Cristianismo e Espiritismo

Nota 1



Sobre a autoridade da Bíblia e as origens do Antigo Testamento Para a maior parte das igrejas cristãs a Bíblia é a suprema autoridade, sendo os sessenta e seis livros que compõem o Antigo e o Novo Testamento a expressão da "palavra de Deus".

Nós, filhos curiosos do século XX, perguntamos: porque precisamente sessenta e seis livros? Porque nem mais, nem menos?

Os livros do Antigo Testamento foram escolhidos, entre muitos outros, por desconhecidos rabinos judeus. O valor desses livros é, de resto, muito desigual. O segundo livro dos Macabeus, por exemplo, é muitíssimo superior ao de Ester; o livro da sabedoria excede em valor o Eclesiastes.

O mesmo aconteceu com o Novo Testamento, composto de conformidade com uma norma que os cristãos do primeiro século não conheciam. O Apocalipse foi escrito no ano 68 depois de Jesus Cristo. O quarto Evangelho só apareceu em fins do século I - alguns dizem no ano 140 –; um e outro trazem o nome de S. João; mas esses dois livros são animados de um espírito bem diferente. O primeiro é obra de um cristão judeu; o outro é escrito por um cristão da escola filosófica de Alexandria, que não só havia rompido com a dogmática judaica, mas se propunha mesmo combatê-la.

Compreende-se facilmente que os reformadores protestantes, baseando-se no princípio de que a Bíblia constitui a "palavra de Deus" tenham tropeçado em insuperáveis dificuldades. Foram eles, sobretudo, que emprestaram à Bíblia essa autoridade absoluta que tantos abusos devia ocasionar: é necessário, porém, não os julgar unicamente conforme os resultados da teologia que instituíram. As necessidades do tempo os coagiram a opor à autoridade da Igreja Romana, ao abuso das indulgências, ao culto dos santos, às obras mortas de uma religião em que as frívolas práticas haviam substituído a fé vivificadora, a soberania de Deus e a autoridade da sua palavra, expressa na Bíblia.

Não obstante a disparidade dos elementos que compõem essa obra, não se lhe poderia contestar a alta importância e a inspiração por vezes elevada. Um rápido exame nos provará, todavia, que ela não pode ter a origem que lhe é atribuída.

Gênesis - Se lermos com atenção os primeiros capítulos do Gênesis verificaremos que encerram duas narrativas distintas da Criação. Os textos do capítulo I até o capítulo II, vv. 1 a 3, contêm uma primeira exposição, mas, no capitulo II, 4, começa uma outra narração; essas duas narrativas nos revelam o pensamento de dois autores diferentes. Um, falando de Deus, o chama Eloim, isto é, "os deuses". Na opinião de certos comentadores, esse termo designaria as forças, os seres divinos, os Espíritos colaboradores do único.

Esse parecer é confirmado por muitas passagens do sagrado livro. "Eis aí está feito Adão como um de nós", lê-se por exemplo, no Gênesis. (Nota cxxvii: Cap. III, 22.) "Eu sou o Jahveh de vossos deuses", diz o Levítico. (Nota cxxviii: XIX, 3.) No livro de Daniel, falando desse profeta, a mulher de Baltazar afirma que ele possui o espírito dos deuses santos. (Nota cxxix: Daniel 5:11.) Com o plural Eloim, exprimindo a coletividade, o verbo deve ser empregado no singular: os deuses "criou", ao passo que, falando essas forças de si mesmo, o verbo está no plural. Disse Eloim: "Façamos o homem à nossa imagem".

O outro autor do Gênesis emprega o termo Jeová - Jahveh, segundo os modernos orientalistas - nome particular do Deus de Israel. Essa diferença é constante e se encontra em toda a obra, a tal ponto que os exegetas chegaram a distinguir esses dois autores, designando-os pelos nomes de autor Eloísta e autor Jeovista.

Cada um deles tem suas opiniões particulares. O primeiro, por exemplo, se esforçou por dar uma sanção divina à instituição do sábado, alegando que Deus havia, ao sétimo dia, repousado. O segundo explica o problema do sofrimento humano. Provém, diz ele, do pecado, e o pecado decorre da queda de Adão. Terrível encadeamento de consequências dogmáticas, que devia pesar aflitivamente sobre o pensamento humano e lhe deter o surto.

