No mundo maior

Capítulo VIII

No santuário da alma



Noite fechada. Calderaro e eu penetramos casa confortável e nobre, onde o instrutor, segundo prometera, me proporcionaria alguns esclarecimentos novos com referência aos desequilíbrios da alma.

— Não é caso tão grave quanto aquele do paralítico que visitamos, — adiantou o prestimoso orientador; — trata-se, a bem dizer, de questão quase vencida. Há muito tempo assisto Marcelo com fluidos reconfortantes, e a sua situação é de triunfo integral. Dócil à nossa influência, encontrou na prece e na atividade espiritual o suprimento de energias de que necessitava. Vimos ontem um caso de destrambelho total dos elementos perispiríticos, com a consequente desagregação do sistema nervoso, em doloroso quadro que só o tempo corrigirá. Aqui, entretanto, a paisagem é outra. O problema de perturbação essencial já está resolvido, o reajustamento da vida surgiu pleno de esperanças novas, a paz regressou ao tabernáculo orgânico; mas perseveram ainda as recordações, os remanescentes dos dramas vividos no passado aflorando sob forma de fenômenos epileptóides, as ações reflexas da alma, que emergem de vasto e intricado túnel de sombras e que tornam, em definitivo, ao império da luz. Se o mal demanda tempo para fixar-se, é óbvio que a restauração do bem não pode ser instantânea. Assim ocorre com a doença e a saúde, com o desvio e o restabelecimento do equilíbrio.

Após atravessar o pórtico, dirigimo-nos, devidamente autorizados, ao interior, onde agradavelmente me surpreendeu encantadora cena de piedade doméstica: um cavalheiro, uma senhora e um rapaz achavam-se imersos nas divinas vibrações da prece, cercados de grande número de amigos do nosso Plano.

Fomos recebidos amorosamente.

Convidou-me o orientador a colaborar nos trabalhos em curso, de vez que, com a valiosa cooperação daqueles três companheiros encarnados, se prestavam a irmãos recém-libertos da Crosta reais auxílios, de modalidades várias.

Digna de registro era a respeitável beleza daquela reduzida assembleia, consagrada ao bem e à iluminação do espírito.

Admirando a harmonia daqueles três corações unidos nos mesmos nobres pensamentos e propósitos, e que miríficos fios de luz entrelaçavam, o Assistente amigo comentou com oportunidade:

— A família é uma reunião espiritual no tempo, e, por isto mesmo, o lar é um santuário. Muitas vezes, mormente na Terra, vários de seus componentes se afastam da sintonia com os mais altos objetivos da vida; todavia, quando dois ou três de seus membros aprendem a grandeza das suas probabilidades de elevação, congregando-se intimamente para as realizações do Espírito eterno, são de esperar maravilhosas edificações.

Compreendi que o instrutor estimaria prestar-me outros esclarecimentos, ampliando a santificante concepção da família; contudo, o serviço urgente não nos permitia mais longa palestra.

O trabalho de socorro a irmãos sofredores prosseguiu ativo, em “nosso lado”.

Terminado o concurso do trio familiar, com expressiva e comovedora oração, começou a retirada dos companheiros de nossa Esfera, enquanto os amigos encarnados entravam em carinhosa conversação.

O cavalheiro, com o sorriso feliz do trabalhador que bem cumpriu o dever, dirigiu-se aos circunstantes em voz alta:

— Graças a Deus, tudo normal.

Encarando o rapaz com imensa ternura paternal, indagou:

— E você, Marcelo, continua bem?

— Oh! Sem dúvida, — respondeu o interpelado, alegre; — estou maravilhado, papai, com os excelentes resultados que venho colhendo em nossas reuniões das quintas-feiras.

— Têm voltado os ataques noturnos?

— Não. À proporção que me esforço no conhecimento das verdades divinas, cooperando com a minha própria vontade no terreno da aplicação prática das lições recebidas, sinto que passo cada vez melhor, que me reforço intimamente, recuperando a saúde perdida. Reconheço também que, em me desinteressando da edificação espiritual, distraído da minha necessidade de elevação, voltam as perturbações com intensidade. Nessas fases nocivas, desperto alta noite com os membros cansados e doloridos, e assaltam-me evidentes sinais das convulsões, deixando-me longos momentos sem sentido…

O jovem sorriu a esta sua singela confissão filial e prosseguiu:

— Felizmente, porém, agora que me consagro, zeloso e assíduo, à tarefa espiritualizante, reconheço que os passes de mamãe são mais eficientes. Estou mais receptivo e observo que a boa vontade é fator decisivo em meu bem-estar.

