Sabedoria do Evangelho - Volume 6

CAPÍTULO 1

SER DISCÍPULO



LC 14:25-33


25. Saía com ele grande multidão e, voltando-se disse (Jesus) a eles:

26. "Se alguém vem a mim e não odeia seu pai, e a mãe, e a esposa, e os filhos, e os irmãos, e as irmãs, e até também a própria alma, não pode ser meu discípulo;

27. quem não carrega sua cruz e vem atrás de mim, não pode ser meu discípulo.

28. Quem de vós, pois, querendo edificar uma torre, primeiro não se senta a calcular o gasto, se tem para acabar?

29. Para que não suceda que, pondo o alicerce e não podendo terminar, os que vêem comecem a caçoar dele,

30. dizendo: "este homem começou a edificar e não pode terminar".

31. Ou que rei, saindo a lançar-se em guerra com outro rei, primeiro não senta, deliberando se é forte com dez mil, para enfrentar ao que vem com vinte mil contra ele?

32. Se não, estando ele ainda longe, envia uma legação, pedindo as (condições) para a paz 33. Assim, pois, qualquer de vós que não se destaca de todas as suas posses, não pode ser meu discípulo".



As "multidões" saíam, acompanhando Jesus, correndo atrás de Sua fascinante personalidade humana, maravilhadas com Seus poderes psíquicos, com Suas "palavras de amor" (LC 4:22; vol. 2), de sabedoria e autoridade. O Mestre observa os componentes do grupo: quantos ali estão a Ele se prendem somente por causa dos benefícios recebidos ou a receber... Não. Não é isso o que importa, não é isso que interessa. Não é imitá-Lo externamente, nas palavras e gestos. E algo mais profundo e misterioso.

Volta-Se, então, e mais uma vez fala, repisando temas já versados outras ocasiões, a fim de fixar responsabilidades e alertar contra entusiasmos fáceis e efêmeros. Já expusera longamente, certa feita, as condições essenciais para ser Seu discípulo (cfr. MT 16:24-28; MC 8:34-38; LC 9:23: -27; vol. 4).

Novamente frisa, com outras palavras, as condições indispensáveis para que possa alguém ingressar na senda do discipulado.

1. ª - "odiar" (míseô) os parentes, por mais próximos e queridos que sejam, e cita: "pai, mãe, esposa, filhos (em geral, dos dois sexos, tékna), irmãos, irmãs. Em MT 10:37 (vol. 3), são citados: pai, mãe, filho, nora e filha. E pelas palavras aí registradas por esse evangelista, compreendemos o sentido deste "odiar". Lá encontra-se: ho philôn patéra è mêtéra hyper emé, isto é, "o que ama o pai ou a mãe acima de mim" (mais que a mim). Trata-se, portanto, de dois termos de comparação entre dois amores, levada ao extremo exagero por metáfora, devido à exuberância do linguajar oriental.

2. ª - Não apenas os seres queridos "externos", mas até a própria alma (psyché), ou seja, sua personagem terrena. Em outro passo (MT 16:24; MC 8:34; LC 9:23; vol.
4) essa exigência é dita com a expressão "negue-se a si mesmo". Então, desligamento total de amores personativos externos e internos.

3. ª - Carregar sua cruz, já explicado no vol. 4.

4. ª - Caminhar após Ele (idem, ibidem).

5. ª - Calcular sua capacidade. Exigência que pela vez primeira aparece. Ou seja, fazer o indispensável balanço no que possua de compreensão, de cultura, intelectual, de conhecimento, para ver se tem possibilidade de iniciar e terminar o estudo e a "construção da torre".

6. ª - Calcular suas possibilidades, isto é, as forças de que dispõe para enfrentar um adversário numeroso e ferrenho.

7. ª - E última: destacar-se (o verbo grego apotássô é composto de tásso, "por no lugar devido", e apó, longe de"), ou seja, saber colocar nos devidos lugares, bem longe um do outro, o Espírito e os bens materiais (hypárchousin) ...

