O texto é privativo de Lucas. O episódio é ligado ao anterior, da cura do cego, quando Jesus entrou na cidade nova de Jericó. Lucas, que de modo geral não cita nomes, demonstra neste passo tratar-se de tradição segura.
Zaqueu (em grego Zakchaíos, em hebraico Zakhkhay, cfr. Esdr. 2:9 e Neh. 7:
14) significa "o justo" ou o "puro". Sua designação como architelônês, por ser essa palavra um hápax, é de tradução insegura.
Mas deve tratar-se de um Chefe-dos-Coletores ou Coletor-Principal. Era rico, pois como vimos (vol.
2) devia dar ao governo o montante das cobranças de impostos de seu bolso, ressarcindo-se, depois, nas coletas individuais que fazia, e isso lhe rendia o lucro. Sendo Jericó a segunda cidade do país em import ância, os impostos aí cobrados deviam ser elevados, bem como os lucros.
Tendo ouvido falar a respeito do carpinteiro que era aclamado Rabbi, tinha grande curiosidade de conhec ê-lo. E Jesus passava por Jericó. Ocasião propícia única! Mas o povo era muito e ele era de baixa estatura. Olhou a direção em que ia a onda de gente, correu à frente e, agilmente, trepou num sicômoro, que era árvore não muito alta, mas esgalhada. Lá aguardou a turba.
Quando a multidão ia passando, distinguindo ele o simples e majestoso porte do Mestre galileu, seu coração pulsava mais violento e mais rápido. Mas o choque maior veio quando Jesus olhou para o alto da árvore e fixou-o com Seu olhar límpido e penetrante. E se deteve! E lhe dirigiu a palavra, chamando-o pelo nome! Ao ouvir a frase, espontânea e tranquila - "Zaqueu, apressa-te a descer, pois hoje devo permanecer em tua casa"! - o coração quase lhe pulou pela boca! Era muito mais do que pretendia e do que esperava. E desceu quase que de um salto. Escreveu Ambrósio (Patrol. Lat. vol. 15 col. 1
792) que" caiu da árvore como um fruto maduro" (Zacchaeus in sycómoro, novum vidélicet novi témporis pmum).
Entrou no meio da multidão, unindo-se a ela e conduzindo-a a seu palacete. A multidão murmurava: em Jericó, cidade sacerdotal por excelência, Jesus vai hospedar-se na casa de um judeu vendido aos odiados dominadores romanos!
Ao chegar à entrada da casa Zaqueu pára e se dirige a Jesus, falando de forma a que o povo o escute: "Dou metade de meus bens aos mendigos e, se defraudei alguém, restituo quadruplicado". É uma justificativa pública de seu modo de agir, que Jesus tacitamente aceita. E também de modo a ser ouvido, declara: "Hoje aconteceu a salvação em tua casa". E dirigindo-se claramente à multidão: "porque tamb ém este é filho de Abraão, e o Filho do Homem veio procurar e salvar o perdido".
Entraram. Fechou-se a porta. Dissolveu-se aos poucos o grupo de admiradores e curiosos.
As traduções correntes vertem os verbos: "darei... restituirei" ... no futuro, como se fora novo modo de agir de Zaqueu, a partir daquele momento, provocado pela alegria de hospedar o Mestre. Não nos parece assim. O presente do indicativo é claro e concordante em todos os códices: dídômi e apodídômi.
Sendo um presente do indicativo, exprime uma ação continuada, não só no momento atual, mas que vem do passado, revelando um hábito: Zaqueu costumava já dar a metade dos bens aos mendigos e restituir quadruplicado o que cobrasse, sem querer, acima da conta. E talvez por já agir assim, e portanto ser um espírito de evolução, é que Jesus vai a ele.
Realmente, segundo o Êxodo (Êxodo
O fato pode ter parecido sempre a todos como um acontecimento ocasional e simples: passando por uma cidade onde não costumava deter-Se, Jesus escolhe uma casa grande para hospedar-se com os doze discípulos mais as mulheres que O acompanhavam.
Como conhecia Jesus aquele homem? Não nos esqueçamos de que Mateus também era coletor de impostos em Cafarnaum e fatalmente devia conhecer o colega, nem que fosse apenas de nome, e saber de sua generosidade. No entanto, sendo Zaqueu Chefe-dos-Coletores, talvez Mateus fosse, em Cafarnaum, um de seus subordinados funcionais, e costumasse prestar a ele suas contas. São suposições, mas cremos que tem lógica: "onde há uma explicação natural, não deve buscar-se uma milagrosa", é o princípio teológico. Ora, por indicação de Mateus, podia Jesus já se estar dirigindo para a casa de Zaqueu quando, na rua, Mateus que Lhe estava próximo e O conduzia, viu Zaqueu sobre a árvore e mostrou-o a Jesus: "Mestre, olhe lá Zaqueu em cima daquele sicômoro"! E Jesus a ele se dirige, chamando-o pelo nome.
