O verbo blasphêmein tem dois sentidos básicas: o primeiro, mais popular, e "injuriar" ou "insultar", referindo-se a qualquer pessoa (cfr. Isócrates, 12, 65 e 15,2; Demóstenes, 51, 3, etc.) ; o segundo, mais técnico, significa "falar profanamente das coisas iniciáticas", ou proferir injúrias contra a Divindade ou as coisas sagradas", tendo sido, neste caso, transliterado para o português "blasfemar"; usado, também nesse sentido por autores profanos (Vettius Valens, 58, 12 e 67, 20; Demóstenes, 25, 26; Platão, De Legibus, 800 c. d), na versão dos LXX (Ezequiel
34) e no Novo Testamenho (MT
As expressões "menear a cabeça" (kinoúntes tés kephalês, Mateus e Marcos) e "torcer o nariz" (exemykterizôn, de myktêr, Lucas) se equivalem, como sinais de desaprovação, subentendendo ao mesmo tempo, certo desprezo.
As palavras acompanham os gestos. Desafiam que desça da cruz, pois é isso que significa "salve-se a si mesmo". E volta o argumento da destruição do santuário (naós) e de sua reconstrução (oikodomôn) em três dias, com aquela repetição dos mesmos argumentos, típica dos desequilibrados mentais com monoideísmo, que se apegam a um só ponto, porque incapazes de raciocinar.
A libertação, ou descida da cruz, para eles seria uma prova de que o Pai o amava (thélei, literalment "quer", no sentido de "querer bem", que corresponde ao hebraico hafaz; a frase é tirada do SL 22;8, que transcreveremos mais adiante na íntegra).
Diz Lucas que os soldados ofereceram a Jesus "vinagre", ou seja, a conhecida bebida acre, que utilizavam para dessedentar-se. Consistia em vinagre misturado com água, contendo, às vezes, ovos batidos (cfr. Plauto, Miles, 836; Truculentus, 609; Plínio, História Naturalis
O aceno de Lucas à inscrição sobre a cruz serve, apenas, como complementação de passagem à descrição da cena, não se demorando o evangelista nesse pormenor.
Mateus e Marcos afirmam que os dois salteadores participaram do coro das zombarias; no entanto, Lucas narra um episódio inédito e que impressiona (cfr. Agostinho, Patr. Lat. col. 36, col. 1190).
Um dos salteadores, a quem a tradição atribui o nome de DIMAS, repreende o companheiro severamente, e, dirigindo-se a Jesus profere uma frase reveladora de correto conhecimento espiritual. Não solicita que o liberte do suplício, nem que o faça viver, mas apenas que "se lembre dele, quando estiver em seu reino".
A palavra PARAÍSO, transcrição do persa pairi-daêza), é encontrada várias vezes no Antigo Testamento, com o sentido de "jardim plantado", de "bosque" ou "pomar" amenos, mas sempre no solo da Terra. e não flutuando entre as nuvens. Foi a tradução encontrada pelos LXX para a palavra hebraica eden raiz que significa "prazer, delícia, deleite, gozo (também sexual).
No Gênesis (2:8, 9, 10, 15, 16 e 3:1, 2, 3, 8, 10, 23 e
24) foi empregada para designar, segundo a vers ão esotérica, o local onde Deus colocou Adão. No sentido esotérico expressa o estado da alma (psychê) dos animais que, ainda não discernindo entre bem e mal, vivem no prazer permanente do hoje, gozando a vida sem ontem e sem amanhã, deleitando-se no instante do agora.
Em outros passos no Antigo Testamento encontramos o termo parádeisos como local físico de deleite ameno: "uma carta para Asaph, guarda do BOSQUE (paradeisou)", (Neh. 2:8); "Fiz para mim jardins (kêpous) e QUINTAIS (paradeísous) e neles plantei árvores frutíferas de todas as espécies " (Ecl. 2:5)" Os teus renovos são um pomar (parádeisos) de romãs com frutos preciosos" (Cânt. 4:13).
