Sabedoria do Evangelho - Volume 8

CAPÍTULO 11

OS FACÕES



LC 22:35-38


35. E disse-lhes: "Quando vos enviei sem bolsa, sem alforge e sem sandálias, não vos faltou algo"? Eles disseram: "Nada".

36. Então lhes disse: "Mas agora, o que tem bolsa, segure-a; igualmente o alforge; e o que não tem, venda sua capa e compre um facão,

37. pois digo-vos que deve realizar-se em mim o (que está) escrito: Foi contado entre os sem-lei, porque tem fim o que me diz respeito".

38. Eles disseram-lhe: Senhor, eis aqui dois facões. Disse-lhes ele: "São bastante".



Trecho privativo de Lucas, que relembra as recomendações feitas mais aos discípulos (os 10:4) que aos emissários (os 9:1). No momento, essas recomendações deixam de ter valor, pois Jesus "será contado entre os sem-lei", conforme as palavras citadas de Isaías (Isaías 53:12).

Como discípulos de um condenado político, não podiam contar com boa recepção nem hospitalidade, devendo bastar-se a si mesmos, pois de ora em diante viverão entre adversários, serão desprezados e até odiados e caçados à morte, por causa de Jesus.

Os discípulos não entenderam a alegoria do facão. A respeito dessa incompreensão, Cirilo de Alexandria (in Lagrange, o. c. pág.
558) sugere que Jesus deve ter tido "um sorriso indulgente e melancólico" (mononouchi diagelai tên phônen).

Bonifácio VIII, na bula Unam Sanctam, interpreta os dois facões como símbolos do poder temporal e do espiritual: precisava de uma defesa para sua ambição terrena.

Frase embaraçosa é a que traduzimos "tem fim o que me diz respeito (tò peri emoú télos échei). Estud á-la-emos adiante.

Entretanto, indefensável é a tradução das edições vulgares, que trazem "espada", em lugar de "facão".

O grego máchaira exprime de fato "facão", o facão do açougueiro, do pescador, do mateiro, do jardineiro, ou então a "cimitarra" curva, em oposição à espada reta que era dita xíphos. Não podem compreenderse essas "espadas" nas mão dos discípulos, simples pescadores, que se reuniam para comer a páscoa. Se ainda fossem oficiais do exército! Alguns autores servem-se dessa má tradução para buscar provar que Jesus era apenas simples subversivo contra o poder romano, e estava, na realidade, agregando o povo em torno de si para deslanchar uma revolução armada. E daí sua condenação política e ter sido entregue aos romanos. No entanto, por toda a Sua vida e Seus ensinamentos, não é possível crer-se que Jesus tivesse sequer pensado em revolução armada. Daí ser impossível crer que Seus discípulos tivessem "espadas" consigo... Seria o mesmo absurdo que acreditar que o Mahatma Gandhi possu ísse uma metralhadora automática, ou mesmo simples espingarda para combater os ingleses...

Que tivessem facões, era compreensível: eram pescadores, e levavam consigo seus pertences, Embora nem todos o fizessem.

No trajeto rápido entre o cenáculo e o monte das Oliveiras, aparece o diálogo que, embora curto, constitui lição proveitosa.

Trata-se porém de magnífico simbolismo, baseando-se numa lição anterior, do qual foi deduzido o presente ensino. Lamentavelmente ainda não foi entendido até aqui pelos comentadores ortodoxos, ou melhor, jamais encontramos nenhum comentário que tenha atingido o cerne da lição.

O fato nada lhes faltou, e eles o testificam, quando foram enviados desprovidos de elementos materiais para satisfazer a suas necessidades vitais e sem acessórios para seu conforto físico.

A lição: nos momentos de dificuldades, quando assomados pelas forças negativas, não pode o discípulo permanecer desprevenido e inerme, a fim de não ser surpreendido e aniquilado pelos adversários 1ndispensável, pois, que se muna dos meios espirituais, representados pelas obras de SERVIÇO, que equivalem ao dinheiro no plano físico (bolsa); que carregue suas baterias e acumuladores com a prece que alimenta a alma (alforge); e que dispense a proteção da defesa passiva (capa) para assumir a iniciativa da ação pela palavra (facão), como Paulo definiu: "Tomai o capacete da salvação e o facão do espírito, que é a palavra de Deus" (EF 6:17). E na epístola aos hebreus (hebreus 4:12) lemos ainda: "A palavra de Deus é viva e eficaz, e mais cortante que qualquer faca de dois gumes, e penetra até a divisão entre a alma e o espírito".

Então, ao invés de deixar-se levar pelas circunstâncias, aguardando benefícios dos outros, os discípulos deverão, em meio às dificuldades do caminho que crescerão muito, tomar a iniciativa e providenciar para si mesmos os meios de que carecem para realizar suas tarefas. E esses meios serão todos espirituais: prece que alimenta o espírito (alforge), obras de serviço que produzem merecimento e evolução (bolsa) e palavra candente e cortante que atinja as almas de todos aqueles a quem se dirigem (facão). Nada de ficar envolvidos no comodismo da espera (na capa), aguardando que as forças do Alto façam tudo: Deus se manifesta aos homens por intermédio dos próprios homens. E os discípulos são os homens designados para essa ação divina de atuação eficiente. "Tem fim o que me diz respeito" exprime o término de sua missão entre os homens, na qualidade de Jesus humano encarnado. Tudo o que se refere à humanidade de Sua vida na Palestina, chega ao fim.

Mais algumas horas de permanência entre os homens e tudo acabará com a "morte de Osíris" na cruz, depois da qual deverá desaparecer para todos os profanos, como se realmente tivesse desencarnado, só podendo aparecer diante dos iniciados que compreenderiam o alcance de Seus atos (cfr. vol. 5). Portanto, quanto a Ele pessoalmente, finalizará dentro de horas Sua tarefa. Daí em diante, competirá a eles a ação. E para essa ação, é indispensável a iniciativa, não a expectativa.

Na realidade, houve ainda incompreensão dos discípulos quanto ao simbolismo dos facões. Basta observar a alusão aos que estavam na cintura dos dois mais "cuidadosos", segundo a interpretação que o mundo empresta à defesa do corpo, mais importante para ele que o Espírito.