Os ouvintes entreolharam-se, contentes, e o entendimento íntimo continuou, edificante, repleto de belas sugestões.


O Assistente, preparando-me o raciocínio, informou:

— Certo, não precisarei de esclarecer que Marcelo se entretém com os pais. Possui outros irmãos que ainda não se afinam com a sagrada missão do casal. Ele, porém, é portador de sentimentos elevados e generosos. Tem, como quase todos nós, um pretérito intensamente vivido nas paixões e excessos da autoridade. Exerceu, outrora, enorme poder de que não soube usar em sentido construtivo. Senhor de vigorosa inteligência, planou em altos níveis intelectuais, de onde nem sempre desceu para confortar ou socorrer. Portador de vários títulos honoríficos, muita vez os esqueceu, precipitando-se na vala comum dos caprichos criminosos. Impôs-se pelo absolutismo, e intensificou a lavra de espinhos que o dilacerariam mais tarde. Chegada a colheita de nefanda messe, experimentou sofrimentos atrozes. Inúmeras vítimas o esperavam além do sepulcro, e arremeteram contra ele. Entretanto, se errou clamorosamente, Marcelo, em muitas ocasiões, desejou ser bom e formou dedicações valiosas em torno de seu nome; tais devotamentos, contudo, houveram que aguardar oportunidade por auxiliá-lo. Os inimigos eram massa compacta e gritavam furiosamente, invocando a justiça vulgar; retiveram-no longo tempo nas regiões inferiores, saciaram velhos propósitos de vingança, seviciando-lhe a organização perispiritual. Marcelo, em plena sombra da consciência, rogou, chorou e penitenciou-se vastos anos. Por mais que suplicasse e por muito que insistissem os elementos intercessórios, a ansiada libertação demorou muitíssimo, porque o remorso é sempre o ponto de sintonia entre o devedor e o credor, e o nosso amigo trazia a consciência fustigada de remorsos cruéis. Os desequilíbrios perispiríticos flagelaram-no, assim, logo que atravessou o pórtico do túmulo, obstinando-se anos a fio…

Feito breve intervalo nas explicações, acrescentei, curioso:

— Isso quer, então, dizer, que o fenômeno epileptóide…

— … mui raramente ocorre por meras alterações no encéfalo, como sejam as que procedem de golpes na cabeça, — elucidou o Assistente, cortando-me a observação reticenciosa, — e, geralmente, é enfermidade da alma, independente do corpo físico, que apenas registra, nesse caso, as ações reflexas. Longe vai o tempo em que a razão admitia o paraíso ou o purgatório como simples regiões exteriores: Céu e inferno, em essência, são estados conscienciais; e, se alguém agiu contra a Lei, ver-se-á dentro de si mesmo em processo retificador, tanto tempo quanto seja necessário. Ante a realidade, portanto, somos compelidos a concluir que, se existem múltiplas enfermidades para as desarmonias do corpo, outras inúmeras há para os desvios da alma.

O instrutor fez pausa curta, apontou para o rapaz e continuou:

