Entre a Terra e o Céu

Capítulo XXII

Irmã Clara



Na noite imediata às experiências que descrevemos, o Ministro convidou-nos a visitar a Irmã Clara, a quem pediria socorro em favor do esclarecimento de Odila.

Eu me sentia cada vez mais atraído para o romance vivo daquele grupo de almas que o destino enleara em suas teias.

Se me fosse permitido, voltaria de imediato para junto de Mário Silva rebelado, ou para junto de Amaro paciente, a fim de observar o desdobramento da história, cujos capítulos jaziam gravados nas páginas vivas de seus corações.

Todavia, era necessário esperar.

Enquanto buscávamos a intimidade de Clara, descia o luar em prateados jorros sobre a paisagem que se tapizava de flores.

Com o cérebro preso às preocupações resultantes do trabalho que nos exigia a atenção, algo indaguei de Clarêncio quanto à cooperação que pretendíamos solicitar.

Por que motivo rogaria ele o concurso de outrem, quando se dirigira com tanto êxito à mente de Esteves e Armando, reencarnados? Não lhes favorecera o retrocesso da memória, até os recuados dias da luta no Paraguai? Porque não conseguiria doutrinar também a desditosa irmã enferma?

O Ministro ouviu-me, tolerante, e redarguiu:

— Iludes-te. Nem sempre doutrinar será transformar. Efetivamente, guardo alguma força magnética suficientemente desenvolvida, capaz de operar sobre a mente de nossos companheiros em recuperação; no entanto, ainda não disponho de sentimento sublimado, suscetível de garantir a renovação da alma. Sem dúvida, dentro de minhas limitações, estou habilitado a falar à inteligência, mas não me sinto à altura de redimir corações. Para esse fim, para decifrar os complicados labirintos do sofrimento moral, é imprescindível haver atingido mais elevados degraus na humana compreensão.


Dispunha-me a desfechar novo interrogatório, contudo, nosso orientador indicou-nos bela edificação próxima.

Cercada de arvoredo, que servia de enfeite a espaçosos canteiros de flores, a residência de Clara figurou-se-nos pequeno colégio ou gracioso internato para moças.

Até certo ponto, não nos enganáramos.

A nossa anfitriã não morava num estabelecimento de ensino, entretanto, mantinha em casa um verdadeiro educandário, tão grandes e luzidas eram as assembleias instrutivas que sabia organizar.

Recebeu-nos em extenso salão, onde era atenciosamente ouvida por quatro dezenas de alunos de variadas condições, que se instalavam à vontade, em grupos diversos, sem qualquer ideia de escola assinalando o ambiente em sua feição exterior.

De olhos rasgados e lúcidos a lhe marcarem magnificamente o semblante com os traços aristocráticos do rosto emoldurados pela basta cabeleira, Clara parecia uma jovem madona, detida entre os melhores dons da mocidade e da madureza. Estendeu-nos as mãos pequenas e finas, respondendo-nos às saudações com alegria sincera.

Nosso orientador rogou excusas, pela nossa interferência no trabalho.


— Não se incomodem, — acentuou a interlocutora, encantadoramente natural, — achamo-nos num curso rápido, acerca da importância da voz a serviço da palavra. Podem partilhá-lo conosco. Nossa aula é uma simples conversação…

Fitando bondosamente o Ministro, rematou:

— Sentem-se. Sou eu quem pede perdão por faze-los esperar mais um pouco. Em breves instantes, todavia, entraremos em nosso entendimento mais íntimo.

E, voltando à poltrona que nada tinha de cátedra, sem qualquer atitude professoral, tão grande era o doce ambiente de maternidade que sabia irradiar de si, começou a dizer para os aprendizes:

— Conforme estudamos na noite de hoje, a palavra, qualquer que ela seja, surge invariavelmente dotada de energias elétricas específicas, libertando raios de natureza dinâmica. A mente, como não ignoramos, é o incessante gerador de força, através dos fios positivos e negativos do sentimento e do pensamento, produzindo o verbo que é sempre uma descarga eletromagnética, regulada pela voz. Por isso mesmo, em todos os nossos campos de atividade, a voz nos tonaliza a exteriorização, reclamando apuro de vida interior, de vez que a palavra, depois do impulso mental, vive na base da criação; é por ela que os homens se aproximam e se ajustam para o serviço que lhes compete e, pela voz, o trabalho pode ser favorecido ou retardado, no espaço e no tempo.


Dentro da pausa ligeira que se fizera espontânea, simpática senhora interrogou:

— Mas, para que tenhamos a solução do problema, é indispensável jamais nos encolerizarmos?

— Sim; — elucidou a instrutora, calma, — indiscutivelmente, a cólera não aproveita a ninguém, não passa de perigoso curto-circuito de nossas forças mentais, por defeito na instalação de nosso mundo emotivo, arremessando raios destruidores, ao redor de nossos passos…

Sorrindo bem humorada, acrescentou:

— Em tais ocasiões, se não encontramos, junto de nós, alguém com o material isolante da oração ou da paciência, o súbito desequilíbrio de nossas energias estabelece os mais altos prejuízos à nossa vida, porque os pensamentos desvairados, em se interiorizando, provocam a temporária cegueira de nossa mente, arrojando-a em sensações de remoto pretérito, nas quais como que descemos quase sem perceber a infelizes experiências da animalidade inferior. A cólera, segundo reconhecemos, não pode e nem deve comparecer em nossas observações, relativas à voz. A criatura enfurecida é um dínamo em descontrole, cujo contato pode gerar as mais estranhas perturbações.


