Arruma-te.
Episódio privativo de Mateus, cujas palavras procuraremos estudar com o máximo cuidado e atenção.
Segundo os códices, Judas viu que Jesus fora condenado (katekríthèi) e então, mudando a mente (etamelêthéis), tornou a levar (éstrepsen) o dinheiro (tà argyria) para o Sinédrio.
Significaria isso que Judas tinha esperanças de entregá-Lo e depois de vê-Lo escapar ileso das mãos dos adversários, como de outras vezes? Não teria sido essa uma esperança demais presunçosa e um risco grande demais, para ser deixado à sorte? E se essa foi a expectativa, não teria sido demais precipitada a reviravolta, já que até o último instante, mesmo condenado, o Mestre poderia escapar, se o quisesse? Meditando sobre o assunto, não conseguimos atinar com a atitude psicológica de Judas, registrada por Mateus. Ainda mais quando declara: "Errei, entregando sangue inocente", numa demonstra ção de consciência plena do que fazia: não agira equivocado, sua ação fora premeditada. Como e por que tão repentina modificação no modo de encarar a questão?
Continua o evangelista a narrativa, revelando o cinismo das autoridades eclesiásticas de Israel: "que nos importa" (ti pròs hêmâs)? cuida tu (sy ópêi), ou "Vê tu", ou mesmo "isso é contigo". Irritado, Judas teria jogado as moedas no santuário (eis tòn naón), o que trouxe embaraço aos membros do sinédrio, que diziam não poder colocá-lo no tesouro (eis tòn korbanân) por ser preço de sangue (cfr. DT
Jerônimo (Patrol. Lat. , o]. 26, col.
204) salienta, muito bem, que tinham escrúpulo quanto à destinação a ser dada ao dinheiro, mas não quanto a condenar Jesus à morte.
Após anotar que Judas, "saindo, sufocou-se" (apelthôn apêgxato), narra que compraram "o campo do oleiro" para servir de cemitério para os forasteiros, pelo que "é chamado até hoje campo de sangue".
Alguns perguntam se, em lugar de "oleiro" (iozer) não deveria ler-se "tesouro (uzar). De qualquer forma, as trinta peças, em Zacarias, são dadas a um oleiro, mas não compram seu campo.
Em Jeremias (33:6ss) há a narração da compra que o profeta faz a Anathoth, do campo de seu primo Hanameel. Também não é o campo de um oleiro. Onde se fala em "oleiro", é quando Jeremias visita um, que refaz seu vaso, que havia saído imperfeito (JR
Perguntamos: onde está a profecia?
Eusébio (De Dem. Evang. 10,4) diz que "os judeus haviam suprimido o texto citado por maldade contra os cristãos" ... Jerônimo (Patrol. Lat. vol. 26, col.
205) afirma que um judeu lhe mostrou um texto apócrifo de Jeremias, com essas palavras; mas por sua expressão parece que o velho tradutor da Bíblia não lhe deu crédito. Agostinho (Patrol. Lat. vol. 34 col. 1
175) escreve: quae dicta sunt per Jeremiam tam sunt Zachariae quam Jeremiae, et quae dicta sunt per Zacchariam, tam (sunt) Jeremiae quam Zachariae, isto é, "o que é dito por Jeremias, é tanto de Zacarias quanto de Jeremias, e o que é dito por Zacarias tanto de Jeremias quanto de Zacarias", querendo explicar que, sendo o livro inspirado por Deus, o nome do profeta pouca importância apresentava. Strack e Billerbeck (o. c. t. l, pág. 1029-1
030) aduz a hipótese seguinte: vindo Jeremias à frente de todos, assumia a paternidade de todas as profecias.
Essa hipótese cai diante do fato de que a presente é a única vez em que isso ocorre: em todos os outros passos, os profetas são corretamente citados com seus nomes.
