Dezenove séculos decorreram desde os tempos do Cristo, dezenove séculos de autoridade para a Igreja, dos quais doze de poder absoluto. Quais, na hora presente, as consequências do seu ensino?
O Cristianismo tinha por missão recolher, explicar, difundir a doutrina de Jesus, dela fazendo o estatuto de uma sociedade melhor e mais feliz. Soube ela desempenhar essa grande tarefa? "Julga-se a árvore pelos frutos", diz a Escritura. Reparai na árvore do Cristianismo. Verga ela ao peso de frutos de amor e de esperança?
A árvore, indubitavelmente, conserva-se sempre gigantesca, mas, na ramaria, quantos galhos não foram decepados, mutilados; quantos outros não secaram, não ficaram infecundos! O peregrino da vida se detém, exausto, à sua sombra, mas é em vão que aí procura o repouso da alma, a confiança, a força moral necessária para continuar o caminho. Ele aspira a sombras mais propícias; apetecem-lhe mais saborosos alimentos; instintivamente o seu olhar explora o horizonte.
Na hora atual, neste século de progresso, o homem ainda nada sabe do futuro, da sorte que o aguarda no fim da sua estância neste mundo. A fé na imortalidade é fraquíssima em muitos dos que se inculcam discípulos do Cristo; por vezes, as suas esperanças vacilam ao sopro glacial do cepticismo. Os fiéis lançam no túmulo os seus mortos e, com as marteladas a pregar o esquife, a dúvida sombria lhes pesa na alma e a confrange.
O padre conhece a sua fraqueza; ele sente-se frágil, sujeito ao erro como os que têm a pretensão de dirigir, e, se não estivessem em causa a sua dignidade e situação material, reconheceria a sua incapacidade, deixaria de ser um cego condutor de cegos. Porque aquele que, nada sabendo da vida futura e das suas verdadeiras leis, erige-se em diretor dos outros, torna-se aquele homem de que fala o Evangelho: "Se um cego guia outro, vêm ambos a cair no barranco" (Mateus., XV, 14).
Fez-se a obscuridade no santuário. Não há um único bispo que pareça conhecer, acerca das condições da vida de além-túmulo, o que sabia o menor iniciado dos antigos tempos, o diácono mais humilde da primitiva Igreja.
Fora, imperam a dúvida, a indiferença, o ateísmo. O ideal cristão perdeu a sua influência sobre o povo; a vida moral se enfraqueceu. A sociedade, ignorante do elevado objetivo da existência, atira-se com frenesi à fruição dos gozos materiais. Um período de perturbação e decomposição se iniciou, período que conduziria ao abismo e à ruína se, já agora, confusamente, não começasse um novo ideal a assomar e esclarecer as inteligências.
De que procede ao atual estado de coisas?
Durante doze séculos a Igreja dominou, formou a seu talante a alma humana e toda a sociedade. Em sua mão se concentravam todos os poderes. Todas as autoridades residiam nela, ou dela procediam. Ela imperava sobre os espíritos como sobre os corpos; imperava pela palavra e pelo livro, pelo ferro e pelo fogo. Era senhora absoluta do mundo cristão; nenhum freio, nenhum marco limitava a sua ação. Que fez ela dessa sociedade? Queixa-se da sua corrupção, do seu cepticismo, dos seus vícios. Esquece-se de que, acusando-a, acusa-se a si mesma? Essa sociedade é obra sua; a verdade é que ela foi impotente para a dirigir e melhorar. A sociedade corrompida e céptica do século XVIII saiu de suas mãos.
Foram os abusos, os excessos, os erros do sacerdócio que determinaram o seu estado de espírito. Foi a impossibilidade de crer nos dogmas da Igreja, o que impeliu a Humanidade para a dúvida e para a negação.
O materialismo penetrou até à medula, no corpo social. Mas de quem é a culpa? Se as almas tivessem encontrado na religião, tal como lhes era ensinada, a força moral, as consolações, a direção espiritual de que necessitavam, ter-se-iam afastado dessas igrejas que em seus poderosos braços embalaram tantas gerações? Teriam elas deixado de crer, de amar e de esperar?
A verdade é que o ensino da Igreja não conseguiu satisfazer as inteligências e as consciências. Não pôde dominar os costumes; por toda parte lançou a incerteza, a perturbação do pensamento, de que proveio a hesitação no cumprimento do dever e, para muitos, o aniquilamento de toda esperança.
Se, no auge do seu poderio, a Igreja não conseguiu regenerar a Humanidade, como o poderia hoje fazer? Ah! talvez, se abandonasse os seus palácios, as suas riquezas, o seu culto faustoso e teatral, o ouro e a púrpura; se, cobertos de burel, com o crucifixo na mão, os bispos, os príncipes da Igreja, renunciando aos bens materiais e tornando-se como o Cristo, sublimes vagabundos, fossem pregar às multidões o verdadeiro evangelho da paz e do amor, então talvez a Humanidade acreditasse neles. Não se mostra disposta a Igreja Romana a desempenhar esse papel; o espírito do Cristo parece cada vez mais abandoná-la. Nela quase não resta senão uma forma exterior, uma aparência, sob a qual já não existe mais que o cadáver de uma grande ideia.
As igrejas cristãs, em seu conjunto, não subsistem senão pelo que nelas resta de moral evangélica; sua concepção do mundo, da vida, do destino, é simplesmente letra morta. Que pensar, com efeito, e que dizer de um ensino que forçou os homens a crer, a afirmar, durante séculos, a imobilidade da Terra e a criação do mundo em seis dias? Que pensar de uma doutrina que vê na ressurreição da carne o único meio de restituir à vida os mortos?
Que dizer dessa crença que pretende deverem os átomos do nosso corpo, há tanto tempo dispersos, reunir-se um dia? Em presença dos novos dados que todo dia vêm esclarecer o problema da sobrevivência, tudo isso não é mais que um sonho de criança. O mesmo acontece com a ideia de Deus. A mais grave censura que se pode arrogar ao ensino das igrejas incide no fato de haver falseado, desnaturado a ideia de Deus, tornando-a por isso odiosa a muitíssimos espíritos. A Igreja Romana sempre impôs o temor de Deus às multidões. Havia nisso um sentimento necessário para realizar o seu plano de domínio, para submeter a Humanidade semibárbara ao princípio da autoridade, mas um sentimento perigoso, porque, depois de haver feito por muito tempo escravos, acabou por suscitar os revoltados - sentimento nocivo, esse do medo, que, depois de ter levado o homem a temer, o levou a odiar; que o ensinou a não ver no poder supremo senão o Deus das punições terríveis e das eternas penas, o Deus em cujo nome se levantaram os cadafalsos e as fogueiras, em cujo nome correu o sangue nas salas de tortura. Daí se originou essa reação violenta, essa furiosa negação, esse ódio à ideia de Deus, do Deus carrasco e déspota, ódio que se traduz por esse grito que hoje em dia ressoa em toda parte, em nossos lares, em nossas praças, em nossas folhas públicas: nem Deus, nem Senhor!
E, se a isso acrescentarmos a terrível disciplina imposta aos fiéis pela Igreja da Idade Média, os jejuns, as macerações, o temor perpétuo da condenação, os exagerados escrúpulos, sendo um olhar, um pensamento, uma palavra delituosa, passíveis de penas do inferno, compreendereis que ideal sombrio, que regime de terror fez a Igreja pesar durante séculos sobre o mundo, compelindo-o a renunciar a tudo o que constitui a civilização, a vida social, para não cuidar senão da salvação pessoal, com desprezo das leis naturais, que são as leis divinas.
Ah! Não era isso o que ensinava Jesus, quando falava do Pai, quando afirmava este único, este verdadeiro princípio do Cristianismo - o amor, sentimento que fecunda a alma, que a reergue de todo o abatimento, franqueia os umbrais às potências afetivas que ela encerra, sentimento de que ainda pode surgir a renovação, a regeneração da Humanidade.
Porque nós não podemos conhecer Deus e dele aproximar-nos senão pelo amor; só o amor atrai e vivifica. Deus é todo amor e para o compreender é necessário desenvolver em nós esse princípio divino. É preciso cessar de viver na esfera do "eu" para viver na esfera do divino, que abrange todas as criações. Deus está em todo homem que sabe amar. Em amar e cultivar o que há de divino em nós e na Humanidade é que consiste o segredo de todo progresso, de toda elevação. Escrito está: "Amarás a Deus sobre todas as coisas e ao próximo como a ti mesmo".
Foi assim que as grandes almas cristãs se elevaram a sublimes eminências. Foi assim que os 5icentes de Paulo, os Franciscos de Assis e alguns outros puderam realizar obras que fazem a admiração dos séculos. Sua acrisolada caridade não era inspirada pelo dogma católico: no Evangelho é que esses insignes Espíritos hauriram a fé no amor que os animava.
Se tivessem prevalecido os preceitos evangélicos, o Cristianismo estaria no apogeu do seu poder e da sua glória. Eis porque será preciso voltar aos puros ensinamentos de Jesus, se quiserem reerguer e salvar a religião; porque, se a religião do poder tem sua grandeza, maior é a do amor; se a religião da justiça é grande, maior é a do perdão e da misericórdia. Aí estão os verdadeiros princípios e a base real do Cristianismo.
Com a concepção do mundo e da vida sucedeu o mesmo que com a ideia de Deus. Por muito tempo a Igreja impôs às inteligências essa velha teoria que fazia da Terra o corpo central mais importante do Universo; do Sol e dos astros, tributários que em torno dela se moviam. Os céus eram qual sólida abóbada; por cima se entronava o Eterno, cercado dos exércitos celestes; sob a Terra, os lugares profundos, inferiores, os infernos.
O mundo, criado há seis mil anos, devia ter próximo fim; daí, uma ameaça permanente pairando sobre a Humanidade. Com o fim do mundo coincidirá o julgamento terrível, definitivo, universal, em virtude do qual todos os mortos sairão dos túmulos, revestidos do seu corpo carnal, para comparecer perante o tribunal de Deus.
