Entre a Terra e o Céu

Capítulo XXXII

Recapitulação



De volta ao hospital, o enfermeiro não encontrou pessoalmente o chefe, que se ausentara, constrangido por serviço urgente, mas recebeu das mãos de velha auxiliar a papeleta de instruções.

O rapaz leu a ficha, atenciosamente.

Um menino, perfeitamente caracterizado nas indicações, atacado de crupe, exigia socorro imediato.

De posse do endereço e munindo-se do material imprescindível ao tratamento, Silva rodou num ônibus para a casa de Amaro.

Acolhido cortesmente pelo dono da casa, não ocultou a perplexidade que o possuiu, de assalto.

Identificado pelo ferroviário que lhe exprimia gentileza e contentamento na saudação, tartamudeava alguns monossílabos, desapontado, espantadiço…

Revelava-se-lhe a decepção na extrema palidez do rosto.

Então, — refletia, acabrunhado, — era aquela casa que lhe cabia atender? Se soubesse de antemão, teria solicitado um substituto. Não pretendia reaproximar-se dos desafetos dos quais se havia distanciado… Abominava o homem que lhe furtara a noiva e não podia lembrar-se de Zulmira sem observar-se tocado de insólita aversão… Muita vez, rememorando o passado, calculava quanto ao melhor meio de aniquilar-lhe a existência… Porque lhe competia revê-la? Porque salvar-lhe o filho, se experimentava ímpetos de incendiar-lhe a casa?

Entretanto, algo interferia em suas reflexões. Antonina e os filhinhos, no culto do Evangelho, tomavam-lhe a tela mental. Parecia-lhe ouvir, de novo, a palavra meiga e sincera daquela mulher valorosa, repetindo-lhe ao coração:

“As mãos que curam não podem ferir…”

“Um enfermeiro diligente será, sem dúvida, o irmão de todos…”

“A vida não termina neste mundo…”

“Precisamos desculpar os outros para que os outros nos desculpem…”

Anotando-lhe a hesitação e propondo-se colocá-lo à vontade, Amaro solicitou em voz súplice:

— Entre, Mário! Conforta-me reconhecer que receberemos o concurso de um amigo…

E, indicando o quarto próximo, acrescentou:

— Zulmira está lá dentro com o nosso filhinho. Já me entendi com o médico pelo telefone e sei que o crupe foi positivado.

O enfermeiro, impassível, obedeceu maquinalmente.

Varou a câmara, perturbado, lívido.

Quando viu a mulher que amara apaixonadamente, trazendo o pequenino ao colo, registrou súbita vertigem de revolta.

Incapaz de controlar-se, sentiu que estranha aflição lhe oprimia o peito.

A volúpia da vingança enceguecia-o…

Zulmira pagar-lhe-ia caro a deserção, — pensava de olhos fixos na maternidade dolorosa que ali se exteriorizava em mortificante padecimento.

Contemplou a criancinha que a dispneia agitava, e deu curso a incontida animosidade. Tinha a impressão de odiá-la, de longa data. Ele próprio se surpreendia, sobressaltado… Como podia detestar, assim, um inocente com tanta veemência? Mas, acreditando justificar a terrível disposição de espírito com a circunstância de achar-se, ali, o fruto de uma ligação que lhe era insuportável, não procurou analisar-se. A ideia de que Amaro e a esposa sofreriam irreparavelmente, com a morte do petiz, acalentou-lhe o duro propósito de desforço. A felicidade daquele templo doméstico dependia, naquela hora, de sua atuação. E se cooperasse com a morte, auxiliando aquele rebento enfermiço a desaparecer? A pergunta criminosa traspassou-lhe o pensamento como um estilete de treva.

Contudo, a lembrança do culto de oração, no lar de Antonina, voltava-lhe à cabeça.

As consoladoras afirmações da mãezinha de Lisbela regressavam-lhe aos ouvidos:

“Vale sempre mais o acordo pacífico…”

“Não devemos nutrir qualquer espécie de aversão…”

“Quem ajuda é ajudado…”

“Ninguém se eleva aos mais altos níveis da vida com o endurecimento espiritual…”

“Nunca sabemos realmente até que ponto somos ofendidos ou ofensores…”

“O perdão é vitória da luz…”

Os retalhos da palestra edificante afiguravam-se-lhe rédeas intangíveis a lhe sofrearem a expansão dos malignos desejos.

Os conflitos sentimentais desenrolavam-se-lhe na consciência em breve minuto…

Quase cambaleante, acercou-se da ex-noiva torturada, que o reconheceu de pronto, tentando cumprimentá-lo.