Supõem alguns autores (Agostinho, Ambrósio, Crisóstomo e os modernos Loisye Reuss) que a frase de Jesus: "ele também é filho de Abraão", signifique que Zaqueu era gentio. Nada, porém, autoriza essa hipótese. O nome é do mais puro hebraico e o "também" pode referir-se muito melhor a "apesar de ser coletor-de-impostos, ele também é filho de Abraão como qualquer outro israelita".
Alguns textos, como as "Homilias" e as "Recognitiones" de Clemente dizem que Zaqueu aderiu a Pedro no apostolado, tornando-se mais tarde "inspetor" (bispo) em Cesareia (Patrol, Gr. vol, 2, col. 152 e vol 1, col. 1131). Clemente de Alexandria o identifica ao futuro apóstolo Matias (Patrol. Gr. vol. 8 col. 1249).
Episódio significativo no simbolismo profundo que apresenta.
Eis um exemplo do encontro com o Cristo, bem típico, e de uma clareza meridiana.
Cristo responde sempre a nosso chamado. E nas entrelinhas da narrativa, transparece a busca ansiosa de Zaqueu que procura vê-Lo. Sabia que o Cristo lá estava, não no retiro do deserto, mas entre a multidão rumorosa de grande cidade. E esforça-se por encontrá-Lo.
Quer ao menos vê-Lo. Sobe, então, suas vibrações (simbolizada essa elevação pela subida na árvore) porque é humilde, isto é, natural, e reconhece sua pequenez. Essa maneira de agir, elevar-se por ser pequeno, traduz seu desejo ardente do encontro.
Além disso, sua atuação na vida é de profundo desprendimento: distribui a metade de seus bens ao mendigos... Não se limita a uma percentagem do dízimo: vai à metade, sem temer descapitalizar-se. E se ocorre algum engano nas contas e cobra a mais, restitui quatro vezes o valor. Renúncia sincera, sem prender-se ao que a Lei estabelece. Em geral a lei determina o "mínimo", e até mesmo os que "se dizem" espiritualistas, se esforçam por burlar a lei pagando menos do que ela estipula. Zaqueu, o" justo", fazia espontaneamente a sua parte, com maravilhosa generosidade, pelo muito amor que de seu coração "puro" brotava.
Tendo como base de vida a renúncia, e realizando a busca com excepcional ânsia, teve a resposta merecida: "hoje me hospedarei em tua casa". Não há frase mais consoladora nos evangelhos. Nada vale tanto em nossa vida, do que quando a Voz Interna diz aos ouvidos de nossa alma: "hoje me hospedarei em tua casa" (cfr. "se alguém me amar seguirá minha doutrina, e o Pai o amará e virá a ele e fará morada nele", JO
O simbolismo é por demais claro: é a lição, com o exemplo vivo e com pormenores. Observemos.
Tudo isso adapta-se perfeitamente a Zaqueu - e ai vemos a exatidão absoluta das palavras exemplos e símbolos do Novo Testamento, sobretudo nas palavras de Jesus - cujas virtudes floresciam internamente, embora de fora todos o julgassem "pecador".
Pode perguntar-se por que não se fala em figueira, e sim em sicômoro. Porque sendo a figueira uma árvore baixinha, quase um arbusto, não poderia Zaqueu subir nela. E sendo em grego as palavras de grande semelhança, e uma composta da outra (figueirasykê, ao lado de sykomoros), qualquer pessoa poderia perceber o esoterismo do ensino (1).
(1) Daí defendermos a tese de que os Evangelhos devem ser lidos e meditados na língua original (grego), para que se percebam as minúcias dos significados. Pelo menos os comentadores devem fazêlo; pois baseando-se nas traduções correntes, os comentadores são muitas vezes levados a trair, com interpretações erradas, absurdas c até por vezes contrárias, o texto verdadeiro do ensino do Mestre, conforme está no original.
Quando essas condições são colocadas, não tenhamos dúvida: aguardemos. Quando menos o esperarmos, o Cristo virá ao nosso encontro, e hospedar-se-á em nossa casa. Se a iniciativa tem que partir de nós, a vinda Dele só depende Dele: mas não falhará. A resposta é infalível. E Sua vinda será como o relâmpago, que ilumina e incendeia repentinamente do oriente ao ocidente, do princípio ao fim.