Há ainda os que apenas designam "jardim" como lugar de repouso e prazer ameno: "E eu saí como um canal do rio e como um aqueduto para um jardim (parádeison)" (EC
12:4 diz: "E conheço esse homem (se no corpo, se fora do corpo, não sei: Deus sabe) que foi arrebatado ao JARDIM (eis tòn parádeison) e ouviu palavras impronunciáveis, que não é lícito o homem faSABEDORIA DO EVANGELHO lar". E Apoc, 2:7 onde lemos: "Ao vencedor dar-lhe-ei de comer da árvore da vida, que está no JARDIM (en tôi paradeísôi) de Deus".
Agostinho (Patr. Lat. vol. 35, col 1
927) interpreta sempre como o "céu", no sentido católico. Mas outros compreendem como o eden do Gênesis, o vulgarmente chamado "paraíso terrestre", como Cirilo de Jerusalém (Patrol. Gr, vol. 33, col. 809), João Crisóstomo. (Patr. Gr. vol. 49, cal. 409/410), Teofilacto (Patr. Gr. vol. 123, col 1
104) e Eutímio (Patr. Gr. vol. 129, col. 1092).
Segundo Henoch (60:8, 23 e 61:
12) não se trata de "céu", mas de Hades. Entretanto, temos que interpretar o verdadeiro "paraíso" segundo o dizer de Ambrósio (Patr. Lat. vol. 15, col. 1
834) : vita enim esse cum Christo; ideo, ubi Christus, ibi vita, ibi regnum, ou seja, "Com efeito, a vida é estar com Cristo; por isso, onde está Cristo, aí está a vida, aí o reino".
O trecho ensina-nos meridiana lição do modo como o mundo considera e trata os Emissários do Bem, com suas zombarias e desafios, para que saia das dificuldades, como se os evoluídos se comprazessem, qual os involuídos em facilidades e prazeres físicos e ausência de dores. Mal sabem que a dor é exatamente a porta por onde se alcança o cume da montanha, na árdua e íngreme subida evolutiva.
Como em seu espírito de serviço os medianeiros levam a cura aos corpos enfermos dos outros, julgase que possuem os mesmos poderes em relação a si mesmos, esquecidos, ou ignorando, que, sendo criaturas devedoras à Lei do Carma, também eles "precisam" expugar os pesados fluidos que agregaram a si em vidas pretéritas ou na mesma vida atual.
Esse, evidentemente, não era o caso de Jesus, que se situa em outra faixa, como também o de outros seres elevados: a dor, nessa ambiência superior, é a escalada de mais um degrau evolutivo, o que se não consegue sem esforço doloroso: toda iniciação em nova estrada requer readaptação, exigindo sacrifício que inclui, por vezes, violência, não só espiritual como física.
Tudo isso é inconcebível para o vulgo em atraso, que julga bem e felicidade somente o que se relaciona com o corpo denso e o astral inferior (saúde, conforto, sensações de prazer, emoções felizes). O essencial é saber receber com resignação, sendo com alegria, aquilo que nos chega com vistas à nossa ascensão. Não importa se se trata quer de soldados broncos, quer de sacerdotes cultos: vale o estágio espiritual em que se encontra a individualidade, não o grau cultural conquistado pela personagem transitória.
E a prova disso é que um dos salteadores, crucificado com Jesus, percebeu o alcance do que se passava, e pede que "Jesus se lembre dele quando estiver em seu reino".
Alguns intérpretes supõem tratar-se do "céu" católico, da "bem-aventurança eterna", como dizem. O absurdo é palpável, quando sabemos que o próprio Jesus não subiu a esse "céu" nesse mesmo dia, mas ao invés desceu ao "Hades", e só quarenta e dois dias depois disse aos discípulos que "subiria ao Pai". Isso se entendermos "subir ao Pai" no sentido católico, o que não corresponde, nem isso, à realidade dos fatos.