Antes de concluirmos, vejamos, para confronto, o texto dos Atos
Vemos que as duas narrativas se contradizem frontalmente, pois nos Atos teria sido o próprio Judas a comprar um campo, e teria caído para a frente (prênês - pronus) - e não se diz como - e "estalou no meio, derramando todas as suas vísceras". Na pena de um médico a expressão deveria ser técnica, mas esse fenômeno não ocorre na sufocação, nem mesmo por enforcamento, como o quer a tradição. A não ser, como alguns sugerem, que o corpo tivesse permanecido pendurado na corda vários dias, até apodrecer e romper-se, pela inchação, a pele do ventre deixando cair as vísceras apodrecidas na terra. Mas se isso tivesse ocorrido assim, Lucas não teria empregado o verbo lakéo (elákêsen), com o sentido preciso de "estalar", isto é, de dar um estalo, como o bater de palmas.
De toda essa confusão, e sobretudo da citação errada do nome de um profeta - inadmissível num auto "inspirado", deduzimos que ambos os trechos foram retocados por mãos inábeis, a fim de chamar sobre Judas o desprezo dos primeiros cristãos e das gerações posteriores.
Qual teria sido o texto original? Qual seria a mensagem real de ensinamento que a verdadeira tradição iniciática teria desejado deixar aos discípulos das eras porvindouras?
Evidentemente estamos diante de um dos trechos que apresentam maior dificuldade de interpretação e estudo: tentemos.
O argumento mais tentador é o de rejeitar de golpe a versão de Mateus, quanto ao destino dado às trinta moedas, tão claramente pastichado do "profeta", embora confundindo a fonte, ou por isso mesmo, atribuindo a Jeremias uma alusão de Zacarias. A inabilidade do manuseador do texto é patente, embora quem no fez, o tivesse feito desde as primeiras edições da narrativa de Mateus. Vemos que ele se lembrou de um episódio escriturístico e quis criar uma situação que ligasse o drama de Jesus a uma profecia. Forjou, então, a cena de Judas perante o Sinédrio, e tão inabilmente o fez, que ficou inaceitável, apesar de citar nomes e de dizer que "até hoje" se chama "Campo de sangue".
Mas a causa que deu origem a esse nome é totalmente diversa nos dois narradores: Lucas diz ter-se assim chamado porque nele morreu Judas, ao passo que Mateus afirma que recebeu esse nome por ter sido comprado pelo Sinédrio com as trinta moedas, "preço de sangue".
Racionalmente, essa contradição anula a verossimilhança do fato não importando o que a esse respeito tenham escrito os autores antigos, por mais eminentes que tenham sido.
O manipulador que escreveu as palavras em Atos, com a agravante de havê-las colocado nos lábios de Pedro, lembrava-se apenas vagamente do que havia sido acrescentado em Mateus. Os comentadores que tentam explicar as discordâncias evidentes, sucumbem a puerilidades indefensíveis, ao dizer que Pedro sabia que Judas se enforcara, mas que pretendeu, com a imagem tétrica do arrebentar-se de seu corpo, impressionar mais a audiência.
Mas, perguntamos: foi Judas que comprou o campo e nele se enforcou ou foi o Sinédrio que comprou?
Se foi o Sinédrio, será que Judas sabia qual tinha sido o campo comprado para ir lá e enforcar-se? Se não, em que lugar se enforcara ele? Se não foi no campo comprado, por que haveria Pedro de mentir num discurso oficial de chefe da "comunidade", perante o colegiado que estava para escolher o substituto de Judas? Onde ficamos?
Tudo nos leva à segunda hipótese. Havia um texto original, mas diferente daquele que hoje lemos.
Como chegar a ele?
Examinemos o caso pela crítica interna.
Descobrimos no trecho uma das características mais típicas do estilo de Mateus: "para que se cumprissem as profecias": era o desejo de comprovar, pelo que estava escrito nas Escrituras israelitas, que Jesus era realmente o Messias esperado pela nação Judaica. No entanto, a inadmissível troca de nomes do profeta (constante de todos os códices) vem provar-nos que o erro NÃO FOI do evangelista. O manuseador não conhecia bem as Escrituras, e cometeu o erro, deixando-nos a pista para que descobríssemos sua malandragem. Apesar de inteligente na ânsia de imitar o estilo de Mateus, foi atraiçoado por sua memória.
Inteligente, também, o manipulador do texto de Lucas, que busca dar minúcias que sejam particulares de um médico. Mas o verbo "estalar" ao invés de "romper-se", revela também uma pista. E as contradi ções entre os dois narradores dá o golpe de graça final para rejeição do texto tal como se apresenta hoje a nossa leitura. Racionalmente, é impossível encontrar qualquer acordo que seja plausível ou veross ímil.