A Astronomia moderna destruiu essas concepções. Ela demonstra que o nosso globo é um simples membro da grande família dos corpos celestes, que as profundezas do céu estão povoadas de astros em número infinito. Por toda parte sóis, terras, esferas em via de formação, de desenvolvimento ou decadência, referem-nos as maravilhas de uma criação incessante, eterna, em que as formas da vida se multiplicam, se sucedem, se renovam como produções de um pensamento soberano.
Entre esses mundos que rolam na imensidade dos espaços nossa Terra é um grão de areia, um átomo perdido no infinito. Esse átomo a Igreja persiste em acreditar o único habitado. Mas a Ciência, a Filosofia e a revelação dos Espíritos nos mostram a vida a se expandir na superfície desses mundos, a se elevar, de degrau em degrau, através de lentas transformações, para um ideal de beleza e perfeição. Por toda parte povos, raças, humanidades sem-número, seguem os seus destinos no seio da harmonia universal.
A Igreja ensina que um primeiro homem apareceu na Terra, há seis mil anos, em estado de felicidade do qual decaiu em consequência do pecado.
A Antropologia pré-histórica faz recuar a existência da Humanidade a muito mais remotas épocas. Mostra-nos o homem, a princípio no estado selvagem, de que pouco a pouco saiu, para elevar-se em constante progressão, até à civilização atual.
O globo terrestre não foi criado em seis dias; é um organismo que se desenvolve através das idades. Nas camadas superpostas que se acumulam em sua superfície, a Geologia indica as sucessivas fases da sua formação. A observação científica, o estudo perseverante e paciente das leis da vida, fizeram reconhecer a ação de uma vontade que dispôs todas as coisas num determinado plano.
Em virtude desse plano, os seres possuem em si o princípio de existência e se elevam, por calculadas gradações, de forma em forma, de espécie em espécie, em direção a tipos sempre mais perfeitos. Em parte alguma se descobrem os traços de uma criação arbitrária ou milagrosa, mas, ao contrário, o trabalho lento de uma criação que se efetua graças aos esforços de cada um e em proveito de todos. Por toda parte se revela a ação de leis sábias e profundas, a manifestação de uma ordem universal, de um pensamento divino que deixou ao ser a liberdade e os meios de a si próprio se desenvolver, à custa de tempo, provações e trabalho.
A Igreja que, durante tantos séculos, ensinou, regeu, dirigiu o mundo, sempre ignorou, na realidade, as verdadeiras leis da vida e do Universo. Entretanto, aí estão as obras daquele que ela diz representar, em cujo nome pretende falar e ensinar. Essas obras, desconheceu-as ela e as desconhece ainda. Suas explicações acerca da ordem e da estrutura do Universo, relativamente à vida da alma e ao seu futuro sobre os poderes psíquicos do ser, foram sempre errôneas.
Foram precisos os repetidos esforços do livre pensamento e da Ciência para sondar esse imenso domínio da Natureza, de que dizia a Igreja ser a zeladora e cuja interpretação dizia possuir. Só a Ciência foi que a obrigou a se retificar a si própria, em numerosos pontos, e a distinguir no Cristianismo as verdades essenciais, das ficções ou alegorias.
A Igreja por muito tempo considerou hereges os sábios que afirmavam o movimento da Terra. Galileu foi condenado ao cárcere por ter ensinado que o Globo se movia. (Nota lxxxvii: Ver, na nota complementar nº 10, o texto de condenação de Galileu em 1615.) O frade irlandês Virgílio foi excomungado pelo papa Zacarias, por haver afirmado a existência dos antípodas.
Tomando ao pé da letra o que não passava de figuras, a Igreja não podia crer na esfericidade do Globo, desde que muitas passagens das Escrituras parece imporem-lhe quatro cantos. Agora declara ela que, falando da imobilidade da Terra no centro do mundo, as Escrituras se colocam no ponto de vista da ignorância antiga e, em certos casos, se amoldou ao sistema de Galileu e de Descartes. Não o fez, porém, sem longas hesitações, porque as obras de Galileu e de Copérnico não foram eliminadas do índex senão em 1835. Chegou assim a Igreja, insensivelmente, a considerar uma simples ficção o que outrora para ela constituía um dogma. Nesse ponto foi, pois, a Ciência que a auxiliou a compreender a Bíblia.
O mesmo aconteceu com as suas opiniões acerca da Criação. A extrema antiguidade do nosso planeta e a sua lenta formação, estabelecidas pela Ciência, foram condenadas muito tempo pela Igreja, como opostas à narrativa do Gênesis. Hoje ela cede à pressão dos estudos geológicos e já não vê na descrição bíblica senão um quadro simbólico da obra da Natureza, desenvolvendo-se através dos tempos, de conformidade com um plano divino.
Deter-se-á aí? Não será obrigada a inclinar-se diante da História e da exegese, como o fez diante da Astronomia e da Geologia? Não virá a desvencilhar a personalidade do Cristo e sua elevada missão de ordem moral, de todas as hipóteses formuladas sobre a sua origem e natureza divinas? (Nota lxxxviii: Quase nada parece ela disposta a evolver em tal sentido, e ainda em 1908 excomungou o abade Loisy por haver articulado em suas obras que a divindade do Cristo não é, historicamente, demonstrável. (Nota da segunda edição.)) A Igreja, depois de haver combatido e anatematizado a Ciência, deverá forçosamente acompanhá-la e assimilar todas as suas descobertas, se quiser viver. E nem por isso ficarão menos os seus erros seculares a atestar sua impotência, no sentido de se elevar por si mesma ao conhecimento das leis universais. E será o caso de perguntar - tendo assim a Igreja se enganado acerca de coisas físicas, sujeitas sempre à verificação - que crédito se lhe pode dar no concernente às doutrinas místicas, excluídas até hoje da crítica e do exame?
Tudo nos demonstra que não é menos defeituosa essa parte do seu ensino. Já as manifestações dos Espíritos dos mortos, que se multiplicam, nos proporcionam sobre a Vida de além-túmulo uma fonte de esclarecimentos, de novas apreciações que vêm fazer ruírem as afirmações do dogma.
Não podíamos mais crer em um mundo, em um Universo oriundo do nada, que Deus governa por meio da graça e do milagre.
Menos, ainda, podemos crer que a vida seja obra de salvação pessoal, o trabalho uma ignomínia, um castigo, com o inferno eterno por perspectiva; ou, então, um purgatório de onde se não sai senão mediante orações pagas, ou ainda um paraíso melancólico e monótono, em que seríamos condenados a viver inativos, sem alvo, separados para sempre dos que amamos. Não podemos mais crer no pecado de Adão recaindo sobre toda a Humanidade, nem no resgate mediante a imolação de um Deus na cruz.
O pensamento moderno liberta-se cada vez mais de semelhantes mitos, de tais espantalhos pueris; despedaça essas teias de aranha que pretenderam correr entre ele e a verdade; eleva-se todos os dias e, no espetáculo dos mundos, no grande livro da Natureza cujas páginas em torno dele se desdobram, no maravilhoso mapa da vida em suas perpétuas evoluções, nessa lei de progresso inscrita no céu, como na Terra, nessa lei de liberdade e de amor gravada no coração do homem, ele vê a obra de um Ser que não é o Deus quimérico da Bíblia, mas a Soberana Majestade - princípio eterno de justiça, lei viva do bem, do belo e do verdadeiro, que enche o Infinito e paira sobranceiro aos tempos.
Chega-se a perguntar como o alimento dogmático da Igreja pôde ser administrado às inteligências populares durante tantos séculos, uma vez que o menor estudo do Universo, o menor olhar lançado ao espaço nos podem dar da vida, sempre renascente, da suprema causa e de suas leis uma ideia tão imponente, tão fecunda em grandes ensinamentos, em poderosas inspirações.
A essa ideia vem juntar-se a noção clara e positiva do objeto da existência, do objetivo que todos os seres visam em sua jornada, resgatando-se a si mesmos desse fundo de egoísmo e barbaria, que é o único pecado original, e adquirindo, passo a passo, essa perfeição cujo germe Deus neles colocou e eles devem, pelo regresso à carne, desenvolver na sucessão das existências porvindouras.
Assim se revela o pensamento de Deus. Porque Deus, que é a Justiça absoluta, não poderia querer a condenação, nem mesmo a salvação mediante a graça ou os merecimentos de um salvador, mas a salvação do homem por suas próprias obras e a satisfação, para nós, de obtermos nós mesmos, com a sua assistência, a nossa elevação e a nossa felicidade.
Infelizmente, esta concepção do mundo e da vida, indispensável ao desenvolvimento das sociedades humanas, não é ainda a partilha senão de um reduzido número. A grande massa erra nas veredas da existência, ignorante das leis da Natureza, não tendo por nutrição moral senão esse catecismo ensinado às crianças em todos os países cristãos, incompreensível, ininteligível para a maior parte e que bem poucos vestígios deixa no espírito.
É, todavia, uma imperiosa necessidade que todos os homens possuam uma noção precisa do objetivo da existência, que todos saibam o que são, donde vêm, para onde vão, como e por que devem agir.
Dessa concepção do mundo, da vida e do seu objetivo, manteve a Igreja, até agora, o monopólio. A todos ensina ela por meio do catecismo. Por insuficientes, obscuros e obsoletos que sejam os princípios desse ensino popular, em que à moral cristã se mesclam dogmas caducos, eles constituem, ainda hoje, a força da Igreja e a sua superioridade sobre a sociedade leiga, porque esta ainda nada soube colocar em substituição do catecismo e, em sua hesitação ou impotência para oferecer à criança, ao homem, uma síntese, uma ideia exata das suas relações com o Universo, consigo mesmo, com os seus semelhantes e com Deus, abandona a direção moral do povo a uma instituição que apenas representa um ideal agonizante, incapaz de regenerar as nações.