— Mas, regressando às informações a respeito de Marcelo, cabe-me dizer-te que, pouco a pouco, esgotou ele as substâncias mais pesadas do fundo cálice de provas. Longos anos de desequilíbrio, em que as vítimas tornadas em algozes o abalaram com tremendas convulsões através de choques e padecimentos inenarráveis, clarearam-lhe os horizontes internos; tendo nosso irmão, afinal, logrado entender-se com prestimoso e sábio orientador espiritual, a quem se liga desde remoto passado, foi socorrido e amparado. Indagou, ansioso, por almas que lhe eram particularmente queridas, sendo-lhe cientificado que os seus laços mais fortes já se encontravam de novo na carne, em testemunhos e labores dignificantes. Suplicou a reencarnação, prometeu aceitar compromissos de concurso espiritual na Crosta, a fim de resgatar os enormes débitos, colaborando no bem e na evolução dos inimigos de outrora, e conseguiu a dádiva, apoiado por abnegado mentor que o estima de muitos séculos. Tornou à Esfera carnal e reiniciou o aprendizado. Ultimamente renasceu estreitado em braços carinhosos, aos quais se sente vinculado no curso de várias existências vividas em comum. Agora, sinceramente aproveitando as bênçãos recebidas, desde os mais tenros anos, preocupa-se em reajustar as preciosas qualidades morais: caracteriza-se, desde menino, pela bondade e obediência, docilidade e ternura naturais. Passou a infância tranquilo, embora continuamente espreitado por antigos perseguidores invisíveis. Não se achava a eles atraído, em virtude do serviço regenerador a que se submetera; mas ao topar com algum dos adversários, nos minutos de parcial desprendimento propiciado pelo sono físico, sofria amargamente com as recordações. Tudo prosseguia sem novidades dignas de menção. Sob a vigilância dos pais e com o amparo dos benfeitores invisíveis, preparava-se o menino para os trabalhos futuros. Contudo, logo que se lhe consolidou a posse do patrimônio físico, ultrapassados os catorze anos de idade, Marcelo, com a organização perispiritual plenamente identificada com o invólucro fisiológico, passou a rememorar os fenômenos vividos, e surgiram-lhe as chamadas convulsões epilépticas com certa intensidade. O rapaz, todavia, encontrou imediatamente os antídotos necessários, refugiando-se na “residência dos princípios nobres”, isto é, na região mais alta da personalidade, pelo hábito da oração, pelo entendimento fraterno, pela prática do bem e pela espiritualidade superior. Limitou, destarte, a desarmonia neuro-psíquica e reduziu a disfunção celular, reconquistando o próprio equilíbrio, dia a dia, mobilizando as armas da vontade. Nesse esforço, dentro do qual se fez extremamente simpático, recebeu vultosa colaboração de nossa Esfera, aproveitando-a integralmente pela adesão criteriosa ao esforço construtivo do bem. Recebendo a luta com serenidade e paciência, instalou em si mesmo valiosas qualidades receptivas, favorecendo-nos o concurso e dispensando, por isso mesmo, a terapêutica dos hipnóticos ou dos choques, a qual, provocando estados anormais no organismo perispirítico, quase sempre nada consegue senão deslocar os males, sem os combater nas origens. O caso de Marcelo oferece por isto características valiosas. Atendendo as sugestões daqueles que o beneficiam, adaptando-se à realidade, vem sendo o médico de si mesmo, única fórmula em que o enfermo encontrará a própria cura.


Nesse instante, o rapaz despedia-se delicadamente dos pais, retirando-se para o quarto particular, onde se recolheu ao leito, após abluir a mente em pensamentos de paz e de gratidão a Deus.

Dentro de breves minutos afastava-se do veículo denso e vinha ter conosco, saudando Calderaro com especial carinho.

O Assistente apresentou-me, afável.

Mostrava o jovem profunda lucidez. Abraçado a nós ambos, com inequívocas demonstrações de alegria, comentou suas esperanças no porvir. Expôs-nos ardente desejo de trabalhar pela difusão do Espiritismo evangélico, disposto a colaborar na obra edificante que os genitores vêm realizando. Referiu-se, para admiração minha, às atividades de nossa colônia espiritual, indagou das minhas impressões de “Nosso Lar”, seduzindo-me pela oportunidade de conceitos e pela beleza das apreciações inteligentes e espontâneas.

Ia a conversa a meio, quando dois vultos sombrios cautelosamente se aproximaram de nós. Quem seriam, senão míseros transeuntes desencarnados? Inteiramente distraído, continuei nos comentários humildes, mas o estimado interlocutor perdeu visivelmente a calma. Qual se fora tocado no íntimo por forças perturbadoras, Marcelo empalideceu, levou a destra ao peito e arregalou os olhos desmesuradamente. Reparei que as ideias lhe baralhavam no cérebro perispiritual, que não conseguia ouvir-nos com tranquilidade, e, desprendendo-se, célere, de nossos braços, correu desabalado, retornando ao corpo.

