Entre a Terra e o Céu

Capítulo XXXI

Nova luta



O pequeno Júlio desenvolvia-se como flor de esperança no jardim do lar, todavia, sempre mirrado, enfermiço.

Desvelavam-se os pais por assisti-lo convenientemente, contudo, por mais adequados se categorizassem os tratamentos recalcificantes, trazia doloroso estigma na garganta.

Extensa ferida na glote dificultava-lhe a nutrição.

Farinhas suculentas concorriam com o leite materno para robustecê-lo, mas em vão.

Entretanto, apesar dos cuidados que exigia, era uma bênção de felicidade para os genitores e para a irmãzinha, que sentiam em seu rostinho tenro um ponto vivo de entrelaçamento espiritual.

Muitas vezes, conchegamo-lo ao coração, rememorando os trabalhos que lhe haviam precedido o regresso ao mundo, assinalando a ternura otimista com que Odila, transformada em generosa protetora da família, lhe acompanhava o desabrochar.

O pequerrucho já começava a falar por monossílabos, em vésperas do primeiro ano de renascimento, quando nova luta surgiu.

O inverno chegara rigoroso e vasto surto de gripe espalhara-se ameaçador.

A tosse e a influenza compareciam pertinazes, em todos os recantos, quando, num dia de grande trabalho para nós, eis que a genitora de Evelina veio, novamente, ao nosso encontro.

Dantes, procurava assistência para Zulmira, agora demandava auxílio para Júlio.

O menino, assaltado por teimosa amidalite, jazia prostrado, febril.

Dirigimo-nos incontinenti para o lar do ferroviário.

Com efeito, o vento soprava, úmido, sobre o largo espelho da Guanabara. As ruas, pela vestimenta pesada dos transeuntes, davam ao Rio o aspecto de uma cidade fria.

Alcançamos, sem detença, o domicílio de Amaro.

O quadro, à nossa vista, era indubitavelmente constrangedor.

Penetramos o aposento em que a criança gemia semi-asfixiada, no instante preciso em que o médico da família efetuava meticuloso exame.

Clarêncio passou a reparar-lhe todos os movimentos.

A garganta minúscula apresentava extensa placa branquicenta e a respiração se fazia angustiada, sibilante.

O instrutor meneou a cabeça, como se fora defrontado por insolúvel enigma, e colocou a destra na fronte do facultativo, compelindo-o a refletir com a maior atenção.

Zulmira e Evelina, sem perceber-nos a presença, fitavam o médico, preocupadas.

Após longo silêncio, o clínico voltou-se para a dona da casa, afirmando:

— Creio devamos procurar um colega imediatamente. Enquanto a senhora telefona para o marido, chamando-o da oficina, trarei comigo um pediatra.

A torturada mãezinha conteve a custo as lágrimas que lhe borbulhavam dos olhos.

O médico tornou, cismarento, à via pública, e, enquanto Evelina, rápida, corria até o armazém próximo para dar ciência ao genitor de quanto ocorria, Zulmira, presumindo-se a sós, abraçou-se ao doentinho e, chorando livremente, ciciou:

— Ó meu Deus, com tanto amor recebi o filho que me enviaste!… Não me deixes agora sem ele, Senhor!…

O pranto que lhe corria na face queimava-me o coração.

Nada pude indagar, em vista da emotividade que me tomara o espírito, mas o nosso orientador, sereno como sempre, exclamou, compadecido:

— A difteria está perfeitamente caracterizada. A deficiência congenial da glote favoreceu a implantação dos bacilos. É imprescindível o socorro urgente.

O instrutor começou a mobilizar recursos assistenciais de maior expressão, quando o ferroviário, desolado, ingressou no aposento.

Conversando com a mulher, tentava reanimá-la, quando o pediatra, conduzido pelo colega, deu entrada na humilde residência.

Ambos os médicos submeteram o petiz a prolongado exame, permutando impressões em voz baixa.