Nos novos manuais de ensino leigo, sem dúvida, se encontram muitas páginas consagradas às questões morais, a Deus, à imortalidade da alma; essas noções, porém, são muito pouco cultivadas na prática. O preceptor, quase sempre impossibilitado de satisfazer as exigências de um programa complexo, baldo ele próprio de convicção na maioria dos casos, menospreza ou desdenha esse lado essencial do ensino. Daí resulta, como íamos dizendo, que o catecismo permanece o único meio de educação moral ao alcance de todos. Foi por ele, pelas noções de conjunto que oferece, que a sociedade cristã se constituiu e se mantém; é por meio dele que se perpetua o poder da Igreja. Este ensino, porém, é todo superficial e de memória; as noções incompletas que incute na criança são aprendidas de cor; não são sentidas; não lhe penetram na alma; não resistem muito às influências exteriores que o menino sofre, nem ao desenvolvimento da sua própria razão.
Quando o filho do pobre, obrigado bem cedo a se entregar ao trabalho, não tendo para se guiar senão os ensinos do catecismo, chega a neles não crer mais, é o desmoronamento, é o vácuo que se produz no seu pensamento e na sua consciência. Incapaz de, por si mesmo, elevar-se a uma concepção mais alta da existência, dos seus direitos e deveres, tendo repelido com a crença nos dogmas tudo o que possuía de noções morais, fica abandonado a todas as correntes do materialismo e da negação, sem preservativo contra os grosseiros apetites, sem defesa, nos dias de miséria, contra as sugestões do suicídio ou da depravação.
Desde as idades da fé cega, a sociedade cristã está, por conseguinte, reduzida a viver de um retrógrado ideal, de uma concepção do Universo e da vida inconciliável em muitos pontos com as descobertas da Ciência e as aspirações da Humanidade. Daí uma intensa perturbação nos espíritos e nas consciências; daí a alteração de todas as condições necessárias à harmonia social.
Há muito um sopro de liberdade agita o mundo; o pensamento vai-se desembaraçando dos empecilhos que o prendiam; a fé se amesquinhou. Mas os povos latinos conservam o cunho indelével do ensino católico que, durante doze séculos, os afeiçoou a seu talante e neles cultivou as qualidades e os defeitos que os caracterizam, e esses defeitos precipitam a sua decadência.
A doutrina católica, ministrando ao homem uma ideia errônea do seu papel, contribuiu para obscurecer a razão, para falsear o critério às gerações. Não se pôde manter senão recorrendo a argumentos capciosos e sutis, cujo emprego repetido faz perder o hábito de raciocínio e de julgar com retidão as coisas. Pouco a pouco se chegou a aceitar, a considerar infalíveis sistemas fictícios, em oposição às leis naturais e às superiores faculdades da alma.
Essa maneira de ver e de julgar devia forçosamente refletir-se nos atos da vida social e nas conquistas da Civilização. Viram-se, por isso, muitas vezes os povos católicos, pelo excesso de confiança neles próprios, perder o senso prático e se apaixonar por empreendimentos sem utilidade e sem alcance.
É o que se evidencia em todas as obras políticas, financeiras e de colonização, nas quais os povos católicos se revelam sensivelmente inferiores às nações protestantes, mais bem preparadas, por sua educação religiosa e pelo espírito de livreexame, para tudo o que exige a ordem, a previdência, o discernimento, a perseverança no trabalho. Em compensação, os católicos se avantajam nas artes e nas letras; mas é uma insuficiente compensação.
Os povos latinos, nos quais a educação católica desenvolveu o sentimento e a imaginação em detrimento da razão, se entusiasmam facilmente, adotam, sem as amadurecer, certas ideias em cuja execução prosseguem com um ardor e um exagero que conduzem muitas vezes à perda e à ruína. As paixões sempre muito vivas, quando a razão não as vem refrear, levam esses povos à instabilidade: as modas, as ideias, os gostos neles variam muitas vezes, em detrimento das obras sólidas e duradouras.
Por isso se vêem as nações anglo-saxônias e de religião protestante serem bem-sucedidas onde os povos latinos fracassam.
Cada vez mais a iniciativa nas obras de progresso, a conquista e a colonização do globo passam para as mãos dos povos do Norte, que crescem e se fortificam sem cessar, em prejuízo das nações latinas e católicas.
A influência nos costumes não é menos prejudicial. O caráter latino, o espírito francês em particular, durante séculos afeiçoado pelo Catolicismo, tornou-se pouco afeito às coisas sérias e profundas. Na França, as conversações são de ordinário frívolas; fala-se preferentemente de prazeres, de coisas fúteis; a maledicência, a crítica maliciosa, o hábito da difamação, ocupam nas conversações um largo trecho. Destroem, pouco a pouco, o espírito de benevolência e tolerância que liga os membros de uma mesma sociedade; fomentam entre os homens o espírito de malícia, a inveja e o rancor.
Esses defeitos não se encontram no mesmo grau nas sociedades protestantes. Nelas a instrução é mais desenvolvida, as conversações são em geral mais sérias e a maledicência mais atenuada. As pessoas acham-se mais ligadas à religião e a praticam com maior escrúpulo. Na maioria dos povos católicos, ao contrário, a religião tornou-se uma questão de forma, um partido político, antes que uma convicção; a moral evangélica é por eles cada vez menos observada. Os gestos sérios rareiam; cada qual quer satisfazer suas inclinações, sobressair e gozar.
Parece que a Igreja Romana, em seus ensinos, se aplica a ocupar o espírito, a desviá-lo para as vias do sentimento, no intuito de lhe fazer esquecer o verdadeiro fim do estudo, que é a posse da verdade. Ela não oferece às inteligências senão uma ilusória nutrição, uma quimérica doutrina, perfeitamente adaptada, porém, aos seus interesses materiais.
As pompas do culto, as festas numerosas, as cerimônias prolongadas, desviam os fiéis das árduas investigações, do frutífero labor, e os induzem à ociosidade. Todo trabalho é, antes, um constrangimento que benéfica necessidade. Suportam-no sem o amar. Por isso, encontram-se mais ignorância e maior miséria nas nações latinas do que nos povos do Norte.
Seria, sem dúvida, injusto atribuir à Igreja todos os defeitos da nossa raça; o caráter francês é, por natureza, volúvel, impressionável, pouco refletido; mas o Catolicismo agravou esses defeitos aniquilando, com a sua doutrina, o emprego da razão e o espírito de observação, exigindo dos seus fiéis uma credulidade cega, a respeito de afirmações destituídas de provas.
Não é impunemente que se calca aos pés, durante séculos, a razão, essa faculdade máter, dada por Deus ao homem para guiá-lo nas sendas do destino. Desse modo se prepara, fatalmente, o rebaixamento das nações.
Em muitos casos, não se nos apresenta o Catolicismo apenas como doutrina religiosa, mas também como poder temporal, envolvido em todas as contendas deste mundo, animado do desejo de adquirir uma autoridade absoluta e de pretenso direito divino.
Esse duplo aspecto contribuiu largamente para subtrair ao Catolicismo essa dignidade serena, esse desprendimento das coisas materiais que deveriam fazer o prestígio das religiões. Parece não ser a ele que se aplica o que disse Jesus: "Meu reino não é deste mundo".
Em todos os tempos o Catolicismo se duplicou de um partido político, pronto a secundar os esforços da reação contra a corrente das ideias modernas. Sob esse ponto de vista, pode-se dizer que a educação católica desenvolve o espírito de intolerância e estimula a resistência ao progresso; alimenta no seio das nações um instinto de luta, um estado de antagonismo e de discórdia, mediante o qual se despendem e anulam muitas reservas morais e intelectuais.
A sociedade acha-se por esse motivo dividida em dois campos inimigos; a oposição se perpetua em duas metades nacionais, uma a avançar para o futuro e outra a retrogradar para o passado.
Esgotam, assim, as suas forças vivas em detrimento da paz e da prosperidade gerais.
A Igreja Romana, que durante quinze séculos sufocou o pensamento e oprimiu a consciência em nome da unidade da fé, que se associou a todos os despotismos, sempre que tinha interesse em fazê-lo, arroga-se hoje o princípio de liberdade. Seria uma reivindicação muito legítima se, por liberdade, não entendesse ela o privilégio. Necessário é, porém, observar que jamais pôde o Catolicismo conciliar-se com o espírito de liberdade. Este não pôde manifestar-se no mundo senão no dia em que o poderio da Igreja decresceu. Os progressos de um estiveram sempre em proporção exata com a diminuição do outro, enquanto que os modernos protestantes, habituados pela sua religião a usar da liberdade, têm sabido aplicá-la à vida política e civil.
Agora mesmo, não condena a Igreja o livre-pensamento, como condenou outrora o livre-exame aplicado à interpretação das Escrituras? Não proíbe a todos os seus raciocinar e discutir a religião? E é ainda isso o que nos demonstra como as opiniões da Igreja Romana se afastaram dos princípios do verdadeiro Cristianismo.
Aqui está o que dizia S. Paulo: "Examinai tudo: abraçai o que é bom. " (I Tessalonicenses
Foi por terem desconhecido esse fato que os chefes da Igreja fizeram desorientar o Cristianismo e oprimiram as consciências.
Impuseram a fé em vez de a solicitar à vontade livre e esclarecida do homem e, assim, fizeram da história do Catolicismo o calvário da Humanidade.
Esqueceram que a razão, "essa luz - diz S. João –, com que todo homem vem a este mundo", é una; que a razão humana, centelha desprendida da razão divina, dela não difere senão em poder e extensão e que, obedecer às suas leis, é obedecer a Deus. "Ó Razão! - dizia Fenelon em momento de profunda intuição - não és tu o Deus que procuro?".
Se a Igreja tivesse compreendido a essência mesma do Cristianismo, ter-se-ia abstido de lançar o anátema ao raciocínio e de imolar a liberdade e a Ciência no altar das superstições humanas.
O direito de pensar é o que de mais nobre e de maior existe em nós. Ora, a Igreja sempre se esforçou por impedir o homem de usar desse direito. E lhe disse: "Crê e não raciocines; ignora e submetete; fecha os olhos e aceita o jugo. " Não é isso ordenar que renunciemos ao divino privilégio?
