No mundo maior

Capítulo XII

Estranha enfermidade



Acompanhando o abnegado irmão dos sofredores, penetrei confortável residência, onde Calderaro me conduziu, incontinente, à presença de um nobre cavalheiro em repouso.

Achamo-nos em elegante aposento, decorado em ouro-velho. Magnífico tapete completava a graça ambiente, exibindo caprichosos arabescos em harmonia com os desenhos do teto.

Estirado num divã, o enfermo que visitávamos engolfava-se em profunda meditação. Ao lado, humilde entidade de nossa Esfera como que nos aguardava.

Aproximou-se e cumprimentou-nos, gentil.

Às fraternas interpelações do Assistente, respondeu solícita:

— Fabrício vai melhorando; no entanto, continuam os fenômenos de angústia. Tem estado inquieto, aflito…

O orientador lançou expressivo olhar ao doente e insistiu:

— Mantém ainda o autodomínio? Não se abandonou totalmente às impressões destrutivas? A interlocutora, revelando contentamento, informou:

— A Divina Misericórdia não tem faltado. O desequilíbrio integral, por enquanto, não erigiu seu império. Em nome de Jesus, nossa colaboração tem prevalecido.

Calderaro, então, fraternalmente indagou, dirigindo-se a mim:

— Chegaste, alguma vez, a examinar casos declarados de esquizofrenia?

Não adquirira conhecimentos especializados da matéria; todavia, não ignorava constituir esse morbo uma das mais inquietantes questões da psiquiatria moderna.

— Este ramo ingrato da Ciência, que estuda a patologia da alma, — declarou o companheiro, compreendendo a minha insipiência, — é, há muito tempo, campo de batalha entre fisiologistas e psicologistas; tal conflito é, em verdade, lamentável e bizantino, de vez que ambas as correntes possuem razões substanciais nos argumentos com que se digladiam. Somos, contudo, forçados a reconhecer que a psicologia ocupa a melhor posição, por escalpelar o problema nas adjacências das causas profundas, ao passo que a fisiologia analisa os efeitos e procura remediá-los na superfície.

Logo após, o Assistente recomendou-me examinar a esfera mental do visitado.

Auscultei-lhe o íntimo, ficando aterrado com as inquietudes que lhe povoavam o ser. O cérebro apresentava anomalias estranhas. Toda a face inferior mostrava manchas sombrias. Os distúrbios da circulação, do movimento e dos sentidos eram visíveis. Calderaro apresentara-me Fabrício, classificando-o como esquizofrênico; mas não estaríamos, ali, perante um caso de neurastenia cérebro-cardíaca?

O instrutor ouviu-me pacientemente e observou:

— Diagnóstico exato, no aspecto em que o nosso amigo se apresenta hoje. A esquizofrenia, contudo, originando-se de sutis perturbações do organismo perispirítico, traduz-se no vaso físico por surpreendente conjunto de moléstias variáveis e indeterminadas. No momento, temos aqui a doença de Krishaber com todos os característicos especiais.

Mostrando grave expressão no semblante, acrescentou:

— Repara, contudo, além dos efeitos mutáveis. Analisa a mente e os domínios das sensações.

Lancei mais profundamente a sonda de minha observação sobre os quadros interiores do enfermo e percebi-lhe imagens torturantes na tela da memória.

Ensimesmado, Fabrício não se dava conta do que ocorria no plano externo. Braços imóveis, olhos parados, mantinha-se distante das sugestões ambientes; no íntimo, todavia, a zona mental semelhava-se a fornalha ardente.

A imaginação superexcitada detinha-se a ouvir o passado… Recordava-lhe a figura de um velhinho agonizante. Escutava-lhe as palavras da última hora do corpo, a recomendar-lhe aos cuidados três jovens presentes também ali, na paisagem de suas reminiscências. O moribundo devia ser-lhe o genitor, e os rapazes, irmãos. Conversavam, entre si, lacrimosos. De repente, modificavam-se-lhe as lembranças. O ancião e os jovens pareciam revoltados contra ele, acusando-o. Nomeavam-no com descaridosas designações…

O doente ouvia as vozes internas, ansioso, amargurado. Desejava desfazer-se do pretérito, pagaria pelo esquecimento qualquer preço, ansiava de fugir a si próprio, mas em vão: sempre as mesmas recordações atrozes vergastando-lhe a consciência.

Verificava-lhe eu os estragos orgânicos, resultantes do uso intensivo de analgésicos. Aquele homem deveria estar duelando consigo mesmo, desde muitos anos.

Achava-me no exame da situação, quando uma senhora idosa surgiu no aposento, tentando chamá-lo à realidade.