Um moço, com evidente interesse nas lições, argumentou:

— E se substituíssemos o termo “cólera” pelo termo “indignação”?

Irmã Clara pensou alguns instantes e redarguiu:

— Efetivamente, não poderíamos completar os nossos apontamentos, sem analisar a indignação como estado dalma, por vezes necessário. Naturalmente é imprescindível fugir aos excessos. Contrariar-se alguém a propósito de bagatelas e a todos os instantes do dia será baratear os dons da vida, desperdiçando-os, de modo inconsequente, sem o mínimo proveito para si mesmo ou para os outros. Imaginemos a indignação por subida de tensão na usina de nossos recursos orgânicos, criando efeitos especiais à eficiência de nossas tarefas. Nos casos de exceção, em que semelhante diferença de potencial ocorre em nossa vida íntima, não podemos esquecer o controle da inflexão vocal. Assim como a administração da energia elétrica reclama atenção para a voltagem, precisamos vigiar a nossa indignação principalmente quando seja imperioso vertê-la através da palavra, carregando a nossa voz tão somente com a força suscetível de ser aproveitada por aqueles a quem endereçamos a carga de nossos sentimentos. É indispensável modular a expressão da frase, como se gradua a emissão elétrica…

E, ante a assembleia que lhe registrava os ensinamentos com justificável respeito, prosseguiu, depois de ligeiro intervalo:

— Nossa vida pode ser comparada a grande curso educativo, em cujas classes inumeráveis damos e recebemos, ajudamos e somos ajudados. A serenidade, em todas as circunstâncias, será sempre a nossa melhor conselheira, mas, em alguns aspectos de nossa luta, a indignação é necessária para marcar a nossa repulsa contra os atos deliberados de rebelião ante as Leis do Senhor. Essa elevada tensão de espírito, porém, nunca deve arrojar-se à violência e jamais deve perder a dignidade de que fomos investidos, recebendo da Divina Confiança a graça do conhecimento superior. Basta, dentro dela, a nossa abstenção dos atos que intimamente reprovamos, porque a nossa atitude é uma corrente de indução magnética. Em torno de nós, quem simpatiza conosco geralmente faz aquilo que nos vê fazer. Nosso exemplo, em razão disso, é um fulcro de atração. Precisamos, assim, de muita cautela com a palavra, nos momentos de tensão alta do nosso mundo emotivo, a fim de que a nossa voz não se desmande em gritos selvagens ou em considerações cruéis que não passam de choques mortíferos que infligimos aos outros, semeando espinheiros de antipatia e revolta que nos prejudicarão a própria tarefa.


Um amigo que acompanhava os ensinamentos, com interesse invulgar, perguntou, respeitoso:

— Irmã Clara, como devemos interpretar as perturbações da voz, como, por exemplo, a gaguez e a diplofonia?

— Sem dúvida, — informou a instrutora, solícita, — os órgãos vocais experimentam igualmente lutas e provações quando reclamam reajuste. Por intermédio da voz, praticamos vários delitos de tirania mental e, através dela, nos cabe reparar os débitos contraídos. As enfermidades dessa ordem compelem-nos ao trabalho de recuperação no silêncio, de vez que, sofrendo a alheia observação, aprendemos pouco a pouco a governar os próprios impulsos, afeiçoando-os ao bem.

A orientadora, que falava com absoluta simplicidade e à maneira de um anjo maternal dirigindo-se aos filhinhos, comentou, ainda por alguns minutos, o tema singular com surpreendente primor de definição.

Depois, finda a aula, permaneceram no belo domicílio tão somente algumas jovens que encontravam em nossa anfitriã desvelada benfeitora.


Clara convidou-nos a pequena peça contígua e o Ministro deu-lhe a conhecer o objetivo de nossa visitação. Alguém na Terra precisava ouvi-la, a fim de modificar-se.

A interlocutora perguntou, com carinho, quanto às particularidades do serviço que pretendíamos realizar.

Clarêncio resumiu o drama que nos empolgava a atenção.

Quando se inteirou de que amargurada mulher devia renunciar ao companheiro que permanecia na Terra, vimos imensa compaixão se lhe estampar no rosto. Seus olhos enevoaram-se de lágrimas que não chegaram a cair…

Compreendi que a nobre instrutora, aureolada de soberanos valores morais, trazia consigo profundas mágoas imanifestas. Certamente, buscávamos reconforto para um coração infeliz num coração que talvez estivesse padecendo ainda mais…

— Pobre criatura! — Disse a orientadora, comovida.

E, afirmando-se com tempo bastante para ausentar-se, acolheu-nos o apelo e dispôs-se a seguir-nos generosamente.