Correspondeu à saudação, cerimonioso, dispondo-se ao serviço.

— Mário! — Implorou a pobre senhora, agoniada, — compadeça-se de nós! Ajude-nos! Esperei meu filhinho, suportando os maiores sacrifícios… Será crível deva agora vê-lo morrer?

Lágrimas copiosas seguiam-lhe os soluços que lhe emudeceram a garganta.

Noutro tempo, qualquer pedido daquela boca lhe impunha inquietação, mas naquele instante soberana indiferença enrijecia-lhe o espírito. Que lhe importava a dor da mulher que o abandonara? Zulmira rira-se dele, anos antes… Não lhe cabia rir-se agora?

De semblante rude, recomendou fosse a criança restituída ao leito e, logo após, tateou-lhe a sensibilidade.

De pensamento martelado pelas ideias recolhidas no estudo evangélico da noite e contido pela suave lembrança de Antonina, buscava refazer-se.

Ainda assim, como se carregasse um gênio infernal na própria mente, assinalou as criminosas sugestões que lhe atravessavam o cérebro esfogueado.

A ministração de medicamento impróprio, decerto, favoreceria a rápida extinção do enfermo. Júlio encontrava-se à beira da sepultura… Apenas o impeliria a precipitar-se nela sem mais delonga…

Todavia, o semblante de Antonina dominava-lhe a memória, exaltando o perdão.

Se viesse àquela casa na véspera, — considerou consigo mesmo, — teria exterminado o petiz sem piedade… Recorreria à eutanásia para justificar-se intimamente.

Naquela hora, porém, os princípios evangélicos da fraternidade e da conciliação, como pensamentos intrusos, atenazavam-lhe a consciência.


Esperou, silencioso, a reação do menino ofegante e embora assinalasse graves complicações que, certo, deveriam induzi-lo a comunicar-se com o médico responsável, fez a aplicação do soro antidiftérico, desejoso, porém, de vê-lo transformar-se em veneno destruidor.

Reparamos que as mãos de Mário expeliam escura substância, mas Clarêncio, pousando a destra sobre o pequenino, mantinha-o isolado de semelhantes forças.

Ante o assombro com que observávamos a exteriorização daquele visco enegrecido, nosso instrutor elucidou de boa vontade:

— São fluidos deletérios do ódio com que Silva, inconscientemente, procura envolver a infeliz criança, contudo, as nossas defesas estão funcionando.

Odila, que chamara Blandina e Mariana até nós, acompanhava a medicação, ansiosamente.

— Abnegado amigo, — dirigiu-se, inquieta, ao nosso orientador, — acredita que Júlio possa recuperar-se?

Clarêncio, que estabelecera extensa faixa magnética em torno do doentinho, preservando-o contra a influência do visitante, meneou a cabeça e falou, paternal:

— Odila, é tempo de penetrares a verdade. O menino deixará o corpo talvez em breves horas. O futuro dele exige a frustração do presente. Fortalece-te, contudo… A Vontade Divina, expressa na Lei que nos rege, faz sempre o melhor.

E talvez porque nossa irmã decepcionada ensaiasse nova perquirição, o devotado condutor pediu-lhe, calmo:

— Não indagues agora. Saberás mais tarde. Júlio reclama assistência, vigilância, carinho.

A interlocutora recompôs a expressão fisionômica, denunciando humildade e disciplina.

O enfermeiro fitava o pequeno, qual se estivesse a hipnotizá-lo para a morte, observando-lhe as contrações faciais.

Os genitores fixavam igualmente a criança, em tremenda expectativa.

Em dado instante, Júlio estremeceu, empalidecendo.

Descontrolara-se-lhe o coração.

Examinando-lhe o pulso, Silva, agora aterrado, procurou os olhos de Amaro, aflito, e solicitou em voz menos dura:

— Convém a presença imediata do nosso facultativo. Receio um choque anafilático de consequências fatais.

Zulmira deixou escapar um grito rouco, sendo socorrida pela carinhosa Evelina, enquanto o ferroviário se despejava porta a fora, em busca do pediatra.

Minutos longos de espera foram vividos no quarto estreito.

Uma hora escoou, vagarosa e terrível…

Preocupado, o médico auscultou a criança e, logo após, convidou o pai desolado a entendimento mais íntimo, anunciando:

— Surgiu o colapso irremediável. Infelizmente é o fim. Se o senhor tem fé religiosa, confiemos o caso a Deus. Agora, somente a concessão divina…

Amaro, consternado, baixou a cabeça e nada respondeu.