Porque a razão, desdenhada pela Igreja, é de fato o instrumento mais seguro que o homem recebeu de Deus para descobrir a verdade. Desconhecê-la é desconhecer o próprio Deus, que é a sua fonte. Não é por meio dela que o homem esclarece e resolve todos os problemas da vida social, política e doméstica? E pretenderiam que a repudiasse quando se trata de verdades religiosas que ele não pode penetrar sem o seu concurso?
Relativa e falível em si mesma, a razão humana se retifica e se completa remontando à divina fonte, comunicando com essa razão absoluta que a si mesma se conhece, reflete e possui, e que é Deus.
Podem ser necessárias faculdades assaz elevadas para inventar e corporificar sistemas errôneos, para os defender e propagar. A verdade, simples e clara, é apresentada e compreendida pelos espíritos mais humildes, quando sabem utilizar-se da razão, ao passo que os sofistas que a excluem, afastam-se cada vez mais da verdade, para se emaranharem num Dédalo de teorias, de dogmas, de afirmações, em que se perdem. Para tornarem a encontrar a vereda segura, ser-lhes-á preciso destruir o que penosamente edificaram e voltar a essa razão menosprezada, única que lhes dá o sentido real da vida e o conhecimento das leis divinas.
Assim se confirmam estas palavras das Escrituras: "Ocultou-se aos sábios o que foi revelado aos pequeninos".
Acabamos de pôr em evidência as consequências da educação religiosa em nosso país. Sua influência, por vezes tão nociva na prática da vida, persiste depois da morte e reserva às almas crédulas profundas e cruéis decepções. Quantos católicos nos têm descrito, em numerosas comunicações mediúnicas, as suas angústias, quando, confiantes nas prometidas recompensas, imbuídos das ideias de paraíso e redenção, se viram no espaço vazio, imenso e melancólico, errantes, anos inteiros em busca de uma quimérica felicidade e nada compreendendo desse novo meio, tão diferente do que lhes fora tantas vezes exaltado! Suas acanhadas percepções, a compreensão velada por doutrinas e práticas abusivas, não lhes permitiam apreender as belezas do universo fluídico.
E quando, em pesquisas e peregrinações extraterrestres, encontram esses padres, seus educadores religiosos, restituídos como eles ao estado de Espírito, as queixas e exprobrações não encontram, de sua parte senão a perturbação e a ansiedade que a eles próprios atribulam.
Triste efeito de um ensino falso, tão ineficiente para aparelhar as almas aos combates e realidades do destino.
No desenvolvimento deste estudo aconteceu-nos muitas vezes confrontar as doutrinas da Igreja Romana com as do Protestantismo e fazer sobressair, em certos pontos, a superioridade destas últimas.
Daí, segue-se que consideremos o Protestantismo a mais perfeita das religiões? Tal não é o nosso pensamento.
O Protestantismo, em seu culto e prédicas, aproxima-se vantajosamente, é certo, da simplicidade e das concepções dos primeiros cristãos. Não despreza a razão, como faz o Catolicismo, mas, ao contrário, respeita-a, apoia-se nela. Sua moral é mais pura e a sua organização sem fausto e aparato. Suprime a hierarquia sacerdotal, o culto à Virgem e aos santos, as práticas fastidiosas, as longas orações, os rosários, os bentinhos, todo o arsenal pueril da devoção católica. O pastor não é mais que um professor de moral, encarregado de presidir às cerimônias religiosas, reduzidas ao batismo, à comunhão e à prédica, a abençoar os casamentos, assistir os pobres, os enfermos e os moribundos.
O Protestantismo estabelece o livre-exame, a livre interpretação das Escrituras. Com isso desenvolve o entendimento e favorece a instrução, em todos os tempos considerada perigosa pela Igreja Romana. O protestante se mantém, portanto, livre e aprende a dirigir-se por si mesmo, ao passo que o católico abdica sua razão e sua liberdade nas mãos do sacerdote.
Entretanto, por maior que seja a obra da reforma do século XVI, ela não poderia satisfazer as necessidades atuais do pensamento. O Protestantismo conservou, da bagagem dogmática da Idade Média, muitas coisas inaceitáveis. A autoridade do papa, substituiu a do livro; mas a Bíblia, interpretada mediante o livre-exame, não pode ser considerada produto da inspiração divina. (Nota lxxxix: Ver nota complementar n° 1.) As consciências que conseguiram subtrair-se ao jugo de Roma não se poderiam colocar sob o de uma obra, sem dúvida respeitável e que é preciso tomar em consideração, mas de origem puramente humana, semeada de ficções e alegorias, sob as quais o pensamento filosófico se dissimula e desaparece na maioria das vezes.
Lutero proclamava a divindade de Jesus, o seu miraculoso nascimento e a sua ressurreição; Calvino impõe os dogmas da trindade e da predestinação. Os artigos da "Confissão de Augsburgo" e da "Declaração de la Rochelle" afirmam o pecado original, o resgate pelo sangue do Cristo, as penas eternas, a condenação das crianças mortas sem batismo.
Entre os protestantes, mesmo ortodoxos, quantos haverá hoje que subscrevam essas afirmações e aceitem em seu conjunto o símbolo dos apóstolos, lido em todos os templos e que os apóstolos jamais conheceram?
Ao lado da ortodoxia protestante um grande partido se formou sob a designação de protestantismo liberal. Repudia os dogmas que acabamos de enumerar e limita-se a reconhecer a grandeza moral de Jesus e de seus ensinamentos. Esse partido conta em suas fileiras espíritos muito esclarecidos, animados de louvável sentimento de tolerância e grande amor ao progresso - homens dignos de admiração e simpatia.
Mas os protestantes liberais colocam-se em situação falsa e delicada. Persistem em se conservar na igreja reformada, depois de haverem rejeitado, um a um, quase todos os pontos de doutrina.
Tomaram larga parte nos consideráveis trabalhos de que falamos no começo desta obra, trabalhos empreendidos acerca das origens do Cristianismo e da autenticidade dos sagrados livros. Submeteram ao crivo de uma crítica rigorosa todos os documentos em que repousa a tradição cristã. A aplicação do livre-exame os impeliu a constantes investigações, em consequência das quais os dogmas, os milagres e grande número de fatos históricos perderam todo o crédito aos seus olhos. Desse exame, só uma coisa ficou de pé - a moral evangélica.
Os protestantes liberais foram levados a colocar o princípio da liberdade e da supremacia da consciência acima da unidade da fé; agindo desse modo, destruíram os laços religiosos que os vinculavam à Igreja reformada. Não são mais, realmente, protestantes; são antes cristãos livres-pensadores.
É, portanto, uma anomalia praticarem, em todas as suas formas, um culto que tão escassamente corresponde às suas próprias aspirações. Parece-nos que melhor coisa se poderia fazer, nas assembleias religiosas dos "protestantes liberais", que ler e comentar unicamente a Bíblia, cantar salmos calcados sobre velhas árias, falar de um "Deus zeloso e forte", ou recomendar aos habitantes de Paris, como todos os domingos fazem no templo do Oratório, que não cobicem "nem o boi nem o asno do seu próximo". Semelhante culto e tais exortações poderiam convir aos povos pastores da antiguidade; já não correspondem às necessidades, às ideias, às esperanças dos cristãos contemporâneos.
Às aspirações modernas são necessárias outras expressões, outras formas, outras manifestações religiosas. São precisos uma linguagem e cânticos que falem à alma, que a atraiam, emocionem e façam vibrar íntimas cordas. Permanecendo sóbrio e inteiramente simples, o culto deve inspirar-se na arte musical contemporânea e esforçar-se por elevar o pensamento às divinas esferas, às regiões imáculas do ideal.
Em resumo, o Protestantismo pode ser considerado, em seu conjunto, superior ao Catolicismo, no sentido de que mais se aproxima do pensamento do Cristo. Demasiadamente adstrito, porém, à forma e à letra, não poderia bastar às solicitações do espírito moderno.
Faria obra de utilidade se abandonasse o legado da Reforma para, exclusivamente, inspirar-se no espírito evangélico. O espírito da Reforma tinha sua razão de ser no século XVI, ao termo de um longo período de treva e despotismo; ao mundo moderno já não pode oferecer senão fantasias teológicas e motivos de divisão entre os membros da grande família cristã.
O que é presentemente necessária à Humanidade, não é mais uma crença, uma fé decorrente de um sistema ou de uma religião particular, inspirada em textos respeitáveis, mas de autenticidade duvidosa, em que a verdade e o erro se mesclam e se confundem. O que se impõe é uma crença baseada em provas e em fatos; uma certeza fundada no estudo e na experiência, de que se destacam um ideal de justiça, uma noção positiva do destino, um estímulo de aperfeiçoamento, suscetíveis de regenerar os povos e ligar os homens de todas as raças e de todas as religiões.
Muitos laços históricos e religiosos prendem, incontestavelmente, a alma moderna à ideia cristã, para que possa deixar de por ela interessar-se. Há no Cristianismo elementos de progresso, germes de vida moral e social, que, desenvolvendo-se, grandes coisas podem produzir. A doutrina do Cristo contém muitos ensinos que ficaram incompreendidos e que, sob mais esclarecidas influências, podem produzir frutos de amor e sabedoria, resultados eficazes a favor do bem geral. Sejamos cristãos, mas, elevando-nos acima das diversas confissões, até à fonte pura de que brotou o Evangelho. Amemos o Cristo, mas coloquemo-lo superior às seitas intolerantes, às igrejas que se excluem mutuamente e se anatematizam. O Cristo não pode ser jesuíta, nem jansenista, nem huguenote; seus braços estão amplamente abertos a toda a Humanidade.
Vimos acima quais as consequências da educação religiosa em nosso país. Se a educação católica, em particular, é incompleta e semeada de ilusões, deve, o ensino leigo, por isso, ser-lhe preferido?
O ensino leigo produz efeitos opostos aos que havemos indicado. Confere aos homens o espírito de independência; eximeos da tutela governamental e religiosa, mas ao mesmo tempo enfraquece a disciplina moral, sem a qual não se pode manter coesa a sociedade.
