Quando Jesus atingiu os arredores de Betânia, já havia quatro dias que Lázaro fora sepultado. Isso porque, em virtude do clima quente e úmido da Palestina, e sobretudo da Judeia, a putrefação do cadáver era rápida.
Estava-se, pois, no período do "luto", que durava sete dias (cfr. EC
Marta "ouviu que Jesus vinha", por alguém que lho fora dizer, e foi a Seu encontro, a fim de poder-Lhe falar com mais liberdade, longe de testemunhas. Nem mesmo chamou Maria.
A primeira frase do encontro é carinhosa queixa, com o acréscimo de total confiança: "tudo o que pedires a Deus te será concedido". Ao que o Mestre retruca, assegurando-lhe desde logo que seu irmão se reerguerá do túmulo. Marta não entende o sentido da frase, atribuindo a promessa à esperada "ressurrei ção do último dia", ou seja, a que se realizaria, segundo a crença vulgar dos israelitas da época, no final do ciclo.
Mas Jesus garante, com uma de Suas afirmativas categóricas: "Eu sou o ressurgimento da vida"!
As traduções correntes dão literalmente a transferência da frase: "a ressurreição E a vida". No entanto, sentimos de modo indiscutível que estamos diante de uma hendíades. E o principal motivo que nos leva a compreender assim é a lógica, isto é, o sentido das palavras e da ideia (além da confirmação que encontraremos no vers. 42). Vejamos.
O termo "ressurgimento" (anástasis) exprime exatamente o reerguimento ou ressurgimento, isto é, a volta de alguma coisa que se levanta, e que "outra vê "(anã) "fica de pé" (stásis). Ora, o que "novaSABEDORIA DO EVANGELHO mente fica de pé " é a vida, que se retirara, deixando o corpo cair por terra. Então, entendemos a frase: " eu sou o que faz a vida ficar de novo em pé", ou seja: "eu sou o ressurgimento DA vida".
O que encontramos nas traduções correntes é uma redundância: "sou o ressurgimento E a vida". Só pode entender-se, por conseguinte, como hendiades : sou o retorno da vida (que esse era precisamente o caso em questão). O corpo de Lázaro havia cessado de viver; o Mestre o faria ressurgir, ou reerguerse, fazendo-lhe voltar a vida: tenho o poder de fazer reviver um corpo morto.
Isso, porém, não significava ser Ele A VIDA, o que vem confirmar nossa hipótese, de refusar as traduções vulgares. Mesmo na concepção católico-romana, de que Jesus, como segunda "pessoa" da Trindade, era Deus, mesmo assim não seria "a vida", atributo do DEUS ABSOLUTO (o Espírito Santo) ou, na teoria deles, o Pai. Tanto que o próprio João (João
Falsa a objeção de que a hendíades era figura retórica, somente usada pelos clássicos, e que os evangelistas eram "iletrados"; alguns os dizem até analfabetos! (1) . Lembremo-nos de que Lucas, grego de nascimento e não-judeu, escrevia em estilo ático; de que Mateus era cobrador de impostos, e portanto pelo menos contabilista, com seguro conhecimento do grego, para poder entender-se com seus patrões romanos de que João e Marcos, embora judeus, escreviam em grego, o que revela cultura acima da normal. Chamaríamos "iletrado" a um brasileiro que escrevesse um livro em inglês? ou a um francês que editasse uma obra escrita diretamente em alemão?
Strauss, "Nouvelle Vie de Jésus", tomo 1, pág. 252.
Falsa, também a objeção de que a hendíades era comum só ao latim e ao grego literário. Também o hebraico está cheio dessa figura, mormente na poesia em virtude do paralelismo. E no grego e no latim a figura em estudo aparece frequente no estilo coloquial epistolar.
Para que não pairem dúvidas alinharemos alguns exemplos. Já vimos (vol.
1) que existem constantes hendíades tanto no hebraico do Antigo quanto no grego do Novo Testamentos. Recordemos que essa figura pode aparecer de duas maneiras, sempre exprimindo UMA ideia (hen) em DUAS palavras (dya): a) ou dois substantivos ligados por uma preposição, em lugar de um substantivo e um adjetivo (obras de fé" por "obras fiéis"); b) ou dois substantivos ligados pela conjunção "e", ao invés de o serem por uma preposição, subordinando um substantivo ao outro.
Conforme estamos vendo, por exemplos colhidos ao folhear a Bíblia, pudemos em cerca de uma hora de pesquisa trazer à consideração do leitor dez exemplos de hendíades, o que prova a frequência de seu emprego, não apenas nas obras literárias clássicas, mas inclusive no grego familiar (koinê) em que se acha escrito o Novo Testamento.
Tendo visto a lógica da frase em si, sigamos em frente. E vamos encontrar a confirmação plena de todo o nosso raciocínio que poderia permanecer hipotético, não fora a continuação. Porque a sentença seguinte o faz tornar-se tese: "quem crê em mim, mesmo se morreu, viverá". Como verificamos, é explícita explicação, embora paratáxica: "eu sou o ressurgimento da vida, pois quem crê em mim, ainda que tenha morrido, viverá". Não é possível clareza maior.
As duas sentenças seguintes são verdadeiro clímax de espiritualidade e plena compreensão entre duas almas que se amam incondicionalmente, sem restrições nem segredos: o Mestre Amante dá à Discípula Amada a garantia de que, quem Lhe for fiel, não morrerá para o eon. E a Discípula Amada faz voto de fidelidade total e cega, confessando sentir (emocionalmente), saber (intelectualmente) e perceber (espiritualmente) através da intuição e do contato íntimo, que ela está diante do Cristo (não apenas do Jesus humano), do Filho de Deus, que se manifesta a este planeta.