Como entender, então, esse pedido, falando em "reino", quando o salteador via Jesus a estertorar numa cruz a seu lado, um simples carpinteiro humilde?
Não podia, pois, tratar-se de reino material, na Terra. Será que ele teve, naquela hora, a revelação interna do que se passava? Será que já ouvira de Jesus alguma explicação aos discípulos a esse respeito?
Ou será que nesse passo de Lucas encontramos, na realidade, um simbolismo profundo, ocultado sob a aparência de um fato?
Inegavelmente, o conhecido como o "bom ladrão" dá-nos maravilhosa lição a respeito da prece sincera, que provém do âmago do coração nos momentos mais dolorosos de nossa jornada, enquanto estamos crucificados na carne. Embora em dores atrozes, causadas pela necessidade de purificar-nos de nossos sérios débitos do passado, tenhamos a certeza de que, a nosso lado, crucificado conosco, porque, habitando dentro de nós, está o Cristo, que ouvirá e atenderá nossa prece, se realmente for a expressão de nossos sentimentos íntimos.
No entanto, se nossa atitude for de rebeldia, como a do que chamamos "mau ladrão", que nos adiantará estarmos crucificados com o Cristo, ao lado de Jesus? Qualquer revolta íntima dissintoniza com o Cristo interno, e nossa dor se multiplicará, já que em nós mesmos não alimentamos qualquer esperança.
Aí temos, portanto, duas lições: a da prece e a da resignação, humildemente reconhecendo que merecemos o que estamos recebendo".
A promessa de Jesus também requer meditação.
Segundo sabemos, cada um recebe segundo suas obras (cfr, vol. 5). Ora, a vida do "bom ladrão" não havia transcorrido com ações positivas, pois ele mesmo reconhece: "recebemos o merecido do que fizemos". Logo, teria sido clamorosa injustiça, sua liberação total naquele momento.
Mais: é-nos dito que "todos chegaremos à medida da evolução do Cristo" (EF
Concluímos, pois, que não há possibilidade de entender-se a frase de Jesus como prova de obtenção "nesse dia" ("hoje") da "bem-aventurança celeste", antes de o próprio Mestre a ter conseguido.
Que há de verdadeiro na frase?
Se bem entendemos a doutrina longamente exposta nos Evangelhos, a finalidade primordial da encarnação da criatura humana é a obtenção da felicidade suprema do Encontro com o Cristo Interno, por meio do MERGULHO no imo do coração, o que - quando permanente - constitui a liberação total.
Mas, muitas vezes experimentamos esse Encontro sublime em átimos de segundo, quer conscientemente, quer inconscientemente. É natural e inconsciente, por exemplo, no gozo inigualável do milionésimo de segundo do orgasmo sexual - pois só unificados com o Cristo Interno, temos a capacidade de tornar-nos "criadores", à semelhança da ação criadora divina -. Daí ser tão forte esse impulso, que leva a humanidade a superar todos os percalços e sofrimentos da gestação e o trabalho da manutenção e educação dos filhos. E esse prazer foi concedido aos seres humanos para que fossem experimentando aos poucos a satisfação dessa felicidade total (cfr. no vol. 2), as opiniões de Teilhard de Chardin e de Paul Brunton).
Ora, o Encontro com o Cristo Interno faz que a criatura passe a conscientizar-se ("que entre") no "reino celeste", abandonando, por instantes, o reino hominal terreno. Isso, sem dúvida, está dentro de toda lógica, e pode compreender-se racionalmente; portanto, a promessa podia ser feita e cumprida: hoje mesmo estarás comigo (terás um Encontro comigo, diz O Cristo) no jardim delicioso que supera e anula as dores e dá a satisfação da felicidade, apesar de todo o sofrimento.
E talvez, com esse sofrimento da crucificação, Dimas também haja dado seu primeiro passo na senda iniciática, tendo abertas diante de si as portas que conduzem à plenificação da Paz Interior.