Esse ensino não é, como pretendem seus detratores, inteiramente destituído de princípios; entretanto, não tem sabido oferecer à vida um elevado objetivo; nada pôde colocar no lugar do ideal cristão; afrouxou os laços de solidariedade que devem unir os homens e conduzi-los para um fim comum.
Por isso é que em nosso país o espírito familiar e a autoridade paterna se têm enfraquecido. Os pais parecem subordinados dos próprios filhos, nos quais já se não encontram os sentimentos respeitosos que constituem a força da família e asseguram à velhice a necessária autoridade. Essas causas de enfraquecimento parecem, pouco a pouco, invadir todo o organismo social. Quase por toda parte se contraem novos hábitos e maneiras de viver, de que são excluídas as coisas sérias, únicas capazes de fortalecer o espírito e orientá-lo no sentido da prática incessante do dever.
O ensino primário não proporciona mais que uma instrução apenas esboçada e cedo posta à margem, uma instrução prematura, destituída de vínculo, de encadeamento e, sobretudo, de remate. Ela não é completada por esse elemento indispensável do ensino moral.
Deixa a criança e, por conseguinte, o homem, na ignorância das coisas mais essenciais: as grandes leis da vida.
Quando, dos doze aos catorze anos, o aluno das escolas primárias, munido do seu certificado de exames, é lançado ao combate dos interesses, à grande batalha social, falta-lhe esse fundo sólido, esse conhecimento da verdade e do dever, que é o sustentáculo supremo, a mais necessária arma para as lutas da existência.
Tudo o que lhe disseram sobre os deveres do homem - e se reduz a muito pouca coisa - disseram-lho numa idade em que ele não podia dar valor a isso. E tudo se vai esmigalhar, dissipar, sem deixar vestígios.
Dir-se-ia, porém, que, se a instrução primária é insuficiente, mal exposta, mal digerida, um pouco mais alto, no ensino clássico e superior deve encontrar o rapaz ampla messe de princípios, noções essenciais à consecução de um elevado fim? Pois bem! ainda nisso há ilusão. Reporto-me, nesse ponto, à opinião de um escritor competente. Francisque Sarcey declarava em uma das suas crônicas no Petit Journal (7 de março 1894): "Dos meus estudos clássicos, da minha passagem pelas classes de Filosofia, não colhi noção alguma positiva acerca dos destinos da alma humana. " Isso nos faz recordar a conhecida apreciação de um bom juiz em tal matéria: "a Filosofia clássica não é mais que a história das contradições do espírito humano. " O materialismo e o Positivismo reinam quase exclusivamente nas altas esferas políticas, povoadas de inteligências buriladas pelo ensino superior. A influência dessas teorias se reflete sobre toda a vida política e social e, concorrentemente com as doutrinas do Catolicismo, contribui para deprimir os caracteres e as vontades.
Quando penetramos até ao fundo das coisas, a despeito de algumas ligeiras aparências de espiritualismo, somos obrigados a reconhecer que o ensino leigo encontra-se, em todos os graus, impregnado de cepticismo, inspirado pelas filosofias negativas. Daí a sua impotência para incutir na criança noções profundas de moralidade.
Porque é em vão que se preconiza a moral, independente de qualquer crença e de qualquer religião; a experiência demonstra que, quanto mais se espalham as concepções materialistas e ateístas, mais se subtraem às consciências os princípios de moralidade e, por consequência, os deveres que eles impõem. A desmoralização coincide com a subversão das crenças. (Nota xc: Um escritor materialista de nomeada, o Sr. Emílio Ferrière, confessa em sua obra A causa primária, (Alcan, 1
897) que a ciência materialista é incapaz de organizar um plano lógico de moral. "Quanto às conclusões morais - diz ele –, as trevas são de tal modo espessas e tão violentas as contradições, que ficamos reduzidos ao único partido filosófico prudente, a saber: resignar-se à ignorância".) É verdade que nos falam muito de altruísmo; mas o altruísmo não passa de palavra vã, teoria destituída de base e sanção. É semente lançada à rocha e condenada a perecer; porque não basta semear, é necessário ainda preparar o terreno. As sábias noções do altruísmo não seriam capazes de comover e moralizar indivíduos saturados da ideia de que a luta das necessidades e dos interesses é a lei suprema da existência, convencidos de que todas as esperanças, todos os impulsos generosos vão terminar em nada.
O materialismo, reação vigorosa e inevitável contra o dogma e a superstição, penetrou em todas as camadas da sociedade francesa.
Nos espíritos cultos ele se adorna com o nome de Positivismo.
Quaisquer que sejam, entretanto, os nomes com que se decorem as filosofias negativas e as diferenças que caracterizem os seus métodos, as suas investigações, limitando-se às coisas concretas, ao domínio da matéria e das forças elementares, conduzem aos mesmos resultados. Pode-se, por esse motivo, reuni-las em uma apreciação comum.
O materialismo teve a sua hora de triunfo. Em dado momento, suas teorias predominaram na Ciência. Em suas lutas contra uma opressão secular, em seus esforços por libertar a consciência e permitir livre surto ao pensamento, ele bem o mereceu da Humanidade. Poderoso, porém, para destruir, nada pôde edificar.
Se liberta a alma humana da rede de superstições em que ela se debate, é para em seguida a deixar vagando ao acaso, sem guia e sem apoio. Ignora, ou pretende ignorar a verdadeira natureza do homem, as suas necessidades e aspirações, porque se sente incapaz de as satisfazer. Destrói o edifício das velhas crenças - acanhado edifício que já não era suficiente para abrigar o pensamento e a consciência - e, em lugar de uma construção mais espaçosa, melhor esclarecida, é o vácuo o que lhes oferece, é um abismo de miséria moral e desesperança. Por isso, todas as almas sofredoras, todas as inteligências apaixonadas de ideal que cederam às suas sugestões acabam, cedo ou tarde, por abandoná-lo.
Se as correntes de ideias materialistas penetraram das altas regiões políticas até às mais profundas camadas sociais, em compensação, no domínio da Ciência, perderam em grande parte a influência. As experiências da moderna Psicologia têm sobejamente demonstrado que tudo não é exclusivamente matéria ou força, qual afirmavam Buchner, Carl Vogt, Júlio Soury e outros; provaram que a vida não é uma propriedade dos corpos, que se esvai com eles. (Nota xci: Ver Depois da Morte, cap. VIII.) Depois das experiências do Doutor Luys, de Baraduc, de Rochas, Myers, Richet, etc., não se ousaria mais dizer com Carl Vogt que o cérebro segrega o pensamento como o fígado segrega a bílis. Pesam-se as secreções do corpo humano, mas quem, porventura, pesou o pensamento? A própria teoria atomística desacreditou-se. O átomo, base essencial do Universo, no dizer dos materialistas, é agora reputado pelos químicos uma pura abstração.
É o que diz Berthelot em suas Origens da Química, pág. 320: "O éter dos físicos e o átomo dos químicos se desvanecem para ceder o lugar a concepções mais elevadas, que tudo tende a explicar pelos exclusivos fenômenos do movimento. " W. Ostwald, professor de Física na Universidade de Leipzig, em seu estudo intitulado A derrota do atomismo (Revista Geral das Ciências, de novembro 1895), exprime-se nestes termos a respeito do átomo e da teoria mecânica do Universo, a qual abrange ao mesmo tempo a mecânica celeste e os fenômenos da vida orgânica: "É uma invenção muito imperfeita. A tentativa nem mesmo tem o valor de uma hipótese subsidiária. É um puro e simples erro. " O Senhor Oswald acredita, como Newton, que devem existir princípios mais elevados que os atualmente conhecidos.
Dessas apreciações dos homens mais competentes resulta que os materialistas construíram o edifício da Ciência sobre a base mais frágil que se possa imaginar.
O materialismo vê apenas o primeiro plano das coisas; não abrange senão um único aspecto da realidade. A matéria é, incontestavelmente, um mundo magnífico quando a consideramos na majestosa unidade das suas leis. Mas a matéria, mesmo que pudéssemos conhecê-la em essência, não é tudo. Não representa mais que o aspecto inferior do mundo e da vida.
A filosofia sobre tais noções arquitetada baseia suas conclusões no testemunho exclusivo dos sentidos; ora, os nossos sentidos são limitados e insuficientes; muitas vezes nos enganam. Não é com os sentidos físicos, nem com os instrumentos de precisão, ou com retortas, que se descobrem as causas e as leis superiores. Só a razão pode conhecer a razão suprema das coisas.
Com o seu acurado estudo das formas físicas, os materialistas acreditaram penetrar todos os segredos da Natureza. Dela não consideravam, realmente, senão o aspecto menos sutil; faziam abstração de todo um conjunto de forças e de causas, sem o conhecimento das quais toda explicação do Universo é impossível.
Os materialistas fizeram como o mineiro que sob a terra cava o aurífero filão. A cada passo descobre ele novos tesouros, novas riquezas, e o mesmo aconteceu à ciência positiva - justiça se lhe faça - mas, à medida que prossegue na tarefa, o mineiro perde de vista a luz do dia, o domínio esplêndido da vida, para engolfar-se nas regiões da noite, da morte e do silêncio. Assim procedeu o materialismo.
Nas altas esferas intelectuais, a derrota do materialismo esteve a pique de arrastar consigo a da Ciência. Lançaram a esta a pedra, como se pudesse ela ser responsabilizada pelas teorias formuladas em seu nome. Em vibrantes artigos, foi acusada de não haver dado o que o espírito humano tinha o direito de esperar.
O Senhor Séailles diz, em seu discurso proferido por ocasião da abertura da Faculdade de Letras, em 1894: "A ciência moderna conduz à confusão do pensamento, que se perde no mundo que ela descerra, e sepulta-se em sua vitória. " Outros asseguravam, com o Senhor Brunetiere, que a Ciência havia feito bancarrota. Evidentemente, isto é excessivo e inexato. O que fez bancarrota, realmente, não foi a Ciência em seu conjunto, foram certas teorias baseadas no Materialismo e no Positivismo.