O pediatra trocou ideias com Silva, que se fizera muito pálido, e deu-lhe instruções, recomendando-lhe, ao despedir-se, permanecesse com o pequenino, por mais algumas horas.

Um sedativo administrado em Zulmira compeliu-a ao repouso.

Júlio, em coma, respirava dificilmente.

Enquanto isso, a noite avançava… A madrugada, agora lavada pelo vento leve, permitia ver o céu povoado de cintilantes constelações.

Reparando que a mulher e a filha descansavam, Amaro encaminhou-se para a janela próxima, como quem procurava consolo, no seio agasalhante da noite, e começou a chorar em silêncio.

Ao lado da criancinha agonizante, o enfermeiro observava-lhe a atitude sofredora e humilde, reconhecendo-se tocado no imo dalma.

Porque lutara contra semelhante inimigo? — Pensava, ensimesmado. — Amaro assemelhava-se a uma estátua de martírio silencioso. Estava ali, cabisbaixo e vencido, no lar modesto em que era um homem de bem, devotado à retidão. Decerto, já havia amargado muito. O rosto, sulcado de rugas precoces, que lhe detinham o pranto, falava da cruz de experiências difíceis que lhe pesava nos ombros. Quantos problemas inquietantes teria defrontado no mundo aquele homem dobrado pelo rigor da sorte? Como pudera ele, Mário Silva, ser ali tão cruel? Rememorou as passagens da hora de estudo e prece, entendendo, enfim, que o Evangelho estribava-se nas melhores razões. Mais valia conciliar-se depressa com o adversário que enterrar um espinho de remorso no próprio peito, e ele notava, triste, que o remorso como lâmina acerada lhe retalhava o coração… Amaro e a esposa, indiscutivelmente, poderiam ter manifestado desconfiança ao revê-lo, recusando-lhe o concurso, entretanto, acolheram-no, fraternalmente, de braços abertos… Se o haviam ferido, noutro tempo, não se achavam agora sob o guante de terrível flagelação? Rendia graças a Deus por não haver injetado substâncias tóxicas no doentinho agora moribundo, mas não teria, acaso, concorrido para abreviar-lhe a morte? Experimentava o desejo de abeirar-se do pai desditoso, tentando confortá-lo, mas sentia vergonha de si mesmo…


Durante quase duas horas permaneceram ali, os dois, calados e impassíveis.

A aurora começava a refletir-se no firmamento em largas riscas rubras, quando o ferroviário abandonou a meditação, aproximando-se do filhinho quase morto.

Num gesto comovente de fé, retirou da parede velho crucifixo de madeira e colocou-o à cabeceira do agonizante. Em seguida, sentou-se no leito e acomodou o menino ao colo com especial ternura. Amparado espiritualmente por Odila, que o enlaçava, demorou o olhar sobre a imagem do Cristo Crucificado e orou em alta voz:

— Divino Jesus, compadece-te de nossas fraquezas!… Tenho meu espírito frágil para lidar com a morte! Dá-nos força e compreensão… Nossos filhos te pertencem, mas como nos dói restituí-los, quando a tua vontade no-los reclama de volta!…

O pranto embargava-lhe a voz, mas o pai sofredor, demonstrando a sua imperiosa necessidade de oração, prosseguiu:

— Se é de teu desígnio que o nosso filhinho parta, Senhor, recebe-o em teus braços de amor e luz! Concede-nos, porém, a precisa coragem para suportar, valorosamente, a nossa cruz de saudade e dor!… Dá-nos resignação, fé, esperança!… Auxilia-nos a entender-te os propósitos e que a tua vontade se cumpra hoje e sempre!…

Jatos de safirina claridade escapavam-lhe do peito, envolvendo a criança, que, pouco a pouco, adormeceu.

Júlio afastou-se do corpo de carne, abrigando-se nos braços de Odila, à maneira de um órfão que busca tépido ninho de carícias.

Tocado nas fibras mais recônditas do ser e percebendo que a morte ali estendera as suas grandes asas, Silva experimentou violenta comoção a constringir-lhe a alma. Convulsivo choro agitou-lhe o peito; enquanto uma voz inarticulada, que parecia nascer nos recessos dele mesmo, gritava-lhe na consciência:

— Assassino! Assassino!…

Desorientado e inseguro, o moço correu para a via pública, achando-se, atormentado, no seio da sombra fria, soluçando…