Diante da necessidade de tornar abominável a figura de Judas, perante o grande público, a fim de evitar imitadores, era mister denegri-lo ao máximo, colocando-o o mais possível na sombra, para que a figura de Jesus resplandecesse ao máximo. Com essas duas necessidades fatais, foi julgado lícito e talvez até meritório que se forjasse um pormenor falseado, em vista daquele terrível princípio imoral, de que os fins justificam os meios.
Em que ficamos, então? Será possível chegarmos a reconstituir o texto original e daí deduzir alguma lição?
O desespero de Judas ao ver sem esperança a situação de seu Mestre poderia ser justificável, se ele não pertencesse ao Colégio Iniciático e, portanto, não estivesse a par do que DEVERIA acontecer.
Mas, cônscio de antemão de como fatalmente DEVIAM OCORRER os fatos, não havia razão para tão cedo verificar-se um arrependimento teatral.
Admitimos que tenha havido um choque tremendo na personalidade humana de Judas (não na individualidade) ao ver Jesus demonstrar, sobre a cruz, todos os sintomas da morte real. Nesse ponto, sim, deve ter fraquejado. Mas não antes disso. Como discípulo de escol, escolhido como sacerdote para oferecer a vítima ao altar do holocausto, conhecendo - como devia conhecer a fundo - os ritos da iniciação, SABIA que, para galgar mais um passo, era essencial que sobreviesse a condenação, para que pudesse sujeitar-se ao sacrifício que O elevaria na escala iniciática.
(1) A expressão evangélica tetartaios (latim quatriduanus), traduzido como "quatro dias", compreende exatamente três dias e três noites em nossa contagem atual. Para os judeus da época, o dia começava as 18 horas de um dia, e finalizava às 18 horas do dia seguinte. Então temos: a) a tarde de um dia até as 18 horas - 1 dia; das 18 às 18 do segundo dia; das 18 às 18 do terceiro dia; das 18 do terceiro até a tarde do dia seguinte - quarto dia.
Com Jesus o caso foi muito mais grave: não apenas as torturas dos açoites, como ainda o fato de ser cravado na cruz, o que produziu hemorragia e, finalmente, o golpe de lança que atingiu a pleura do lado direito, provocando perda de água (líquido seroso pleurático) misturada com sangue. Que o golpe não atingiu sequer o pulmão, prova-o o fato de que o líquido seroso escorreu para fora, se tivesse atingido o pulmão, com a colabase deste, o líquido teria sido derramado para dentro da cavidade torácica, como estudaremos melhor a seu tempo.
Diante desse quadro desanimador, é que acreditamos tenha sobrevindo a Judas a sensação de desespero.
Mas ousamos adiantar a hipótese de que esse desespero tenha ocorrido não tanto pelo fato de ter sido ele a fazer a entrega (parádosis) do Mestre, a qual constituíra honrosa tarefa sua, como pela tristeza desalentadora de verificar que Jesus. não conseguira dar esse passo conforme fora previsto e predito por Ele, pois sucumbira vencido pelos rudes golpes, sem superar a prova permanecendo em vida. Talvez tenha sido realmente essa a causa que provocou o desespero de Judas, levando-o ao suicídio: parecer-lhe que Jesus havia fracassado. Mas o fato se deu depois da crucificação e do lanceamento do lado da vítima pelo soldado romano.
Temos consciência de que a questão "Judas" tem sido tratada por nós de maneira tolamente nova e original, diferente de tudo o que foi dito e escrito durante os últimos dois mil anos. Mas não podemos resistir ao impulso de escrever aquilo que SENTIMOS em nosso âmago mais profundo, pois não admitimos as hipóteses nem de trair aquilo que percebemos como verdadeiro, nem de sermos hipócritas somente para acompanhar o coro da maioria de vozes dos homens, encarnados ou desencarnados. Se estamos errados em nossas considerações a respeito desses fatos, que a sublime misericórdia de Jesus nos perdoe e releve nossa ignorância. Mas é-nos impossível calar o que nos parece ser a verdade dos fatos.