Quis detê-lo, penalizado, pois conosco estava perfeitamente sintonizado; algo mais forte que o conhecimento cordial unia-me ao novo amigo, o que reconheci desde o primeiro contato; não pude, porém, faze-lo.

Reteve-me Calderaro, com vigor, e exclamou:

— Deixa-o, André. Acompanhemo-lo. Não podemos olvidar que Marcelo não se encontra perfeitamente curado.

Indicando as entidades provocadoras, a pequena distância, prosseguiu esclarecendo:

— A simples reaproximação dos inimigos de outra época altera-lhe as condições mentais. Receoso, aflito, teme o regresso à situação dolorosa em que se viu, há muitos anos, nas Esferas inferiores, e busca, apressado, o corpo físico, à maneira de alguém que se socorre do único refúgio de que dispõe, em face da tempestade iminente.

Os Espíritos erradios bateram em retirada, e tornamos ao interior doméstico, onde encontramos o jovem tomado de contorções.

Abracei-o, como se o fizesse a um filho querido.

O ataque amainou, sem, contudo, cessar de todo. Ergui os olhos para o orientador, em muda interrogação. Porque tal distúrbio? A câmara de Marcelo permanecia isolada, quanto ao contato direto com as entidades inferiores. Permanecíamos os três em palestra edificante. Por que motivo a perturbação, se nos mantínhamos em salutar atmosfera de santificantes pensamentos?

O instrutor contemplou-me, bondoso, e recomendou:

— Observa o campo orgânico, examinando particularmente o cérebro.

Notei que a luz habitual dos centros endócrinos empalidecera, persistindo somente a epífise a emitir raios anormais. No encéfalo o desequilíbrio era completo. Das zonas mais altas do cérebro partiam raios de luz mental, que, por assim dizer, bombardeavam a colmeia de células do córtex. Os vários centros motores, inclusive os da memória e da fala, jaziam desorganizados, inânimes. Esses raios anormais penetravam as camadas mais profundas do cerebelo, perturbando as vias do equilíbrio e destrambelhando a tensão muscular; determinavam estranhas transformações nos neurônios e imergiam no sistema nervoso cinzento, anulando a atividade das fibras. Via-se totalmente inibido o delicado aparelho encefálico. As zonas motoras, açoitadas pelas faíscas mentais, perdiam a ordem, a disciplina, o autodomínio, por fim cedendo, baldas de energia. Enquanto isso, Marcelo-Espírito contorcia-se de angústia, justaposto ao Marcelo-forma, encarcerado na inconsciência orgânica, presa de convulsões que me confrangiam a alma.

Após detido exame, indaguei de Calderaro:

— Como explicar essa ocorrência? Afinal de contas, nosso amigo não se encontra aqui sob o guante dos perseguidores desencarnados, mas em nossa exclusiva companhia.

O orientador, agora em ação de socorro magnético, interferia, restaurando o equilíbrio, recomendando-me aguardar alguns minutos. Em breve, dominou a desarmonia. Envolvendo-lhe o campo mental em emissões fluídico-balsâmicas, o desastre não chegou a termo. Marcelo aquietou-se. Refez-se a atividade cerebral, qual praça em tumulto logo descongestionada. As células nervosas retomaram sua tarefa, normalizaram-se as vias do tráfego, o sistema endocrínico regressou à regularidade, as redes de estímulos restabeleceram os serviços costumeiros.

Marcelo, desapontado e abatido, caiu em profundo sono, pois Calderaro entendeu conveniente proporcionar-lhe maior repouso, não lhe permitindo a retirada em corpo perispiritual nos primeiros minutos de paz que se sucederam à forte crise.

Observando o rapaz, no conchego do leito, o instrutor fitou-me, benévolo, e perguntou:

— Lembras-te dos reflexos condicionados de ?

Como não? recordava-me, sim, da famosa experiência com cães, aplicada a fenômenos outros.

