Tornando a Esteves, Clarêncio ofereceu-lhe o braço amigo, mas o moço prorrompeu em súplica:
— Não me prendam! Não me prendam! Sou a vítima!…
O Ministro absteve-se de continuar em sua afetiva manifestação.
No passo vagaroso de quem carrega um fardo de aflição, o inimigo de Leonardo retirou-se para a via pública, regressando ao aconchego doméstico.
Seguimo-lo a pequena distância.
Renovava-se o dia.
Pedestres marchavam diligentes, na direção do trabalho.
Bondes rangiam, sonolentos, e os autos, aqui e ali, começavam a transitar pelas ruas.
Em breve tempo, o rapaz, seguido de nosso grupo, estacionou à frente de vasto conjunto residencial.
Grande relógio próximo exibia o mostrador.
Cinco horas e trinta minutos.
Embatucado, o moço voltou-se para nós, e, em seguida, desapareceu no interior.
Entramos.
Em momentos rápidos, achávamo-nos diante dele, que se esforçava por reaver o corpo físico. O Ministro, sem molestá-lo, amparou-o afetuosamente, e Esteves, pouco a pouco, recuperou a calma natural.
Mantinha-se em suave modorra, quando o despertador tilintou, faltando quinze minutos para seis.
O rapaz esfregou os olhos, de carantonha amarrada, guardando a impressão de mau sonho. Vestindo-se, apressado, notamos que minúsculo cartão de visita lhe caiu do bolso, ensejando-nos a leitura de um nome: — “Mário Silva, Enfermeiro”.
E o nosso instrutor reafirmou:
— Nosso amigo, ontem Esteves, hoje é Mário Silva, prosseguindo em sua vocação para a enfermagem. Ouçamo-lo por alguns momentos.
O moço atendeu às obrigações da higiene e, logo após, foi recebido em pequena sala do apartamento por simpática velhinha, em cujo olhar adivinhamos a ternura de mãe.
Depois de saudação carinhosa, a senhora indagou bem humorada:
— Onde esteve esta noite, meu filho? Seu semblante carregado não me engana.
— Um sonho horrível, mamãe.
E fixando gestos expressivos, entre os goles do café notificou:
— Sonhei que alguém me chamava, a distância, em voz alta, e, acreditando tratar-se de algum doente em estado grave, não vacilei. Corri ao apelo, mas, ao invés de topar um quarto de enfermo, vi-me, de imediato, numa cela mal iluminada e úmida…
E, com os recursos de imaginação de que dispunha para corresponder às requisições da mente, o rapaz continuou:
— Era um perfeito cubículo de prisão, onde me surpreendi encarcerado, de repente, junto de um criminoso de mau aspecto e de infortunada mulher em pranto… Senti tanta simpatia pela moça desventurada, quanta aversão pelo réu de medonha catadura. Tive, porém, a impressão nítida de que nos conhecíamos. Um misto de ódio e sofrimento me tomou de assalto, junto deles, principalmente ao lado do infeliz, cujo olhar se me afigurava cruel… Perguntava, a mim mesmo, porque me não retirava de tão detestável presença, mas, enquanto o homem me repelia, a mulher me provocava o maior enternecimento… Por mais estranho que pareça, experimentava o desejo de agredi-lo e de acariciá-la, ao mesmo tempo. Achava-me em expectativa, quando o criminoso avançou para mim, com o propósito evidente de liquidar-me, ao passo que a pobrezinha procurava defender-me. Estava atônito, ignorando se o condenado pretendia assassinar-me, ali mesmo, quando tentei uma reação à altura! Cego de incompreensível rancor, ia precipitar-me sobre ele, quando, rápido, apareceu um delegado policial, seguido de dois guardas, que entraram na contenda, impedindo-nos o mau impulso. O chefe, segundo percebi, de um só golpe conteve o meu agressor, obrigando-o a sentar-se, vencido, conquistando-me um respeito tão grande que, realmente, apesar do desejo de ouvir a mulher ajoelhada, em soluços, não arredei pé do lugar em que me apoiava. Depois de palavras enérgicas e rápidas, o delegado trouxe, então, à cela outros ajudantes que arrastaram meu adversário para fora… Logo após, acomodando-me numa velha cadeira, reconduziu a jovem para o interior do cárcere…
Estampou na fisionomia a expressão de quem se propunha inutilmente lembrar-se e, decorridos longos instantes de reticência, rematou:
— Depois… depois, não consigo precisar as recordações… Sei apenas que me pus a correr, em fuga para nossa casa, de vez que os policiais se mostravam igualmente dispostos a recolher-me. Temendo o xadrez, acordei estremunhado e abatido…
A velhinha, que escutava, atenciosa, comentou, calma:
— Há sonhos que valem por terríveis pesadelos…
— É o que senti, — concordou Mário, preocupado.