— Vamos, Fabrício! Não se alimenta hoje?

O interpelado vagueou o olhar pela sala, esboçou uma resposta negativa sem palavras e deixou-se ficar na mesma posição.

A matrona insistiu, afável, mas não conseguiu demovê-lo. E porque prosseguisse, atenciosa, buscando ministrar-lhe um caldo, o enfermo levantou-se, de súbito, como se houvera repentinamente enlouquecido. Esbravejou expressões inconvenientes e ingratas; rubro de cólera, repeliu o oferecimento, surpreendendo-me pela crise de nervos destrambelhados.

A esposa regressou ao interior da casa, enxugando os olhos, enquanto Calderaro me esclarecia, comovido:

— Está no limiar da loucura, e ainda não enveredou francamente pelo terreno da alienação mental, graças à dedicação de velha parenta desencarnada que o assiste, vigilante.

Logo após, o Assistente o submeteu a operações magnéticas de reconforto, vigorando-lhe a resistência.


Ante o neurastênico, mais calmo agora, narrou, com serenidade:

— Nosso irmão enfermo teve a infelicidade de apropriar-se indebitamente de grande herança, depois de haver prometido ao genitor moribundo velar pelos irmãos mais novos, na presença destes; ao se sentir, porém, senhor da situação, desamparou os manos e expulsou-os do lar, valendo-se de rábulas bem remunerados, desses que, sem escrúpulo, vivem de inquinar os textos legais. Por mais enérgicas e convincentes as reclamações arrazoadas, por mais comovedores os apelos à amizade fraterna, manteve-se ele em clamorosa surdez, arrojando os irmãos à penúria e a dificuldades de toda a sorte. Dois deles morreram num sanatório em catres da indigência, minados pela tuberculose que os surpreendeu em excessivas tarefas noturnas; e o outro desencarnou em míseras condições de infortúnio, relegado ao abandono, antes dos trinta anos, presa de profunda avitaminose, consequente da subalimentação a que fora compelido. Tudo isto nosso desditoso amigo conseguiu fazer, escapando à justiça terrena; entretanto, não pôde eliminar dos escaninhos da consciência os resquícios do mal praticado; os remanescentes do crime são guardados em sua organização mental como carvões em paisagem denegrida, após incêndio devorador; e esses carvões convertem-se em brasas vivas, sempre que excitados pelo sopro das recordações. O mau filho e perverso irmão, enquanto senhor dos patrimônios de resistência que a virilidade do corpo lhe permitia, lograva fugir de si mesmo, sem grandes dificuldades. O dinheiro fácil, a saúde sólida, os divertimentos e prazeres, desempenhavam para ele a função de pesadas cortinas entre o personalismo arrogante e a realidade viva. Todavia, o tempo cansou-lhe o aparelho fisiológico e consumiu-lhe a maioria das ilusões; pouco a pouco, encontrou-se a si mesmo; na viagem de volta ao próprio eu, viu-se, porém, a sós com as lembranças de que não conseguira escoimar-se. Debalde intentou descobrir o bom ânimo e o bem-estar: estes se lhe ocultavam. Impossível era concentrar-se no próprio ser, sem ouvir o pai e os irmãos, acusando-o, exprobrando-lhe a vileza… A mente atormentada, não achava refúgio consolador. Se rememorava o pretérito, este lhe exigia reparação; se buscava o presente, não obtinha tranquilidade para se manter no trabalho sadio; e, quando tentava erguer-se a Plano superior, desejoso de orar ao Altíssimo, era surpreendido, ainda aí, por dolorosas advertências, no sentido de inadiável correção da falta cometida. Nesse estado espiritual, interessou-se tardiamente pelo destino dos irmãos. As informações colhidas não lhe deixavam margem ao pagamento imediato; haviam todos partido, precedendo-o na grande jornada do túmulo. Desde então, verificando a impraticabilidade de rápida retificação do tortuoso destino, o infeliz fixou-se nas zonas mais baixas do ser. Perdeu as ambições nobres e os ideais sadios, passou a ignorar os recursos da esperança. As vantagens materiais, ao invés de confortá-lo, infundiam-lhe, agora, pavoroso tédio e indizível desgosto. Engrazado à máquina das responsabilidades financeiras, criadas por ele mesmo sem o espírito de possuir para dar em nome do Bem Universal, não lhe foi possível esquivar-se às imposições da vida social, na qualidade de homem de alto comércio, até que baqueou, em supremo torpor. Sentindo-se incriminado no tribunal da própria consciência, começou a ver perseguidores em toda a parte. Adquiriu, assim, fobias lamentáveis. Para ele, todos os pratos estão envenenados. Desconfia de quase todos os familiares e não tolera as antigas relações. O excesso de recursos materiais fê-lo descrente da amizade sincera, conferiu-lhe noções de privilégio que nunca mereceu, acentuou-lhe a independência destrutiva, extinguiu-lhe no coração a bendita luz do verbo “servir”. Como vemos, sua situação é absolutamente desfavorável ao necessário reerguimento. A condição, a que se impôs pelos desejos menos nobres que sempre nutriu, é de apatia e de esterilidade…