Se atiram a luva à Ciência, não é que desconheçam os serviços que prestou e presta, todos os dias, à Humanidade. Ninguém pode dizer que a Ciência não contribuiu, em larga escala, para o desenvolvimento do progresso material e da civilização. Vimos acima que foi graças a ela, às suas descobertas, que se retificaram as concepções errôneas da Teologia.
Razão de estranheza há, todavia, ao considerarmos a sua impotência para fornecer ao homem o verdadeiro conhecimento de si mesmo e das leis que regem o seu destino. Ora, sente-se vagamente que a Ciência teria podido conduzir a esses resultados se, em lugar de encerrar-se no estudo da matéria, tivesse querido explorar sinceramente, com perseverança, todos os domínios da vida. Sob a pressão das doutrinas negativas, a Ciência perdeu-se na análise, no estudo fragmentário da natureza física. Mas a poeira da Ciência não é a Ciência; a poeira da Verdade não é a Verdade.
A Humanidade, fatigada das concepções metafísicas e das soluções teológicas, tinha voltado o olhar e as esperanças para a Ciência. Pedia-lhe o segredo da existência, uma crença, uma nova fé para substituir a dos templos, que se abate. Pedia-lhe a solução desses problemas da vida, que a dominam, assediam, envolvem nas suas profundezas.
Uma coisa sempre nos surpreendeu profundamente: é que, entre os homens de espírito liberal que dirigem os destinos da República, muitos se acreditam e se confessam materialistas e ateus. Como não compreenderam que o materialismo, baseando-se na fatalidade cega e consagrando o direito da força, não pode produzir homens livres?
Os democratas de 89 e de 48 tinham outras concepções.
Segundo as teorias materialistas, o homem não passa de máquina governada por instintos. Ora, para uma máquina não pode haver liberdade, nem responsabilidade, nem leis morais, porque a moral é lei do espírito. E sem lei moral, em que se torna a ideia do dever? Subverte-se, e com ela toda a ordem estabelecida. Uma sociedade não pode viver, desenvolver-se e progredir senão firmada na ideia do dever, ou, por dizer diversamente, na virtude e na justiça. Estas as bases únicas, possíveis, da ordem social. Por isso é que esta jamais pôde conciliar-se com o ateísmo e o materialismo; porque, do mesmo modo que a superstição e a idolatria levam ao arbítrio e ao despotismo, o materialismo e o ateísmo conduzem logicamente à depressão das forças sociais, muitas vezes até à anarquia e ao niilismo.
O materialismo, com a noção puramente mecânica do Universo e da vida, lançou no domínio do pensamento uma noção acabrunhadora do futuro. A seu ver, o homem não é mais que joguete do acaso, simples roleta da grande e cega máquina do mundo. A existência não passa de luta áspera, feroz, em que domina a força, em que os fracos sucumbem fatalmente. Quem não conhece a doutrina do struggle for life, graças à qual a vida se torna um sinistro campo cerrado, onde os seres passam, se sucedem, se impelem, para acabar submersos nas profundezas do nada?
É com semelhantes teorias, difundidas nas massas, que o materialismo se constituiu um verdadeiro perigo social. Desse modo, tornou mais pesado ao homem o fardo das misérias e mais sombrias as perspectivas da existência; diminuiu a energia humana, compeliu o desgraçado à tristeza, ao desespero, ou à revolta. Como, pois, estranharmos que os casamentos se tornem cada vez mais raros e os infanticídios, suicídios, alienações mentais se multipliquem? Em nossos dias, como sinal dos tempos, vêem-se, muitas vezes, jovens de ambos os sexos, crianças quase, recorrer ao suicídio por motivos fúteis. (Nota xcii: Segundo as estatísticas, o número dos mortos voluntariamente se elevou de trezentos per cento, de cinqüenta anos para cá.) O exército do vício e do assassínio engrossa em proporções assustadoras.
Com as teorias da escola materialista a responsabilidade moral desaparece. O homem não é livre, dizem-nos Buchner e seus discípulos; é escravo do meio. O crime se explica pelo atavismo e pela hereditariedade. É um fenômeno natural; é o efeito necessário de uma causa, a consequência de uma fatalidade oculta. Não há, em definitivo, nem bem nem mal! E por esse modo se justificam as mais graves faltas, anestesia-se a consciência, destrói-se toda ideia de sanção moral e de justiça. Se, com efeito, o crime é fatal, é involuntário, não é imputável nem infamante. Se a paixão é irresistível, porque se há de tentar combatê-la? Semelhantes opiniões, propagadas em todas as camadas, têm tido como consequência sobre-excitar ao mais alto grau os apetites, desenvolvendo o sensualismo e os instintos egoístas. Nas classes abastadas, muitos não têm senão um objetivo: suprimir os deveres e as lutas austeras da vida, fazer da existência uma perpétua bacanal, uma espécie de embriaguez, mas embriaguez cujo despertar poderia ser terrível.
Negam o livre-arbítrio e a sobrevivência do ser; negam Deus, o dever, a justiça, todos os princípios em que repousam as sociedades humanas, sem se preocuparem com o que pode resultar de semelhantes negações. Não reparam a deplorável influência que elas exercem sobre as multidões, que são, desse modo, impelidas aos excessos. Assim é que, pouco a pouco, os caracteres se enfraquecem, a dignidade humana se amesquinha, as sociedades perdem a virilidade e a grandeza.
Uma literatura inspirada pelo tédio da vida surgiu e se espalhou por toda parte - uma literatura cuja onda sobe, alastra-se, ameaça extinguir toda chama, sufocar no seio da alma humana as esperanças generosas, os santos entusiasmos, submergir o pensamento nas ondas do mais negro pessimismo.
Lede, por exemplo, O Combate Social, do Senhor Clemenceau.
Prestai atenção ao prefácio dessa obra, de que se exala a triste poesia do nada, em que tudo fala de invasora decrepitude, de morte do pensamento e da consciência, do nada sobretudo, para o qual acredita o autor que todas as coisas rolam ou se arrastam. O senhor Clemenceau descreve as últimas fases da existência na Terra: "As nossas cidades derrocadas no meio de informes vestígios humanos, as últimas ruínas tombadas sobre a vida expirante, todo o pensamento, toda a arte tragados pela grande morte avassaladora.
Toda a obra humana sob a derradeira viscosidade da vida. " "E depois, a derradeira manifestação de vida terrestre será, a seu turno, destruída. Inutilmente, passeará o globo frio e nu a sua indiferença pelos estéreis caminhos do espaço. Encerrar-se-á, então, o ciclo dos últimos planetas irmãos, mortos alguns talvez já, desde agora. E os Sóis extintos, seguidos do seu fúnebre cortejo, precipitarão na noite a sua desordenada carreira para o desconhecido. " Ignora o autor, então, que a vida é eterna? Se no fundo dos céus se extinguem universos, outros se acendem e resplandecem; se há túmulos no espaço, também existem berços. Nada pode ser destruído, uma só molécula, nem um princípio de vida; para cada ser, como para cada mundo, a morte não é mais que transição, o crepúsculo que precede a aurora de um eterno recomeço. O Universo é o campo de educação do espírito imortal, a vida o seu conduto de ascensão para um ideal mais belo, iluminado pelos raios do amor e da justiça.
Em definitivo, de tantas lutas, de tantos males e vicissitudes, o que resulta é o bem final dos seres. Desgraçado de quem o não sabe ver e compreender!
Ouçamos ainda o Sr. Júlio Soury, num artigo da Justiça, de 10 de maio de 1895, no qual analisa a obra que citamos: "Que vem a ser o belo, o bem, o verdadeiro, senão meros conceitos, abstrações de abstrações? Ora, um conceito não corresponde a coisa alguma de objetivo. Na Natureza não há bem nem mal, nem verdade nem erro, nem beleza nem fealdade. Esses fantasmas não surgem senão em nosso espírito: hão de se desvanecer com o derradeiro homem". "Nós ignoraremos sempre de que substância é feito este mundo.
– O poder! Que é o mau? - A fraqueza! Que é a felicidade? - O Sentimento de que o poder se engrandece, de que foi superada uma resistência.
Comedimento, não; porém mais poder; não a paz antes de tudo, mas a guerra; não a virtude, mas o valor! "Pereçam os fracos e os estropiados. E que ainda os ajudemos a desaparecer. Que pode haver de mais pernicioso do que não importa que vício? - A piedade pelos fracos e desclassificados!" Eis aí o que os escritores e filósofos materialistas difundem nas folhas públicas. Têm eles verdadeiramente consciência da responsabilidade que contraem? Consideram a messe que tal sementeira produzirá? Sabem que, vulgarizando essas doutrinas desesperadoras e iníquas, metem na mão dos deserdados o facho dos incêndios e os instrumentos de morte?
Ah! Essas doutrinas parecem anódinas, inofensivas aos felizes, aos satisfeitos, aos cépticos que gozam, que possuem com o necessário o supérfluo, e com as quais justificam todos os seus apetites, desculpam todos os seus vícios; mas os que a sorte fere, os que padecem e sofrem, que uso, que aplicação farão de tais doutrinas?
O exemplo de Vaillant e de Emílio Henry no-lo demonstra.
Vaillant o declarou perante o Tribunal do Sena, em janeiro de 1894. Foi na leitura de obras materialistas que hauriu a ideia do seu crime.
Emílio Henry usava da mesma linguagem: "Estudos científicos iniciaram-me no jogo das forças naturais; eu sou materialista e ateu. " E quantos outros, depois, afirmaram as mesmas teorias perante seus juízes!
O ciência da matéria! Com as tuas implacáveis afirmações, com as tuas inexoráveis leis do atavismo e da hereditariedade, quando ensinas que a fatalidade e a força regem o mundo, tu aniquilas todo impulso, toda energia moral nos fracos e nos deserdados da existência; fazes penetrar o desespero no lar de inúmeras famílias; instilas o teu veneno até o âmago das sociedades!
Ó materialistas! Apagastes o nome de Deus no coração do povo: dissestes-lhe que tudo se resumia nos prazeres da Terra; que todos os apetites eram legítimos, que a vida era uma sombra efêmera.