Para esclarecer de vez o sentido do vers. 26, vamos reler o Bhagavad-Gita. Arjuna vê, formados no exército que devia combater, "seus avós, sogros, tios, irmãos e primos com seus respectivos filhos e netos, seus camaradas, professores e amigos" (I,26 - por coincidência o mesmo número do artigo!) e assim fala: " Ó Krishna, ao ver estes meus parentes reunidos aqui, desejosos de lutar, meus membros cedem. arde-me a boca, meu corpo tirita, meus cabelos arrepiam-se, o arco me escorrega das mãos, a pele se me abrasa. Ó Krishna, não sou capaz de manter-me, os pensamentos se me confundem, vejo maus presságios. Não aspiro a vitória, nem a reino, nem a prazeres.

Mestres, tios, filhos e netos, avós, sogros, além de outros parentes - que inspiravam o desejo de império, alegria e prazeres - eles próprios estão aí, em ordem de batalha, renunciando à vida e à fortuna. Que valem, pois, reino, alegria, e mesmo a existência, ó Govinda’?


A esses guerreiros não quero matar, embora por eles seja eu morto, nem pelo domínio dos três mundos, quanto mais por causa desta Terra, ó matador de Madhu. ó Janárdana, que prazer pode advir a nós do assassínio dos filhos de Dhritarashtra? Só o erro se apossará de nós, por termos massacrado esses malfeitores. Portanto, não devemos matar esses filhos de Dhritarashtra, que são nossos parentes; como podemos nós, ó Madhava, ter felicidade, destruindo nossos próprios parentes? Embora eles, dominados pela ambição, não vejam mal em destruir a família, nem erro em hostilizar amigos. Mas, ó Janárdana, por que não recuarmos deste erro, já que percebemos claramente o mal em destruir a família"? (I, 28-

39).

No capítulo segundo, Krishna esclarece Arjuna de que todos esses "entes caros" são as exterioridades transitórias e ilusórias, os veículos inferiores da personagem terrena, com seus vícios (e, por isso, destruindo-os, realmente não há prazer em reinos nem em alegrias terrenas) mas que precisamos combater para atingir a essência íntima, o Eu verdadeiro: "esses corpos são perecíveis, (II,18). Mas o Eu é "eterno, onipresente, imutável, permanente, perpétuo" (II, 39), pois é no linguajar evangélico, o" reino dos céus ". A explicação é bastante clara. " O sábio, dotado de conhecimento, abandonando o fruto de suas ações, torna-se livre dos grilhões do berço e alcança o estado que está além de todo mal. Quando teu intelecto houver atravessado o pântano da ilusão, então, e só então atingirás a indiferença em relação às coisas ouvidas e por ouvir. Quando teu intelecto, agindo pelas várias opiniões antagônicas das Escrituras, se firma inabalavelmente no Eu, então atingirás a Yoga (auto-realização ou união com Deus)" (II, 51-53).

E continua: "Ó Partha, quando um homem chega a satisfazer-se apenas com o Eu pelo Eu, e baniu completamente todos os desejos da alma, então se diz que ele possui firme sabedoria.

Aquele cuja alma não se agita em calamidades, e que não aspira ao poder, e que está liberto do apego, do medo e da cólera é em verdade tido como um santo de firme sabedoria.

Aquele que é liberto de todo apego, e que não se rejubila ao receber o bem, nem se perturba ao receber o mal, tem sua sabedoria bem confirmada. Sua sabedoria começou a ficar bem filmada, quando ele retirou inteiramente seus sentidos dos objetos dos sentidos, como a tartaruga renuncia aos membros. O encarnado, pela prática da abstinência (não dando alimento aos sentidos), pode amortecer os sentimentos dos sentidos, mas os anseios ainda permanecem em seu coração; todos os anseios se abatem, quando tiver visto o Supremo. Ó filho de Kunti, os sentidos (parentes) são perigosos, chegam mesmo a arrastar à força o esp írito de um homem sensato que está lutando pela perfeição. O homem de firme sabedoria, tendo-o subjugado a todos eles (os sentidos, seus "parentes" mais caros) fica fixado em Mim, o Supremo, Aquele que tem os sentidos sob controle, tem a sabedoria bem firmada.

