O Caminho do Reino

CAPÍTULO 28

NÃO TEM ONDE RECLINAR A CABEÇA



O grande desafio da emancipação interior em Cristo está no apego, em todas as instâncias que constituem o processo existencial da criatura.

Vincular é imperativo de aprendizado, mas desvincular é o salto quântico da alma que aprende a usufruir sem possuir, a experimentar sem reter, a comungar sem cristalizar.

Lucas aborda o assunto em suas anotações evangélicas (LC 9:57-62), e os movimentos descritivos estão recamados dos valores inerentes à genuína iniciação na Luz, como mostram as expressões "indo eles pelo caminho" e "seguir-te-ei para onde quer que fores".

Todo o processo evolucional, em bases conscientes, de despertamento interior, se dá "em caminho" (reencarnações sucessivas, adesão relativa e crescente a propostas iluminativas, geralmente reveladas por mestres e, em plenitude, pelo Senhor) com Ele (referencial superior de vida, pureza espiritual, proposta divina). O primeiro "deus" do Ser pensante, nas eras primitivas e também hoje nas estruturas psíquicas ainda rudes ou desviadas, é a matéria, representando todo o reino que o fluido cósmico pode constituir aos sentidos grosseiros dos que respiram em bases de interesse pessoal e exclusivo. Lidando com essas forças transitórias e entronizando-as segundo as habilidades desenvolvidas e os desejos concupiscentes, capacita-se a criatura a se mover por sentidos mais essenciais, que são a resultante de suas experiências somadas, denominada "moral".

Sentindo, pensando, escolhendo, investindo, deduzindo, concluindo e selecionando, caminha a alma, do ambiente puramente "material" em direção aos valores espirituais, e, por efeito de conscientização, suas expressões religiosas se alteram, deixando gradativamente a adoração exterior e conveniente para se tornar "sentimento" puro de reverência e aceitação operosa, transformadora: "Pela fé entendemos que os mundos pela palavra de Deus foram criados; de maneira que aquilo que se vê não foi feito do que é aparente" (Hebreus 11:3).

Neste episódio descritivo de Lucas, podemos observar as metáforas utilizadas por Jesus em sua didática divina, de profunda compreensão dos processos evolutivos, que são passos de uma iniciação reveladora, entre tempo e espaço: "As raposas têm covis, e as aves do céu, ninhos".

Aqui temos dois símbolos expressivos, pois as "raposas" (ou os "lobos") representam a cristalização do poder temporal, imagem do que pode a ambição desmedida e de rapina (ataque ao que é do outro ou de todos, com sagacidade). Elas têm tocas ou covis (sistemas de empoderamento, de usufruto exclusivo, de gestão draconiana). Já as "aves do céu" expressam as linhas do pensamento que norteiam a vida pessoal ou comunitária. Elas têm ninhos, pois também se cristalizam.

São os sistemas filosóficos de negação do divino, que entronizam o interesse pessoal ou de grupos distintos. Em ambas expressões, Jesus salienta a "coagulação" da proposta evolutiva, em razão do apego (vinculação fechada). Essa a moldura, a antítese, para que o Mestre pudesse demonstrar a natureza do "Filho do Homem", ou seja, o fruto sazonado de todos os processos reencarnatórios pertinentes ao plano terrestre, em esforços contínuos de superação, como coroamento de todos os aprendizados operados no tempo e em diversas condições.

Essa conjuntura educacional de profundidade, patrocinada pelo Cristo neste episódio de Lucas, é tão plena de valores, que os aspirantes a seguir "para onde quer que fores", mesmo "indo pelo caminho" com Ele (imagem de todos nós, que desejamos, mas nem sempre aceitamos fazer como se deve), argumentam no sentido de justificar os sistemas adotados para a própria vida: "Deixa que primeiro eu vá a enterrar meu pai" e "Deixa-me despedir primeiro dos que estão em minha casa".

Note-se que, com Jesus, nada nos é retirado do contexto existencial, pois isso é nossa oficina de trabalho e testemunho, de modo que, quando o Senhor nos convida ("Segue-me" e "Vai e anuncia o Reino de Deus"), Ele está propondo a "desarticulação" do interesse pessoal, a "desvinculação" mental, que geralmente nos aprisiona e nos torna aflitos em tudo o que fazemos. A meta é Deus, e tudo o mais deve estar relativizado, sem que isso seja uma indução à irresponsabilidade ou ao extremismo religioso, quando os crentes ou adeptos relegam obrigações e deveres para prestarem culto externo a líderes e a templos materiais.

A libertação é interna, por efeito de compreensão da vida para além dos véus: "Na verdade, na verdade te digo que, quando eras mais moço, te cingias a ti mesmo, e andavas por onde querias; mas, quando já fores velho, estenderás as tuas mãos, e outro te cingirá, e te levará para onde tu não queiras. E disse isto, significando com que morte havia ele de glorificar a Deus. E, dito isto, disse-lhe: Segue-me. E Pedro, voltandose, viu que o seguia aquele discípulo a quem Jesus amava, e que na ceia se recostara também sobre o seu peito, e que dissera: Senhor, quem é que te há de trair? Vendo Pedro a este, disse a Jesus: Senhor, e deste que será? Disse-lhe Jesus: Se eu quero que ele fique até que eu venha, que te importa a ti? Segue-me tu" (JO 21:18-22).

Operar em Cristo e fazer a vontade do Pai significa não cristalizar, não polemizar, não se deter, não se restringir. E, para que isso ocorra, o despertamento mental opera a libertação íntima ("E conhecereis a verdade, e a verdade vos libertará" - JO 8:32), o que prepara o território interior da alma para o advento maior: "A ninguém devais coisa alguma, a não ser o amor com que vos ameis uns aos outros; porque quem ama aos outros cumpriu a lei" (Romanos 13:8).