E o povo acreditou; calaram-se as vozes íntimas que lhe falavam de esperança e de justiça. As almas fecharam-se à fé, para se abrirem às más paixões. O egoísmo expulsou a piedade, o desinteresse, a fraternidade.
Sem ideal em sua triste vida, sem fé no futuro, sem luz moral, o homem retrogradou ao estado bestial; sentiu o despertar dos ferozes instintos, entregou-se à cobiça, à inveja, aos arrastamentos desordenados. E agora, as feras rugem na sombra, tendo no coração o ódio e a raiva, prontas a despedaçar, a destruir, a amontoar ruínas sobre ruínas.
A sociedade está afetada de profundos males. O espetáculo das corrupções, do impudor, que em torno de nós se ostentam, a febre das riquezas, o luxo insolente, o frenesi da especulação que, em sua avidez, chega a esgotar, a estancar as fontes naturais da produção, tudo isso enche de tristeza o pensador.
E, como na ordem das coisas tudo se encadeia, tudo produz os seus frutos, o mal profusamente semeado parece atrair a dor e a tempestade. Esse o aspecto formidável da situação. Parece que atingimos uma hora sombria da História: Desgraçados dos que sufocaram as vozes da consciência, que assassinaram o ideal puro e desinteressado, que ensinaram ao povo que tudo era matéria e a morte o nada! Desgraçados dos que não quiseram compreender que todo ser humano tem direito à existência, à luz e, mais ainda, à vida espiritual; que deram o exemplo do egoísmo, do sensualismo e da imoralidade!
Contra essa sociedade que não oferece ao homem nem amparo, nem consolação, nem apoio moral, uma tempestade furiosa se prepara. Fuzilam, por vezes, raios do seio das multidões; a hora da cólera se avizinha. Porque não é sem perigo que se comprime a alma humana, que se impede a evolução moral do mundo, que se encerra o pensamento no círculo de ferro do cepticismo e do negativismo. Chega um dia em que esse pensamento retrocede violentamente, em que as camadas sociais são abaladas por terríveis convulsões.
Ergue, porém, a tua fronte, ó homem! e recobra a esperança.
Um novo clarão vai descer dos espaços e iluminar o teu caminho.
Tudo o que até agora te ensinaram era estéril e incompleto. Os materialistas não perceberam das coisas mais que a aparência e a superfície. Eles não conhecem da vida infinita senão os aspectos inferiores. O sonho deles é um pesadelo.
Sem dúvida, se considerarmos o espetáculo da vida na Terra, forçoso é reconhecer que o que nela predomina, nas inferiores regiões da Natureza, é a luta ardente, o combate sem tréguas, a perpétua guerra com que cada ser procura conquistar um lugar ao Sol. Sim, os seres se engalfinham e as forças universais se chocam em luta gigantesca; mas, em definitivo, o que dessa luta resulta não é o caos, a confusão, como se poderia esperar de forças cegas; é o equilíbrio e a harmonia. Por toda parte a destruição dos seres e das coisas não é senão o prelúdio de reconstruções, de novos nascimentos.
E que importa a morte aparente, se a vida é imortal, se o ser é, em sua essência, imperecível; se mesmo essa morte é uma das condições, uma das fases da sua elevação?
Não são, pois, a condição nem a origem que dão o talento. Um pai ilustrado pode ter uma descendência medíocre. Dois irmãos podem parecer-se fisicamente, nutrir-se com os mesmos alimentos, receber a mesma educação, sem ter por isso as mesmas aptidões, as mesmas faculdades.
Em desmentido às teorias negativas, tudo, ao contrário, demonstra que a inteligência, o gênio, a virtude, não são o resultado das condições materiais, mas que, longe disso, se afirmam como um poder superior a essas condições e muitas vezes as dominam e governam.
Sócrates, que prefere beber a cicuta a renegar suas doutrinas. É Pedro Ramus, Arnaldo de Brescia, João Huss, Jerônimo de Praga, Savonarola.
Em todos esses grandes supliciados vemos afirmar-se a cintilante superioridade do espírito sobre a matéria. O corpo, atormentado pelo sofrimento, se estorce e geme, mas lá está a alma que se impõe e domina as revoltas da carne.
Tudo isso nos demonstra que imenso tesouro é a vontade, faculdade máter, cuja utilização constante e esclarecida tão alto pode elevar o homem. A vontade é a arma por excelência que ele precisa aprender a utilizar e incessantemente exercitar. Os que, com os seus sofismas, a procuram deprimir e entorpecer, cometem a mais funesta ação.
Não é, realmente, bem amargo assinalarmos que as doutrinas mais difundidas entre nós, o Catolicismo de um lado, o Materialismo do outro, concorrem ambas para aniquilar ou, pelo menos, dificultar o exercício das potências ocultas no ser humano - razão, vontade, liberdade –, potências mediante as quais poderia o homem realizar tão grandes coisas e criar para si um esplêndido futuro?
Como, depois disso, nos admirarmos de que a nossa civilização ainda apresente tantas chagas repugnantes, desde que o homem a si mesmo se ignora, ignorando a extensão das riquezas que nele a mão divina colocou para sua felicidade e elevação?
A Humanidade, no círculo da vida, debate-se entre dois erros: um que afirma e outro que nega; um que diz ao homem: crê sem compreender; outro que lhe grita: morre sem esperar!
De um lado a idolatria, porque é um ídolo esse Deus que ainda parece desejar o sangue em seu nome outrora derramado, que se ergue como obstáculo entre o homem e a Ciência, que combate o progresso e a liberdade - sombria divindade de que se não pode fazer objeto de ensino, sem velar a face do Cristo, sem calcar aos pés a razão e a consciência.
Do outro lado o nada, o aniquilamento de toda esperança, de toda aspiração à outra vida, a destruição de toda ideia de solidariedade, de fraternidade entre os homens; se eles podem sentir-se ligados por uma crença, mesmo cega, não o podem ser por negações.
A França, em particular, acha-se presa, como em um torniquete, entre essas duas concepções opostas, ambas dogmáticas a seu modo, ambas procurando impor-se a todo o país e nele fundar o reino da teocracia ou do ateísmo.
Se o materialismo e o negativismo tivessem apenas sido os inimigos da superstição e da idolatria, ter-se-ia podido neles ver os agentes de uma transformação necessária. Mas, não se limitaram a dar combate aos dogmas religiosos, condenaram tudo o que constitui a grandeza da alma, aniquilaram as suas energias morais, destruíram a sua confiança em si mesma e em Deus, preconizaram esse abandono à fatalidade, esse apego exclusivo às coisas materiais, que lentamente nos desarma, enfraquece e prepara para a queda e para o desbarato.
A alma humana recuou diante desse abismo. Os progressos do materialismo, as suas consequências sociais, lançaram o terror em grande número de espíritos. Diante da obra de destruição realizada pela crítica materialista e da ausência de todo ensino suscetível de elevar e fortalecer a alma das democracias, ocorreu-lhes o poder da ideia religiosa; voltaram-se para a Igreja como único refúgio, única autoridade sólida e eficaz.
Daí, um recobro de vitalidade, um retorno de prestígio para o Catolicismo. Este, prevalecendo-se dos erros dos adversários, emprega vigorosos esforços por disputar aos livres pensadores a direção das massas e readquirir a perdida influência.
Como vimos, porém, não seria capaz a Igreja Romana de satisfazer a necessidade de luz e de ideal que para ela conduz certos espíritos. Suas forças não são forças vivas; o que ela traz no seio não é o futuro, é o passado com as suas sombras, a sua intolerância, os seus ódios, os seus motivos de divisão e perpétua discórdia entre os homens. Essa retroação das coisas que vem favorecê-la não pode deixar de ser efêmera. Cedo a incapacidade da Igreja se patenteará aos olhos de uma geração esclarecida, ávida de fatos e realidades.
A própria Igreja se encarregou de desiludir os que nela depositavam algumas esperanças de progresso e renovação.
Com sua encíclica Satis cognitum, publicada em agosto de 1896, Leão XIII reincidiu cegamente nas doutrinas do passado, nas mais intransigentes afirmações. "É na 1greja Romana que se perpetua - diz ele - a missão constante e imutável de ensinar tudo o que o próprio Jesus Cristo ensinou. " Para todos subsiste "a obrigação constante e imutável de aceitar e professar toda a doutrina assim ensinada. " "A Igreja e os Santos Padres viram sempre como excluído da comunhão católica, e fora da Igreja, quem quer que se separe, pouquíssimo que seja, da doutrina ensinada pelo magistério autêntico. " "Toda vez, pois, que a palavra desse magistério, instituído na 1greja por Jesus Cristo, declara que tal ou tal verdade faz parte do conjunto da doutrina divinamente revelada, deve cada um crer com certeza que isso é verdade. " Depois, ainda Pio X, em suas instruções sobre o modernismo, acentuou esse estado de espírito.
Assim, mais que nunca, pretendem os papas decidir do destino das almas. Suas encíclicas não são mais que reedições, noutros termos, da famosa expressão: "Fora da Igreja não há salvação!" Eles condenam todas as doutrinas que não aceitam a sua supremacia. Cavam mais profundamente o fosso que separa o pensamento moderno, o livre e claro espiritualismo, do dogmatismo romano. Aniquilam as ilusões dos que haviam acreditado num possível retorno do Catolicismo na direção de mais largos e iluminados horizontes, na conciliação entre os crentes de todas as ordens, unindo seus esforços comuns para combater o ateísmo e a desmoralização.
A despeito das investidas que sofreu nos últimos séculos, a Igreja pôde resistir e manter-se. Sua força, recordemo-lo, residia no fato de possuir uma concepção geral do mundo e da vida, embora falsa, para opor ao vácuo e à esterilidade dás doutrinas materialistas. O que nela resta de moral evangélica, junto à sua poderosa organização hierárquica, à sua rigorosa disciplina, às obras de beneficência e às virtudes de um certo número dos sacerdotes, bastou para favorecer a resistência, para assegurar-lhe a vida no seio de um mundo que se esforçava por escapar à sua constrição.