A mãezinha contemplou-o, bondosa, e acrescentou:
— Meu filho, o sonho terá alguma relação com a nossa Zulmira? A mulher com quem simpatizou não seria, acaso, nossa velha amiga, e o homem que lhe inspirou tanta repugnância não poderia ser interpretado como sendo o esposo dela?
O rapaz cobriu-se de leve palidez, mostrou-se mais taciturno e falou, triste:
— Quem sabe?
— Você nunca mais teve notícia de nossa antiga companheira?
— Não. Tenho apenas a informação de que mora aqui mesmo, onde o marido é .
— Nunca pude entender-lhe a atitude. Tantos anos de convivência, tantos projetos de felicidade!… Trocar tudo, assim, por um viúvo, acompanhado de dois filhos!…
O moço fixou um gesto de amargura e observou:
— Ora, mamãe, evitemos recordações sem proveito. Zulmira não deve reaparecer em minha memória e esse Amaro que ela desposou é um ponto negro em meu coração. Creio que o melhor sentimento para eles dois em minha vida íntima é o ódio com que os reúno em minha lembrança. Não desejo revê-los e, francamente, se eu soubesse que residiam aqui, em nossa vizinhança, decidiria nossa transferência para outro rumo…
E, transcorridos alguns instantes, ajuntou:
— Meu sonho foi um simples pesadelo. Alguma preocupação imprecisa ou alguma intoxicação alimentar…
A senhora sorriu, desapontada, e aduziu:
— Cá por mim, estou certa de que à noite reencontramos as pessoas que amamos ou detestamos. Nosso Espírito, no sono, procura os afetos ou os desafetos do caminho para acertar as próprias contas. Disso, não tenho qualquer dúvida.
O filho, indiscutivelmente enfadado, reergueu-se, abraçou a genitora, osculou-lhe a cabeça branca e concluiu:
— O relógio é inflexível. O sonho passou e agora é a realidade que me espera. Devo cooperar no serviço operatório de duas crianças, às oito em ponto. Não me posso demorar. O hospital não cogita de pesadelos.
Mostrou um sorriso forçado e despediu-se.
A mãezinha acompanhou-o carinhosamente até à porta, retomando os serviços caseiros, pensativa…
Preparando-nos para a retirada, trazia o meu cérebro castigado por obsidiantes interrogações. Encontráramos um novo capítulo na história da ?
Amaro e Zulmira, mencionados pelo enfermeiro, seriam as mesmas personagens que havíamos visitado anteriormente?
Dispunha-me à inquirição, quando o olhar de Clarêncio cruzou com o meu. Registrando-me a estranheza, informou:
— Já sei o teor de tuas interrogações. Realmente, o nosso novo amigo foi noivo de Zulmira, a senhora obsidiada que conhecemos. Pretendia desposá-la, mas foi preterido no coração dela por Amaro, que lhe deve assistência e carinho. O passado fala no presente. Acham-se enredados numa teia de compromissos que lhes reclamam resgate.
— E reencontrar-se-ão para o desdobramento das lutas redentoras em que se envolvem? — perguntou Hilário, admirado.
— Inevitavelmente, — acentuou o instrutor com voz segura.
A dona da casa, mãe devotada e sensível, meditando no sonho do filho, embora movimentando automaticamente a vassoura, orava por ele, rogando a Jesus o abençoasse.
Anotávamos-lhe as reflexões na mente preocupada. Sabia quanto custara ao moço renunciar à mulher escolhida. Conhecia-lhe o temperamento enigmático e receava tornar a vê-lo atormentado e vencido…
O pensamento em prece escapava-lhe da cabeça, como tênue esguicho de luz.
Clarêncio abeirou-se dela e transmitiu-lhe forças calmantes, que lhe sossegaram o coração.
Em seguida, o orientador no-la apresentou, generoso:
— Nossa irmã Minervina é velha conhecida. Recebeu nos braços meia dúzia de filhos que tem sabido conduzir, admiravelmente. Coração abnegado, alma rica de fé.
Abraçamo-la, carinhosamente, às despedidas.
De regresso, reparando que estávamos desejosos de seguir Mário Silva para obter maiores informes, no desenvolvimento de nossa história que começava a ser fascinante, o Ministro recomendou:
— Não convém incomodar nossos amigos no curso das obrigações diuturnas, provocando elucidações que seriam desagradáveis e fora de ocasião. Aguardemos a noite, porque enquanto o corpo físico se refaz a alma invariavelmente procura o lugar ou o objeto a que imanta o coração.
Ouvimos o orientador e aquietamo-nos.
Cabia-nos aguardar a noite, quando se estenderiam as nossas experiências.