Renan proclama esse autor o maior dos filósofos. Aí está uma apreciação bem singular. Não se pode, inquestionavelmente, negar que as suas opiniões tivessem inspirado São Paulo, Santo Agostinho, Lutero, Calvino, Pascal; mas em que terríveis dédalos não as emaranharam a razão humana!

No capítulo IV do Gênesis uma estranha contradição se patenteia. Depois de haver morto Abel, Caim se retira para um país distante, no qual encontra homens, casa-se e funda uma cidade.

Coisa é essa que gravemente afeta a narrativa da Criação e a teoria da unidade de origem das raças humanas.

Deuteronômio - Tomemos agora em consideração este quinto livro do Antigo Testamento. Diz o capítulo I, v. 1, que é ele obra de Moisés. Nisso há um primeiro exemplo dessas piedosas fraudes que consistiam em publicar um escrito sob o nome de um autor respeitável para lhe dar maior autoridade. Somos informados da origem desse livro pela narrativa dos Reis 2, XXII, vv. 8 e 10. Foi achado no templo, sob o reinado de Josias, um dos últimos reis de Judá, cinco séculos depois de Moisés, numa época em que o astro da dinastia de Judá já se inclinava para o ocaso. O verdadeiro autor o tinha evidentemente colocado no templo, a fim de que fosse descoberto e apresentado ao rei, piedoso homem, que tomou o livro a sério, acreditou que provinha de Moisés e empregou toda a sua autoridade no sentido de aplicar as reformas nele reclamadas. Os judeus achavam-se então engolfados na idolatria; os preceitos do Decálogo de tal modo estavam esquecidos que o autor do Deuteronômio, um reformador bem intencionado, tendo-se proposto recordá-los, provocou um verdadeiro temor nos espíritos e conseguiu fazer aceitar o seu livro como uma nova revelação.

Observemos, a esse respeito, no Deuteronômio, cap. XXVIII, que as sedutoras promessas e as aterradoras ameaças com que se esforça o autor pelo restabelecimento do culto a Jeová se referem exclusivamente à vida terrestre, parecendo não possuir noção alguma da imortalidade.

A mesma coisa se dá com o Pentateuco, conjunto de obras atribuídas a Moisés. Em lugar algum o grande legislador judeu, ou os que falam em seu nome, faz menção da alma como entidade sobrevivente ao corpo. Na sua opinião, a vida do homem, criatura efêmera, se desdobra no acanhado círculo da Terra, sem perspectiva aberta para o céu, sem esperança e sem futuro.

Na maior parte, os outros livros do Antigo Testamento não falam do futuro do homem senão com a mesma dúvida, com o mesmo sentimento de desesperadora tristeza.


Diz Salomão (Eclesiastes 3, vv. 17 e seguintes): "Quem sabe se o espírito do homem sobe às alturas? Meditando sobre a condição dos homens, tenho visto que é ela a mesma que a dos animais. Seu fim é o mesmo; o homem perece como o animal; o que resta de um não é mais do que o que resta do outro; tudo é vaidade". (Nota cxxx: "Tudo é nada" diz o texto hebraico.)

É então isso a "palavra de Deus"? Pode-se admitir que ele tenha deixado ao seu povo predileto ignorar os destinos da alma e a vida futura, quando esse princípio essencial de toda doutrina espiritualista era, havia muito tempo, familiar na Índia, no Egito, na Grécia, na Gália?

A Bíblia estabelece como princípio o mais absoluto monoteísmo. Nela não se trata da Trindade. Jahveh reina sozinho no céu, zeloso e solitário. Mas Jahveh primitivamente não é mais que um deus nacional, oposto às divindades cultuadas pelos outros povos. Só mais tarde os hebreus se elevam à concepção desse Poder único, supremo, que rege o Universo. Os anjos não se mostram senão de longe em longe, como mensageiros do Eterno.

Não há lugar algum para as almas dos homens nos céus tristes e vazios. No ponto de vista moral, Deus é apresentado na Bíblia sob aspectos múltiplos e contraditórios. Dizem-no o melhor dos pais e fazem-no desapiedado para com os filhos culpados. Atribuem-lhe a onipotência, a infinita bondade, a soberana justiça, e rebaixam-no até ao nível das paixões humanas, mostrando-o terrível, parcial e implacável. Fazem-no criador de tudo o que existe, dão-lhe a presciência e, depois, apresentam-no como arrependido da sua obra: Gênesis, cap. VI, vv. 6 e 7: "Ele se arrependeu de ter feito o homem na terra e teve por isso um grande desgosto em seu coração. " E diz o Eterno: "Eu exterminarei da face da terra os seres que criei, desde os homens até os animais, até tudo o que se roja pelo chão, e até os pássaros dos céus, porque me arrependo de os haver criado. " Só Noé e sua família encontraram graça diante do Eterno. Em que se tornam, depois dessa narrativa, a previdência e o poder divino?