Pueril seria, porém, acreditar que a fé do passado pode renascer; para sempre se afrouxou o laço religioso que prendia os homens à Igreja Romana. O Catolicismo, dissemos, já não está em condições de fornecer às sociedades modernas o alimento necessário à sua vida espiritual, à sua elevação moral. Não o vemos em torno de nós? Os crentes atuais, tomados de conjunto, não são nem menos materiais, nem menos aferrados à fortuna, aos prazeres, aos gozos, do que os livres pensadores.
Entre eles, quantos indiferentes, que praticam a meio, sem crer, sem jamais refletir nos problemas religiosos relativos ao Universo, ao homem e à vida! Todos os erros do passado, todos os vícios do velho mundo, o farisaísmo judaico, as superstições e a idolatria pagãs, reapareceram na sociedade dita cristã, a tal ponto que se tem o direito de perguntar se a civilização que se adorna com esse nome é superior à que adotam outros.
O Cristianismo era uma fé viva e radiante; o Catolicismo é apenas uma doutrina áspera e sombria, irreconciliável com os preceitos do Evangelho, não tendo para opor aos argumentos da crítica racionalista senão as afirmações de um dogma impotente para provar e convencer.
Todas as declarações, todas as encíclicas pontificais nada podem a esse respeito. Será preciso mudar ou morrer. A Igreja Romana não reassumirá o governo do mundo.
Na hora atual não há renovação moral possível senão fora do dogmatismo das igrejas. O que reclamam as nossas sociedades é uma concepção religiosa em harmonia com o Universo e a Ciência e que satisfaça à razão. Toda restauração dogmática seria estéril. Os povos já se não enganariam com isso. O dogma, para eles, é a Igreja. E a Igreja, aliando-se a todas as opressões, tornou-se, na frase de J. Jaurès, "uma das formas da exploração humana". Suas afirmações perderam todo o crédito no espírito das massas. O povo, hoje, quer a verdade, toda a verdade.
É certo que a sociedade moderna ainda se prende, senão à Igreja, pelo menos ao Cristianismo, por certos laços que são os de todo um passado, lentamente formados através dos séculos.
Continua ligada à ideia cristã, porque os princípios do Evangelho penetraram, sem que talvez o percebesse e sob novos nomes, em seu coração e pensamento.
Há, no Evangelho, princípios, germes, longo tempo ocultos e incompreendidos, como a semente sob a terra, e que, depois de muitos sofrimentos lenta e dolorosamente fermentados, não reclamam senão aparecer, desabrochar, produzir frutos. Para isso é necessário um novo impulso, uma diferente orientação do pensamento neocristão, promovida por espíritos sinceros e desinteressados.
O Cristianismo trouxera ao mundo, mais que todas as outras religiões, o amor ativo por todo o que sofre, a dedicação à Humanidade levada até ao sacrifício, à ideia de fraternidade na vida e na morte, aparecendo pela primeira vez na História sob a figura do Crucificado, do Cristo morrendo por todos.
Foi esse grande pensamento que, não obstante as manobras da Igreja e o falseamento das doutrinas primitivas, penetrou nas sociedades ocidentais e impeliu as raças brancas, de estádio em estádio, para formas sociais mais conformes ao espírito de justiça e fraternidade, incitando-as a assegurar aos humildes um lugar cada vez mais amplo à plena luz da vida. É preciso que um novo movimento de ideias, partido, não do santuário, mas de fora, venha completar e pôr em evidência esses preceitos, essas verdades ocultas, mostrar nelas o princípio das leis que regem os seres nesta, como na outra vida. Será essa a missão do moderno Espiritualismo.
A nova revelação, os ensinos dos Espíritos, as provas que fornecem da sobrevivência, da imortalidade do ser e da justiça eterna, habilitam a distinguir o que há de vivo ou morto no Cristianismo. Se os homens de fé quiserem convencer-se do poder desses ensinos e colher os seus frutos, poderão neles encontrar novamente a vida esgotada, o ideal atualmente agonizante.
Esse ideal, que as vozes do mundo invisível proclamam, não é diferente do dos fundadores do Cristianismo. Trata-se sempre de realizar na Terra "o reino de Deus e sua justiça", de purificar a alma humana dos seus vícios, dos seus erros, de a reerguer de suas quedas e, ministrando-lhe o conhecimento das leis superiores e dos seus verdadeiros destinos, nela desenvolver esse espírito de amor e de sabedoria sem o qual não há enobrecimento nem paz social. O Cristianismo, para renascer e resplandecer, deverá vivificar-se nessa fonte em que se desalteravam os primeiros cristãos. Terá que se transformar, libertar-se de todo caráter miraculoso e sobrenatural, voltar a ser simples, claro, racional, sem deixar de ser um laço, uma relação entre o homem, o mundo invisível e Deus.
Sem essa relação, não há crença forte, nem filosofia elevada, nem religião viva.
Desembaraçando-se das formas obsoletas, deve a Religião inspirar-se nas modernas descobertas, nas leis da Natureza e nas prescrições da razão. Deve familiarizar o espírito com essa lei do destino que multiplica as existências e o coloca alternativamente nos dois mundos, material e fluídico, permitindo-lhe, assim, completar, desenvolver, conquistar a própria felicidade. Deve fazer-lhe compreender que uma estreita solidariedade liga os membros das duas humanidades, a da Terra e a do espaço, os que vivem na carne e os que nela aspiram renascer para trabalhar no progresso dos seus semelhantes e no seu próprio. Deve mostrar-lhe, acima de tudo, essa regra de soberana justiça, em virtude da qual cada um colhe, através dos tempos, tudo o que semeou de bem e de mal, como germes de felicidade ou sofrimento.
Essas noções, essas leis, mais bem-compreendidas, fornecerão nova base de educação, um princípio de reconstituição, um laço religioso entre os homens. Porque o vínculo da solidariedade que os reúne estende-se ao passado e ao futuro, abrange todos os séculos, liga-os a todos os mundos. Membros de uma só família imensa, solidários através das suas existências no vastíssimo campo de seus destinos, partidos do mesmo ponto para atingir as mesmas eminências, todos os homens são irmãos e se devem mutuamente auxiliar, amparar em sua marcha através das idades, para um ideal de ciência, sabedoria e virtude.
O Cristo disse: "a letra mata e o espírito vivifica". Mas sempre os homens da letra procuraram avassalar o espírito. Emaranharam o pensamento em uma rede de dogmas de que este não pode sair senão mediante um despedaçamento. À força de comprimir a verdade, as igrejas terminaram por desconhecer o seu poder.
Chega, porém, o dia, cedo ou tarde, em que ela explode com força incoercível, abalando, até aos seus fundamentos, as instituições que por muito tempo a escravizaram.
É do que estão ameaçadas as igrejas. As advertências, todavia, não lhes têm faltado. Mesmo dentre os mais sinceros cristãos, vozes proféticas se têm feito ouvir. Que dizia de Maistre desde a primeira metade do século dezenove? "Igreja cristã, imaginas que possa tal estado de coisas ser duradouro e que essa extensa apostasia não seja ao mesmo tempo a causa e o presságio de memorável julgamento? Vê se os iluminados erraram encarando como mais ou menos próxima uma terceira explosão da onipotente bondade de Deus para com os homens. Eu não acabaria mais, se me propusesse acumular todas as provas que se reúnem para justificar essa longa expectativa. Força é que nos preparemos para um grande acontecimento na ordem divina. Na Terra não há mais religião. Formidáveis oráculos, além disso, anunciam que os tempos são chegados. " Realizam-se as previsões desse escritor. A Humanidade atravessa, do ponto de vista filosófico, religioso e social, profunda crise. As potências invisíveis estão em atividade. Todos quantos, no silêncio, quando emudecem os ruídos da Terra têm escutado as suas vozes, todos os que estudam as correntes, os sopros misteriosos que passam pelo mundo, sabem que um trabalho de fermentação se opera nas profundezas do pensamento e na própria Ciência. Uma renovação se está preparando. Nosso século assistirá ao desabrochar de uma grande ideia.
Por isso é que dizemos aos sacerdotes de todos os cultos e de todas as religiões: Se quereis que vivam as vossas igrejas, volvei a atenção para a nova luz que Deus envia à Humanidade. Deixai que ela penetre no sombrio edifício das vossas concepções; deixai-a entrar a flux nas inteligências, a fim de que os homens, esclarecendo-se, corrijam-se; a fim de que o ideal religioso renasça, aqueça os corações e vivifique as sociedades.
Dilatai vossos horizontes; procurai o que aproxima as almas e não o que as divide. Não lanceis o anátema aos que não pensam como vós, porque para vós mesmos preparareis cruéis decepções na outra vida. Que a vossa fé não seja exclusivista, nem intolerante.
Aprendei a discernir, a separar as coisas imaginárias das reais.
Abstende-vos de combater a Ciência e renegar a razão, porque a razão é Deus dentro de nós, e o seu santuário é a nossa consciência.
Objetareis, porém: já aí não estará a nossa religião?
Sem dúvida, o novo espiritualismo não é uma religião; mas aparece no mundo, tendo na mão um facho cuja projeção vai iluminar, à distância, e fecundar todas as religiões. O moderno espiritualismo é uma crença baseada em fatos, em realidades palpáveis, uma crença que se desenvolve, progride com a Humanidade e pode unir todos os seres, elevando-os a uma concepção sempre mais alta de Deus, do destino e do dever. Graças a ele, cada um de nós aprenderá a comunicar-se com o supremo Autor das coisas, com esse Pai de todos, que é o vosso e o nosso Deus, e que todo cérebro que pensa, e todos os corações que adoram, procuram desde a origem das idades.
Cessai de atribuir a capacidade de estabelecer o vínculo moral e religioso a uma doutrina de opressão e de terror. Deixai ao espírito humano o livre surto para a luz e para a imensidade. Toda fulguração do alto é uma emanação de Deus, que é o sol eterno das almas.
Quando a Humanidade se houver libertado das superstições e dos fantasmas do passado, nela então vereis desabrochar os germes de amor e de bem que a mão divina lhe depôs no íntimo, e conhecereis a verdadeira religião, a que paira acima das diversas crenças e não maldiz nenhuma.