Cuidando dos objetos dos sentidos, o homem e torna apegado a eles. Do apego nasce o anseio, e do anseio a cólera. Da cólera nasce o delírio, e este causa a perda de memória. Com esta arruina-se a faculdade de escolha, e com a ruína desta faculdade o homem perece. Mas aquele que se domina alcança a paz e circula por entre os objetos com os sentidos controlados, isento de qualquer anseio ou aversão. Na paz, cessa a infelicidade e o espírito cheio de paz em breve se firma na sabedoria. Não há sabedoria para o instável nem para o que não medita. E como poderá haver ventura para quem não tem paz? O espírito que condescende com os sentidos indisciplinados e errantes, arrasta consigo sua sabedoria, exatamente como um barco na água é arrastado pelo vento. Portanto, ó poderosamente-armado, sabedoria firme é a daquele cujos sentidos estão bem afastados de todos os objetivos dos sentidos".

O ensinamento do Espírito, do Cristo, é um em todas as épocas e em todos os quadrantes, porque "há um só corpo e um só Espírito... um só Senhor, uma só fé, um só mergulho, um só Deus e Pai de todos, que está acima de todos, e é por todos e está em todos" (EF 4:3-6).

Fica, pois definitivamente explicado o sentido profundo e simbólico do verbo "odiar" neste trecho evangélico, tão incompreendido até hoje.

Mas passemos à interpretação do texto no campo iniciático.


Ainda uma vez encontramos preciosas lições de como deve preparar-se aquele que pretende ingressar na "Assembleia do Caminho", essa criação sublime de Mestre e Hierofante Divino, que veio pessoalmente instruir-nos. Vejamos as condições requeridas:

1 - Compreensão absoluta do desligamento total de tudo o que é terreno, como seu corpo, suas sensações, suas emoções, seu intelectualismo humano, com todos os seus agregados "animais", que a ele se colaram durante o percurso evolutivo pelos reinos inferiores: preguiça, sensualismo, paixões, vaidade e orgulho; de tão arraigados, com ele mesmo confundidos, são considerados "parentes consanguíneos: pai, mãe, esposa, filhos, irmãos, irmãs. Tudo o que constitui matéria, duplo etérico (sangue) e astral deve ser abandonado e como que "odiado", voltando-se o candidato na direção oposta: o "Espírito Puro". Como, de modo geral, o ambiente familiar é contrário a qualquer elevação espiritual do iniciado (e Jesus tinha experiência pessoal disso, cfr. MC 3:21 e MC 3:33-35), o candidato deve estar convicto de que, também, seu progresso espiritual está desligado de qualquer laço familiar, se for indispensável cortar os afetos (emoções) para dedicar-se integralmente ao Espírito. Muito mais fortes são as ligações espirituais, que as consanguíneas. A fraternidade espiritual é REAL E ETERNA, já que somos filhos do mesmo PAI ETERNO; ao passo que o parentesco sanguíneo é passageiro, de uma só encarnação, podendo, na seguinte, ser realizado em outro grupo, em outra terra, em outra raça.

2 - Entretanto, não são apenas os apegos externos que precisam ser cortados, mas até o do próprio eu pequeno, da personagem terrena transitória - o filho único tão querido - a própria "alma", com suas idiossincrasias, seus gostos, suas características temperamentais. Esse é o maior apego nosso. E não basta convencer-se disso, mas é preciso realizar (ou seja, páthein) experimentar, "sofrer" destaque total e passar a viver no Eu verdadeiro. Só realizando esses dois desligamentos é que o candidato poderá tornar-se discípulo. E aqui mais uma vez comprovamos o emprego da terminologia técnica das escolas iniciáticas: discípulo o que põe o pé na senda para iniciar a caminhada. Só após perlustrar o discipulado em seus graus primeiros (discípulo em provação e discípulo aceito) é que pode pretender o ingresso na iniciação. E dificilmente se obtém isso numa só existência terrena. Os próprios "Mestres de Sabedoria" continuam até hoje a denominar-se a Si mesmos. "Discípulos". Daí não acreditarmos em quem se chama a si próprio de "iniciado": quem o diz, não o é; porque quem verdadeiramente é iniciado, não o diz 3 - A terceira condição para ser discípulo-aceito, é receber com alegria o peso da própria cruz, que tem vários aspectos. Inicialmente, é a própria encarnação, quando a criatura se torna consciente de que se acha "pregado" na cruz de carne, limitado em suas possibilidades, grudado ao chão de matéria.