A essa altura da narrativa, Calderaro apontou em particular o cérebro doente, e explicou:

— O sistema nervoso, que se liga à câmara encefálica através de processos indescritíveis na técnica da ciência humana, mais não é do que a representação de importante setor do organismo perispirítico, segundo acabamos de estudar. A mente falida de Fabrício, experimentando insistentes remorsos e aflitivas preocupações, intoxicou esses centros vitais com a incessante emissão de energias corruptoras. Consequentemente, verificou-se o que em boa psiquiatria poderíamos designar por “lesão generalizada do sistema nervoso”. Tal desastre atingiu, em primeiro lugar, as sedes das conquistas mais recentes da personalidade, isto é, as células e os estímulos mais jovens, que se localizam nos lobos frontais e no córtex motor, inutilizando temporariamente o nosso amigo, para a meditação elevada e para o trabalho sadio, e obrigando-o a regredir, no terreno espiritual, para dentro de si mesmo. De mente estacionária agora, em plena região instintiva da individualidade, nosso enfermo ainda não se acha positivamente desequilibrado, graças à contínua assistência de nosso Plano.


Calando-se o Assistente, ousei interrogar:

— Mas há esperança de reequilíbrio para breve?

— Absolutamente não. — Respondeu o interpelado, de maneira significativa; — no caso dele, funcionariam em vão as terapêuticas em uso. O Espírito delinquente pode receber os mais variados gêneros de colaboração, mas será imperiosamente o médico de si mesmo. A Justiça Divina exerce invariável ação, embora os homens não a identifiquem no mecanismo de suas relações ordinárias. Os criminosos podem, por muito tempo, escapar ao corretivo da organização judiciária do mundo; no entanto, mais cedo ou mais tarde, vaguearão, perante os seus irmãos em humanidade, em baixo terreno espiritual, representado no quadro de aflições punitivas. Para os familiares e amigos, Fabrício é um esquizofrênico, incapaz de resistir às aplicações do choque insulínico em virtude do coração frágil e cansado; todavia, para nós é um companheiro acidentado na ambição inferior, curtindo amargos resultados de seus propósitos de dominar egoisticamente na vida.

Interrompendo-se o orientador, dei guarida a interrogações naturais no campo íntimo.

Se o doente não oferecia perspectivas de melhoras substanciais, qual o objetivo de nossa assistência? Porque nos demorarmos à frente de um caso insolvível, qual aquele, pela impossibilidade de próximo reencontro entre o criminoso e suas vítimas?

Calderaro não me deixou sem resposta.

— Estamos aqui, — elucidou, atencioso, — a fim de proporcionar-lhe morte digna. Não chegará a enlouquecer em definitivo. Com o nosso concurso fraterno, desencarnará antes do eclipse total da razão.

E porque me mostrasse espantado, o prestimoso amigo acrescentou:

— Fabrício desposou uma criatura, por todos os títulos credora do amparo celestial, e essa mulher quase sublime deu-lhe três filhos, aos quais ele se consagrou nobremente, preparando-os para elevado ministério social. São eles, presentemente, dois professores e um médico, dedicados ao ideal superior de servir ao bem coletivo. Fabrício não tem o direito de perturbar a família organizada à sombra de seu amparo material, mas educada sem o seu personalismo despótico. Pelo serviço que prestou à esposa e aos filhos, recebe do Alto o socorro de agora, de maneira a transferir residência, por imposição da morte, preparado para o futuro de reajustamento. As preces da companheira e dos filhos garantem-lhe uma “boa morte” próxima, para a qual vamos organizando as suas energias e habituando pari passu a família a permanecer em missão ativa no bem sem a presença material dele.

Silenciou o Assistente, dispondo-se a fazer-lhe aplicações magnéticas no aparelho circulatório. Demorou-se minutos longos administrando-lhe forças ao redor dos vasos mais importantes e, em seguida, desenvolveu passes longitudinais, destinados à quietação dos nervos.

Ante minha admiração natural, Calderaro explicou-se:

— Preparamos acesso à trombose pela calcificação de certas veias. A desencarnação chegará suavemente, dentro de alguns dias, como providência compassiva, indispensável à felicidade do enfermo e de quantos lhe seguem de perto o martírio.

