mas também confessa que sua fé não é das maiores; pede Lhe, pois, que ajude sua falta de fé, realizando a cura do filho.

Nesse ponto, a aglomeração dos curiosos passantes crescia, e Jesus ordena com autoridade (egô epistássô soi) que o espírito se retire e não mais volte a importunar o menino. A obediência foi imediata, mas não devido às "palavras" de Jesus, e sim ao poder magnético altíssimo, cujo impacto vibratório o espírito já havia sentido desde o momento em que Lhe chegara à presença.

O desligamento foi feito com violência e o menino, gritando, teve outra convulsão e caiu ao chão desacordado.

O povo, apavorado e palpiteiro como sempre, murmurava entre si: "morreu". O Mestre não dá ouvidos ao desânimo: abaixa-Se, segura a mão do menino e o desperta: com toda a naturalidade, ele se levanta, e Jesus o restitui sadio a seu pai.

Na última frase de Marcos há uma observação a fazer: os verbos egeírô e anístêmi são traduzidos com frequência nas edições correntes, ambos como "ressuscitar". Ora, não é possível entender-se aqui: " Jesus o tomou pela mão e o ressuscitou e ele ressuscitou-se", o que seria absurdo. Em trechos desse tipo, este e outros, é que percebemos o sentido real que era atribuído a esses verbos, e neles baseamos nossa tradução constante de egeírô = despertar, e anístêmi = levantar-se (cfr. vol. 3).

Outra lição de profundo interesse para aqueles que gostam de mergulhar mais fundo, além das palavras do texto.

O Espírito (individualidade) regressa de seu contato unificador com o Cristo Interno, "descendo do monte" da sublimidade para a planície corriqueira do cenário material. Aí reside a turbulência natural dos elementos divididos pelo egoísmo separatista, cada qual procurando sobrepor-se aos outros, na titânica luta pelo domínio ambicioso da matéria.

Ao reentrar na personagem, intelecto e emoções acham-se descontrolados pela temporária sublimação do Espírito e da Mente espiritual. O próprio intelecto, dividido em si mesmo pela dúvida, ("discípulos" versus "escribas" perscrutadores oficiais de minúcias escriturísticas e dissecadores da "letra") raciocina inseguro, entre a crença e a negação, não conseguindo dominar as emoções, que foram invadidas pelas forças antagônicas da matéria. Só o Espírito, com sua elevação e sobretudo com a fé (segurança) de seu poder divino, alcança a supremacia absoluta para apaziguar tudo.

Esta uma das interpretações cabíveis da narrativa dos evangelistas.

Há, entretanto, pormenores elucidativos para outros níveis de evolução. Quando, por exemplo, aplicamos a lição aos casos comuns da humanidade, em que as criaturas ainda não atingiram o esponsalício místico, podemos considerar o episódio como desligado do trecho anterior, consistindo numa lição isolada.

Teríamos aqui, pois, o símbolo das criaturas que são ainda presas indefesas das forças negativas do Anti-sistema.

O quadro é bem descrito. O intelecto, embora não amadurecido e ainda vacilante em sua fé ("se podes"), já aprendeu que a prece é o poder mais eficiente para ajudar a criatura em qualquer circunstância.

Por isso, ao perceber que sua personagem (seu filho único) está sofrendo os embates das paixões, decide-se a ir buscar o socorro para libertá-la das garras monstruosas e torturantes dos vícios.


No próprio texto podemos perceber duas interpretações desse socorro:

a) - o socorro é buscado fora de si, com os discípulos e seguidores de doutrinas religiosas, os quais -

por falta de fé - não conseguem libertar a criatura dos hábitos arraigados, até que, voltando-se para a Divindade em prece sincera (embora ainda vacilante), obtém a libertação.


b) - o socorro é buscado em si mesmo: os discípulos representariam, neste caso, as faculdades da alma, o psiquismo superior, a força de vontade, a persistência e a mentalização; sendo, porém, incapazes de frear e manter dóceis as emoções que sempre se rebelam, é-lhe concedido - por causa da boa-vontade sincera - o contato com a individualidade subjacente: e esta, o Espírito, assume o comando, ordena categoricamente o reequilíbrio, refaz os órgãos atormentados e enfraquecidos, e restitui ao pai (intelecto) uma personagem restabelecida (o filho curado).

Por aí verificamos quantas lições podem ser aprendidas num único trecho, dependendo do nível evolutivo da criatura a que se aplica o ensinamento.

Observando certos pormenores, verificamos que o impacto emocional é realmente SURDO à voz interior da consciência e mais ainda à própria vontade, (quando desligada do Espírito), que as emoções ludibriam, recaindo sempre nos mesmos vícios e defeitos, sobretudo quando estes vêm acompanhando a criatura "desde a infância" (que pode ser compreendida como de uma vida, a atual, ou desde muitas existências, desde "a infância do espírito").

Ser MUDO é característica daquele que não fala, que não avisa, quando leva ao abismo dos fracassos, muitas vezes intempestivamente, causando "quedas na água e no fogo, jogando par terra", etc.

A exclamação queixosa de Jesus ("até quando estarei convosco?") exprime o apelo veemente e angustioso da individualidade que quer ver-se livre do peso da matéria, do abaixamento de vibrações que o constrange; além de expressar, também, a verdade da letra: um espírito de escol, preso entre criaturas atrasadas evolutivamente, dominadas pelo egoísmo, fascinadas pela ambição, interdevorandose em ódios mesquinhos, sente todo o impacto da materialização como cadeias constringentes, e aspira libertar-se o mais rápido que lhe for possível, terminando sua tarefa e imediatamente retirandose do cenário deprimente e involuído.

O pedido do pai do menino (intelecto, pai da personagem encarnada) para que sua fé "seja ajudada", reflete a posição certa dos que, no embate violento e torturante das paixões, sabem ser humildes, reconhecer as próprias fraquezas e gritar por socorro. A solicitação dessa ajuda espiritual jamais fica sem resposta por parte das ondas noúricas de energia superior: basta sintonizar com elas, para recebêlas, pois estão permanentemente espalhando suas bênçãos em abundância. Estando "no ar" o transmissor, basta sintonizar o aparelho receptor no ponto certo, para receber o som. Se a "resposta" não vem, é sinal de que há defeito no receptor, ou que ele está mal sintonizado: mister então consertálo, fazendo uma boa regulagem.