Mas, além desse peso, outros podem superpor-se: pobreza, falta de meios e de ambiente, aderentes incompreensivos, exploradores e abusadores, dores e sofrimentos, deficiências físicas humilhações e desprezos, perseguições e até morte. E, não obstante tudo isso, continuar firme o trajeto, sem abaterse nem desanimar.

4 - O passo seguinte é o de palmilhar a estrada que o Mestre exemplificou, com Sua humildade, Seu espírito de sacrifício, Sua dedicação integral ao serviço à humanidade, Sua união com o Pai, Seu amor sem condições a todos. "Vem atrás de mim" ou "segui-Lo", quando são frases proferidas pelo Cristo, significa realmente unir-se a Ele, buscá-lo por todos os meios, "mendigar o Espírito" com lágrimas, procurando "ajustar-se" com a sintonia crística, até unificação final.

5 - Para ingressar no discipulado, faz-se ainda mister capacidade cultural, a fim de bem compreender os ensaios, sem limitações nem distorções. Muitos há que desejam ardentemente ingressar como discípulosaceitos ou, até mesmo, atingir a iniciação. Inegavelmente, são, muitas vezes pessoas ardorosas de amor e ansiosas de perfeição. Mas não possuem as condições essenciais para isso, não têm conhecimento. Para iniciação são essenciais três condições pessoais: amor, amadurecimento e sabedoria (cfr. vol.
5) "Jesus crescia em sabedoria, amadurecimento e amor" (LC 2:5; vol. 1). Então, os que não conquistarem o conhecimento, e ainda precisarem dedicar-se ao estudo, não são cortados do espiritualismo: podem seguir a via devocional ou a via mística. Mas não a senda iniciática. A via devocional e a mística são linhas evolutivas pessoais, ao passo que a senda iniciática é grupal, e prepara a criatura para o magistério sacerdotal. Ora, sem cultura e conhecimento, como se poderá ensinar?

Há enorme perigo não apenas de desviar-se, mas, pior ainda, de afastar do rumo certo aqueles que neles confiam. Daí serem tão rigorosas as escolas que preparam discípulos para a iniciação na admissão de candidatos. Jesus, em diversas ocasiões - como esta agora - alerta quanto às condições indispensáveis para ingressar no discipulado: examine-se se tem capacidade intelectual desenvolvida, para que não inicie uma obra e se veja obrigado a parar na metade do caminho.

6 - Outro requisito para entrar na Escola é saber se conseguiu vitória, ou se está capacitado para obtê-la, contra os inimigos internos e externos. Em outras palavras, se seus instintos inferiores animais não estão mais fortes que sua capacidade de luta. O "rei" (o Espírito) precisa calcular suas forças, a fim de ver se são superiores às do "outro rei" (a personagem). Se forem inferiores as forças do Espírito, este "pede as condições de paz". Isto é (por exemplo) se a sensualidade predominar e o Espírito não tiver condições de sublimá-la, obedeça à força de sua personagem e se dedique à família, sem pensar em desapegar-se; se a violência do temperamento não pode ser dominada, afaste-se da senda nessa vida, e volte quando puder contar com o domínio de suas energias exuberantes. E assim por diante. Então, calcule bem suas possibilidades de luta e de vitória, antes de lançar-se ao combate, a fim de não arriscar-se a derrotas espetaculares que, além de descoroçoá-lo, podem trazer sérios prejuízos à instituição a que se filia. Daí o rigor que os instrutores manifestam, antes de receber alguém, e o longo período probacional a que são submetidos: comprovar que superaram todos os vícios.

Aqueles que ingressam na senda por sua alta recreação, de modo geral caem fragorosamente, quer desviando-se para a magia negra, quer aniquilando-se até na parte humana: corrúptio óptimi, péssima, ou seja, a corrupção do melhor, é a pior.

7 - Finalmente é mister destacar-se de todos os bens materiais, de todas as "posses" para que não seja por elas "possuído". Deverá ser capaz de dar tudo, e passar o resto da existência a mendigar seu sustento.

Ainda que isso não lhe seja exigido, no entanto deve ser capaz de fazê-lo sem sofrimento moral.

Portanto, desapego total...

Essas são as regras para todas as épocas e regiões do globo, sem exceção. Como vemos, encontramos no ensino crístico a orientação completa e integral. A única necessidade é saber interpretar Suas palavras de sabedoria, e não apenas fixar-se na letra fria e morta.