Assinalemos entretanto: a noção da Divindade se vai depurando à medida que evolve o povo. Os profetas, indivíduos inspirados, reprovam, em nome do Senhor, os sacrifícios cruentos, primeiras homenagens dos hebreus a Jahveh; condenam o jejum e os sinais exteriores de humilhação, nos quais o pensamento não tem a menor intervenção. "Quando me ofereceis os holocaustos de vossas rezes pingues, não me dais prazer algum", exclama o Eterno pela boca de Amós. "O que exijo é que a retidão seja como uma água que transborda, e a justiça como uma torrente impetuosa". (Nota cxxxi: "Amós" V, 22, 24.) "Não jejuais como convém - escreve Isaias, - Curvar a cabeça como um junco e fazer cama de saco e de cinza, chamaras tu a isso o jejum agradável ao Senhor? Mas o jejum que me agrada é antes este: Rompe as ligaduras da maldade; desata os laços da servidão, deixa ir livres os oprimidos; reparte o teu pão com o que tem fome e introduze em tua casa os infelizes e os peregrinos; dá de vestir aos nus e não desprezes os teus semelhantes, e então romperá como a aurora tua luz, a justiça irá diante de tua face e a glória do Eterno te acompanhará". (Nota cxxxii: "Isaías", LVIII, 4-8.) "O que o Senhor requer de ti - diz Miquéias - é que pratiques a justiça, que ames a misericórdia e que andes humildemente com o teu Deus". (Nota cxxxiii: "Miquéias", VI, 8.) Em sua obra intitulada Em torno de um livrinho, respondendo às criticas suscitadas pelo seu trabalho sobre o Evangelho e a Igreja, externa o abade Loisy a opinião de que, em seu conjunto, não têm os livros do Antigo Testamento outro objetivo além da instrução religiosa e edificação moral do povo. "Nele se desconhece a exatidão bibliográfica - acrescenta; - a preocupação do fato material e da história objetiva brilha pela ausência. " É também essa a minha opinião. Daí segue que não poderia a Bíblia ser considerada "a palavra de Deus" nem uma revelação sobrenatural. O que se deve nela ver é uma compilação de narrativas históricas ou legendárias, de ensinamentos sublimes, de par com pormenores às vezes triviais.

Parece, em certos casos, se inspirarem os autores do Pentateuco em revelações mais antigas, como o faz notar Swedenborg, com provas em apoio. Os iniciados encaram o Antigo Testamento como puramente simbólico e nele pensam descobrir todas as verdades por meio da Cabala. Somos também de opinião que o pode revestir a forma de um símbolo. Do mesmo modo que aí vemos a preparação do povo hebreu para o advento do Cristianismo, sob a direção de Moisés e dos profetas, aos quais se mostra ele às vezes tão rebelde, pode igualmente esse livro representar-nos a marcha ascensional do espírito humano para a perfeição, a que o conduzem os Espíritos superiores de um e do outro mundo.

O Antigo Testamento parece destinado a servir de laço entre a raça semítica e a ariana. Jesus, com efeito, não parece mais ariano que judeu? Sua infinita mansidão, a serena claridade de seu pensamento não estão em oposição com os rígidos, com os sombrios aspectos do Judaísmo?

Essa obra não remonta a tão antiga data como se tem de bom grado feito crer. Foi em todo caso retocada mais ou menos tempo depois da volta da Babilônia, porque nela a espaços se encontram alusões ao cativeiro dos judeus nesse país. (Nota cxxxiv: Cerca do ano 700 antes da nossa era.) É bem a obra dos homens, o testemunho da sua fé, das suas aspirações, do seu saber, e também dos seus erros e superstições. Os profetas nela consignaram a palavra vibrante que lhes era inspirada; videntes, descreveram as imagens das realidades invisíveis que lhes apareciam; escritores, delinearam as cenas da vida social e os costumes da época.

Foi com o intuito de dar a esses ensinos tão diversos maior peso e autoridade, que foram eles apresentados como emanados da soberana potência que rege os mundos.