O doente, mais calmo, parecia haver sorvido milagroso analgésico. Aquietou-se, descansando a cabeça nos travesseiros alvos.


Dentro do silêncio que se fizera entre nós, indaguei, curioso:

— Considerando, no entanto, o decesso, em breves dias, como prosseguirá o processo de resgate do nosso amigo?

— A liquidação já começou, — redarguiu o instrutor, sereno.

— Como?

Calderaro fez expressivo gesto e recomendou:

— Espera.

Nesse mesmo instante, o enfermo acionou a campainha à cabeceira. A esposa atendeu, à pressa. Encontrou-o melhor e sorriu, feliz.

O velho, mais tranquilo, rogou:

— Inês, posso ver o Fabricinho?

— Como não? — Respondeu a companheira delicadamente, — vou buscá-lo.

Em poucos minutos, regressava trazendo um menino de seus oito anos. O pequeno atirou-se-lhe aos braços esqueléticos, com extremado carinho, e perguntou:

— Está melhor, vovô?

O doente contemplou-o, enternecido, informando:

— Estou melhor, meu filhinho… Porque não veio de manhã?

— Vovó não deixou.

— Sim, é verdade; eu não me achava bem…

A senhora retirou-se, para acompanhar a cena do outro lado da cortina.

Avô e neto sentiram-se mais à vontade.

Totalmente transfigurado com a presença do menino, nosso quase demente amigo suplicou:

— Fabricinho, eu desejo que você reze por mim…

O petiz não se fez rogado.

Ajoelhou-se ali mesmo e disse, respeitosamente, a oração dominical.

Terminada a prece, o doente pediu, de olhos úmidos:

— Não se esqueça, meu filho, de orar por mim quando eu morrer.

O menino, agora de pé, enlaçou-lhe o busto e exclamou, chorando discretamente:

— O senhor não morrerá!…

Mostrando-se aliviado, o velhinho correspondeu ao gesto afetivo, fitou o neto e inquiriu, com estranho fulgor no olhar:

— Fabricinho, você acredita que Deus perdoa aos pecadores como eu?

O pequeno respondeu, lacrimoso e confundido:

— Eu acho, vovô, que Deus perdoa todos nós.

Revelando as ansiedades que lhe povoavam a alma, voltou à indagação:

— Mesmo a um homem que trai a confiança paterna e rouba aos irmãos?

O netinho hesitou, incapaz de apreender toda a extensão daquela pergunta intencional; entretanto, no desejo de agradar ao doente, de qualquer modo, balbuciou com toda a simplicidade infantil:

— Eu penso que Deus perdoa sempre…

— É o que eu pretendia saber, — acentuou o velhinho, mais confortado.

A conversação entre ambos prosseguiu afetuosa e amena.

Após detido exame, Calderaro apontou para a criança e esclareceu:

— Este menino é o ex-pai de Fabrício, que volta ao convívio do filho delinquente pelas portas benditas da reencarnação. É o único neto do enfermo e, mais tarde, assumirá a direção dos patrimônios materiais da família, bens que inicialmente lhe pertenciam. A Lei jamais dorme.

Assombrado com a informação, remoí as perguntas que me afloravam, espontâneas.

Como se redimiria, por sua vez, o velho Fabrício? Regressaria também, em dias futuros, àquele mesmo lar? Sofreria o desequilíbrio completo, depois da morte do corpo denso? Demorar-se-ia em perturbação?

Calderaro, dando por findos nossos trabalhos de assistência na casa, sorriu para mim, preparou-se para a retirada e obtemperou:

— Nosso amigo enfermo, guardando na mente os resíduos da ação criminosa, logo após o abandono do domicílio fisiológico experimentará, por muito tempo, os resultados de sua queda, até que o sofrimento alije os elementos malignos que lhe intoxicam a alma. Quando esse serviço purgatorial estiver completo, então…

— Regressará aos seus familiares? — Inquiri, ansioso, ante a frase suspensa.

— Se o grupo consanguíneo atual houver elevado o padrão espiritual a luminosas culminâncias, será compelido a esforçar-se intensivamente pelo alcançar. Entretanto, jamais estará desamparado. Todos temos a imensa família, dentro da qual nos integramos desde a origem — a Humanidade.

Nesse instante, abandonávamos o aposento suntuoso.

Em breves segundos, tornávamos à Natureza, gozando a bênção do céu muito límpido. E enquanto o meu instrutor se refugiava em si mesmo, atento às responsabilidades do serviço, dei expansão a novos pensamentos, relativos à amplitude e à grandeza do império da justiça.