O especialista, apreensivo, após manifestar a suspeita de crupe, reclamou a análise de laboratório, decidindo transportar consigo mesmo o material necessário à inspeção.

Ao sair, prometeu opinar, dentro de algumas horas. Notificou ao pai agoniado que tudo lhe fazia crer tratar-se de garrotilho. Entretanto, reservava o diagnóstico definitivo para depois. Se a hipótese se confirmasse, enviaria um enfermeiro de confiança para a aplicação do soro adequado.


Mantendo vigilância junto ao doentinho, o Ministro recomendou-nos, a Hilário e a mim, acompanhar o pediatra, de modo a prestar-lhe a colaboração possível ao nosso alcance.

Seguimo-lo sem hesitar.

O crepúsculo, encharcado de uma garoa fina, caía rápido.

Em minutos breves, atravessávamos o pórtico de vasto hospital, onde o nosso amigo procurou a sala em que certamente se recolhia para os trabalhos que lhe diziam respeito.

Chegados a estreito recinto, fomos defrontados por uma surpresa que nos impunha verdadeira estupefação.

Mário Silva, em seu traje branco, palestrava com dona Antonina que acomodava ao colo a pequena Lisbela, pálida e ofegante.

A jovem senhora, que não mais víramos, aguardava o especialista, trazendo a filhinha à consulta. Amparadas por Silva, francamente atraído para a simpática visitante, ambas tiveram acesso a gabinete particular, onde o facultativo diagnosticou uma pneumonia.

Antonina foi aconselhada a voltar, de imediato, ao ambiente doméstico, para a medicação da filha.

A penicilina devia ser administrada sem qualquer dilação.

Mário, demonstrando imenso carinho pela criança, prontificou-se a assisti-la.

Traria um automóvel e atenderia ao caso pessoalmente.

O chefe passeou o olhar pelo mostrador do relógio e aquiesceu, ressalvando:

— Bem, você pode cooperar com as nossas clientes, mas preciso de seu concurso em bairro distante, às vinte e duas horas.

O rapaz assumiu o compromisso de regressar a tempo e um táxi recolheu o trio, rolando na direção da casinha que visitáramos, certa vez.

Ante o inesperado daquele encontro, sentimos necessidade de um entendimento seguro com o nosso orientador.

Tornando ao quarto, onde o pequeno Júlio piorava sempre, fizemos breve relato do acontecido. Clarêncio escutou com interesse e ponderou, preocupado:

— Não podemos perder tempo. Dirijamo-nos à casa de Antonina. A lei está reaproximando os nossos amigos uns dos outros e Mário precisa fortalecer-se para exercitar o perdão. Os raios de ódio da parte dele podem apressar aqui o serviço inevitável da morte.


Corremos ao domicílio da valorosa mulher.

Com efeito, depois de haver iniciado o tratamento providencial da menina, agora acamada, Silva fixava a dona da casa, perguntando a si mesmo onde vira aquele torturado perfil de madona… Guardava a nítida impressão de haver conhecido Antonina em algum lugar…

Agradavelmente surpreendido, sentia-se ali como se fora em sua própria casa.

E a simpatia não se patenteava tão somente no coração dele. A senhora e os filhos cercavam-no de atenções.

Intimamente deslumbrado, o enfermeiro declarava de viva voz estar experimentando uma paz que há muito não conhecia, com o que Antonina se regozijava, sorrindo.

Percebendo que Haroldo e Henrique se mostravam apaixonados pelas disputas esportivas, deu curso a animada conversação em torno do futebol, conquistando-lhes o carinho.

A mãezinha, preparando o café, ingressava no alegre entendimento, de quando em quando, a fim de podar o entusiasmo dos meninos, quando a palavra deles se evidenciava menos construtiva.

Somente no decurso da afetuosa palestra, viemos a saber que nossa amiga se enviuvara. O esposo, segundo notícias recebidas de metrópole distante, havia falecido num desastre, vitimado pela própria imprudência.

Lemos no olhar de Silva o contentamento com que obtinha semelhante informe.