— Pois bem, — prosseguiu Calderaro, bondoso, — o caso de Marcelo verifica-se em consonância com os mesmos princípios. Em existências passadas, errou em múltiplos modos, e o remorso, imperiosa força a serviço da Divina Lei, guardou-lhe a consciência, qual sentinela vigilante, entregando-o aos seus inimigos nos Planos inferiores e conduzindo-o à colheita de espinhos que semeara, logo após a perda do vaso físico, num dos seus períodos mais intensos de queda espiritual. Em consequência de tais desvios, perambulou desequilibrado, de alma doente, exposto à dominação das antigas vítimas. Desarranjou os centros perispirituais, enfermando-os para muito tempo. Sustentado pelo socorro de um grande instrutor que intercedeu por ele, renasceu mais calmo, agora, para importante serviço de resgate. Todavia, a cooperação valiosa recebida do exterior não poderia transformar-lhe de modo visceral a situação íntima. Conservava-se desafogado dos impiedosos adversários, aos quais deveria ajudar doravante; contudo, o organismo perispirítico arquivava a lembrança fiel dos atritos experimentados fora do veículo denso. As zonas motoras de Marcelo, em razão disso, — salientou o atencioso orientador, — simbolizando a moradia das “forças conscientes”, em sua atualidade de trabalho, constituem uma “região perispiritual em convalescença”, quais as sensíveis cicatrizes do corpo físico. Ao se reaproximar de velhos desafetos, o rapaz, que ainda não consolidou o equilíbrio integral, sujeita-se aos violentos choques psíquicos, com o que as emoções se lhe desvairam, afastando-se da necessária harmonia. A mente desorientada abandona o leme da organização perispirítica e dos elementos fisiológicos, assume condições excêntricas, dispersa as energias, que lhe são peculiares, em movimentos desordenados; passam, então, essas energias a atritarem-se e a emitir radiações de baixa frequência, aproximadamente igual à da que lhe incidia do pensamento alucinado de suas vítimas. Essas emissões destruidoras invadem a matéria delicada do córtex encefálico, assenhoreiam-se dos centros corticais, perturbam as sedes da memória, da fala, da audição, da sensibilidade, da visão, e inúmeras outras sedes do governo de vários estímulos; temos, destarte, o “grande mal”, de sintomatologia aparatosa, determinando as convulsões, nas quais o corpo físico, prostrado, vencido, mais se assemelha a embarcação repentinamente à matroca.


As elucidações de Calderaro enchiam-me de respeito pelos fundamentos morais da vida. Compreendia agora a impossibilidade de uma psiquiatria sem as noções do Espírito. Lembrou-me a luta secular entre fisiologistas e psicologistas, disputando a norma de socorro aos alienados mentais. e Charcot, () e desfilaram ante minha imaginação, enriquecida de novos conhecimentos.

A interrupção das digressões do Assistente não durou muito. Devo, na verdade, consignar que, desde a primeira hora de nossas conversações, tais intermitências se fizeram habituais, parecendo-me que Calderaro intencionalmente me proporcionava tréguas para ruminar-lhe os conceitos.

Respondendo-me às íntimas ponderações, continuou:

— Impossível é pretender a cura dos loucos à força de processos exclusivamente objetivos. É indispensável penetrar a alma, devassar o cerne da personalidade, melhorar os efeitos socorrendo as causas; por conseguinte, não restauraremos corpos doentes sem os recursos do Médico Divino das almas, que é Jesus-Cristo. Os fisiologistas farão sempre muito, tentando retificar a disfunção das células; no entanto, é mister intervir nas origens das perturbações. O caso de Marcelo é tão somente um dos múltiplos aspectos do “fenômeno epileptóide”, para empregarmos a terminologia dos médicos encarnados. Esse desequilíbrio perispiritual assinala-se, todavia, por gradação demasiado complexa. A confirmação da teoria dos reflexos condicionados não se aplica exclusivamente a ele. Temos milhões de pessoas irascíveis que, pelo hábito de se encolerizarem facilmente, viciam os centros nervosos fundamentais pelos excessos da mente sem disciplina, convertendo-se em portadores do “pequeno mal”, em dementes precoces, em neurastênicos de tipos diversos ou em doentes de franjas epilépticas, que andam por aí, submetidos à hipoglicemia insulínica ou ao metrazol; enquanto isso, o serem educados mentalmente, para a correção das próprias atitudes internas no ramerrão da vida, lhes seria tratamento mais eficiente e adequado, pois regenerativo e substancial. Enunciando tais verdades, não subestimamos o ministério dos psiquiatras abnegados, que consomem a existência na dedicação aos semelhantes, nem avançamos que todos os doentes, sem exceção, possam dispensar o concurso dos choques renovadores, tão necessários a muita gente, como ducha para os “nervos empoeirados”. Desejamos apenas salientar que o homem, pela sua conduta, pode vigorar a própria alma, ou lesá-la. O caráter altruísta, que aprendeu a sacrificar-se para o bem de todos, estará engrandecendo os celeiros de si mesmo, em plena eternidade; o homicida, esparzindo a morte e a sombra em sua cercania, estabelece o império do sofrimento e da treva no próprio íntimo. Ao topar com irmãos nossos sob o domínio das lesões perispiríticas, consequências vivas dos seus atos, exarados pela Justiça Universal, é indispensável, para assisti-los com êxito, remontar à origem das perturbações que os molestam; isto se fará não a golpes verbalísticos de psicanálise, mas socorrendo-os com a força da fraternidade e do amor, a fim de que logrem a imprescindível compreensão com que se modifiquem, reajustando as próprias forças…

Nesse instante, observando que o Marcelo se reerguia, o instrutor interrompeu-se nas elucidações e convidou-o a vir ter conosco novamente.

O rapaz abraçou-nos, comovido.

— Então, — disse fitando humildemente Calderaro, — fraquejei e caí…

— Oh! Não! — exclamou o orientador, afagando-o, — não te sintas em queda. Estás ainda em tratamento, e não podemos esquecer a realidade. Teu esforço é admirável; entretanto, há que aguardar a contribuição do tempo.

Sorriu e acentuou:

— Em épocas recuadas perdeste valioso ensejo de seguir na senda progressiva, a escorregar, a resvalar… Agora, é imprescindível retomar a subida cautelosamente. O pássaro de asas débeis não pode abusar do voo.

O jovem cobrou esperanças novas e, contemplando Calderaro, reconhecidamente, inquiriu:

— Acredita o meu benfeitor que deva optar pelo uso de hipnóticos?

— Não. Os hipnóticos são úteis só na áspera fase de absoluta ignorância mental, quando é preciso neutralizar as células nervosas ante os prováveis atritos da organização perispirítica. Em teu caso, Marcelo, para a tua consciência que já acordou na espiritualidade superior, o remédio mais eficaz consiste na fé positiva, na autoconfiança, no trabalho digno, em pensamentos enobrecedores. Permanecendo na zona mais alta da personalidade, vencerás os desequilíbrios dos departamentos mais baixos, competindo-te, por isto mesmo, atacar a missão renovadora e sublime que te foi confiada no setor da própria iluminação e no bem do próximo. Os elementos medicamentosos podem exercer tutela despótica sobre o cosmo orgânico, sempre que a mente não se disponha a controlá-la, recorrendo aos fatores educativos.

O rapaz osculou-lhe as mãos enternecidamente, e Calderaro, ocultando a comoção, falou, bem-humorado:

— Nada fizemos ainda por merecer o reconhecimento de qualquer criatura. Somos não mais do que trabalhadores imperfeitos em serviço, e o serviço é a maior força que nos põe de manifesto nossas próprias imperfeições. Todos temos um credor divino em Jesus, cuja infinita bondade não nos é lícito esquecer.

E, acariciando-lhe os cabelos, acentuou:

— Já lhe ouviste a palavra celestial, abandonando o mal, “para que te não suceda coisa pior”. (Jo 5:14) Assim sendo, és agora feliz. Em verdade, somos presentemente felizes, porque nosso objetivo de hoje é a realização do Reino de Deus, em nós, com o Cristo. Trabalhemos com Ele, por Ele e para Ele, curando nossos males para sempre.

O jovem abraçou-se a nós, qual se fora um filho, de encontro aos nossos corações, e saímos juntos em agradável excursão de estudos, enquanto seu corpo físico repousava tranquilamente.




Referência ao livro “Nosso Lar”. — Nota do autor espiritual.