Começava a registrar insopitável interesse pela vida naquele ninho agasalhante que se lhe afigurava pertencer-lhe.

Às oito em ponto, Antonina, sem afetação, convidou com simplicidade:

— Sr. Mário, hoje temos nosso culto evangélico. Quer ter a bondade de partilhá-lo?

Incompreensivelmente feliz, o rapaz concordou, de pronto.

A reunião, nessa noite, foi efetuada ao redor do leito de Lisbela, que não desejava perder o benefício das orações.

Um copo de água pura foi colocado junto à cabeceira da pequenina.

E, de Novo Testamento em punho, acomodados os companheiros, Antonina recomendou a Henrique fizesse a rogativa inicial.

O menino recitou o “Pai Nosso” e, em seguida, pediu a Jesus a saúde da irmãzinha doente, com enternecedora súplica.

Vimos o nosso orientador acercar-se do recipiente de água cristalina, magnetizando-a, em favor da enferma que parecia expressivamente confortada, ante a oração ouvida, e, logo após, abeirar-se de Silva, que lhe recebeu as irradiações.

— Quem abrirá hoje o Livro? — Perguntou Haroldo, com graciosa malícia, fitando o hóspede inesperado.

— Certamente nosso amigo nos fará essa honra, — disse a genitora, indicando o enfermeiro.

Mário, ignorando como expressar a felicidade que lhe fluía do coração, acolheu o pequeno volume, sob a atenção de Clarêncio, que lhe tocava o busto e as mãos, influenciando-o para a descoberta do texto adequado.

O moço, algo trêmulo na participação de um serviço espiritual inteiramente novo para ele, sem perceber o amparo que o envolvia, abriu em determinada passagem, qual se agisse a esmo, passando o livro a Antonina, que leu em voz pausada o versículo vinte e cinco do capítulo cinco das anotações do Apóstolo Mateus: — “Concilia-te depressa com o teu adversário, enquanto te encontras a caminho com ele, para que não aconteça que o adversário te entregue ao juiz e o juiz te entregue ao oficial para que sejas encerrado na prisão.” (Mt 5:25)

A dirigente do culto, que, naquela noite, se revelava mais retraída, pediu a interpretação dos meninos que, de modo ingênuo, se reportaram às experiências da escola, afirmando que sempre adquiriam a paz, buscando desculpar as faltas dos companheiros. Haroldo asseverava que a professora sempre sorria contente, quando lhe via a boa vontade e Henrique salientou haver aprendido no culto do lar que era muito mais agradável o esforço de viver em harmonia com todos.

A palestra parecia ameaçada de esmorecimento, mas o nosso orientador aproximou-se de Antonina e, impondo-lhe a destra sobre a fronte, como que a impelia ao comentário justo.

— Haroldo, — indagou a genitora, de olhos brilhantes, — como devemos interpretar um inimigo em nossa vida?

O menino replicou, sem pestanejar:

— Mãezinha, a senhora nos ensinou que conservar um inimigo em nosso caminho é o mesmo que manter uma ferida perigosa em nosso corpo.

— A definição foi bem lembrada, — falou a viúva com espontaneidade encantadora; — sem a compreensão fraterna que nos garante o culto da gentileza, sem o perdão que olvida todo mal, a existência na Terra seria uma aventura intolerável. Além disso, quando Jesus nos ditou a lição que recordamos hoje, indubitavelmente considerava que a razão nunca vive inteira ao nosso lado. Se fomos ofendidos, em verdade também ofendemos por nossa vez. Precisamos desculpar os outros para que os outros nos desculpem. Quando abraçamos o ideal do bem, compete-nos tentar, por todos os meios ao nosso alcance, a justa conciliação com todos os que se encontrem conosco em desarmonia, prestando-lhes serviço para que renovem a conceituação a nosso respeito. Mais vale para nós o acordo pacífico que a demanda mais preciosa, porque a vida não termina neste mundo e é possível que, buscando a justiça em nosso favor, estejamos cristalizando a cegueira do egoísmo em nosso próprio coração, caminhando para a morte com aflitivos problemas. Coração que conserva rancor é coração doente. Alimentar ódio ou despeito é estender inomináveis padecimentos morais no próprio Espírito.

Silva estava pálido.

Aquelas conclusões feriam-lhe, fundo, o modo de ser.

Tão desajustado se revelou escutando aqueles apontamentos que Antonina, em lhe registrando a estranheza, ponderou, sorrindo:

— O senhor decerto nunca teve inimigos… Um enfermeiro diligente será, sem qualquer dúvida, o irmão de todos…

— Sim… sim, não tenho adversários… — gaguejou o moço, constrangido.

Mas, na tela mental, sem que ele pudesse controlar a eclosão das próprias reminiscências, apareceram Amaro e Zulmira, como os desafetos que ele, no âmago do espírito, não conseguia desculpar.

Odiava-os, sim, odiava-os, — pensou de si para consigo, — jamais suportaria um acordo com semelhantes adversários. Entretanto, a sinceridade da interlocutora encantava-o. Aquela viúva jovem, cercada de três filhinhos, superando talvez obstáculos dos mais inquietantes para viver, constituía um exemplo de quanto podia edificar o espírito de sacrifício. Em nenhum ambiente encontrara antes aquele calor de fé pura necessário às grandes construções de ordem moral. Além de tudo, laços de vigorosa afinidade impeliam-no para aquela mulher, com quem se simpatizara à primeira vista. Por mais vasculhasse as próprias lembranças, não conseguia recordar onde, como e quando a conhecera. Sentia, porém, que a palavra dela lhe impunha indefinível bem-estar…

Fitando-a, com enternecimento, perguntou:

— A senhora julga que devemos procurar a conciliação com qualquer espécie de inimigos?

— Sim! — Respondeu a interpelada sem hesitar.

— E quando os adversários são de tal modo inconvenientes que a simples aproximação deles nos causa angústia?

Antonina compreendeu que algo doloroso vinha à tona daquela consciência que lhe ouvira a dissertação, ocultando-se, e obtemperou:

— Entendo que há sofrimentos morais quase intoleráveis, entretanto, a oração é o remédio eficaz de nossas moléstias íntimas. Se temos a infelicidade de possuir inimigos, cuja presença nos perturba, é importante recorrer à prece, rogando a Deus nos conceda forças para que o desequilíbrio desapareça, porque, então, um caminho de reajuste surgirá para nossa alma. Todos necessitamos da alheia tolerância em determinados aspectos de nossa vida.

Os olhos de Mário cintilaram.

— E quando o ódio nos avassala, ainda mesmo quando não desejemos? — Inquiriu, preocupado.

— Não há ódio que resista aos dissolventes da compreensão e da boa vontade. Quem procura conhecer a si mesmo, desculpa facilmente…

Silva empalidecera.

Antonina percebeu que o tema lhe fustigava o coração e, amparada por nosso instrutor que a enlaçava, paternal, rematou considerando:

— Um homem, porém, na sua tarefa, é um missionário do amor fraterno. Quem socorre os doentes, penetra a natureza humana e entra na posse da grande compaixão. As mãos que curam não podem ferir…

Em seguida, o primogênito da casa fez a prece de encerramento.

A viúva serviu o café reconfortante, acompanhado de um bolo humilde.

A conversação prosseguia animada, todavia, o hóspede consultou o relógio e reparou que o tempo lhe exigia a retirada.

Deu instruções a Antonina, quanto à medicação da doentinha, e pediu, respeitoso, para voltar no dia imediato, não somente para rever Lisbela, mas também para palestrar com os amigos.

A senhora e as crianças aquiesceram, felizes, afirmando-lhe que seria sempre bem-vindo, e Mário, com um sentimento novo a lhe brilhar nos olhos, seguiu dentro da noite, como quem caminhava tangido por abençoada esperança, ao encontro de novo destino.