Entre a Terra e o Céu

Capítulo VIII

Deliciosa excursão



O velhinho desencarnado demonstrava absoluta indiferença, ante a descrição do nosso orientador, mas, como se a presença da nobre senhora lhe despertasse novo interesse, fitou-a, de olhos subitamente iluminados, e bradou:

— Antonina! Antonina!… Socorre-me. Tenho medo! Muito medo!…

A interpelada, que fora do corpo denso se mostrava muito mais delicada e mais bela, fixou-o, triste, e inquiriu com amargurado semblante:

— Vovô, que fazes?

O ancião curvou-se e implorou:

— Ajuda-me! Todos na família me esqueceram, com exceção de ti. Não me abandones!… Ele, o meu ferrenho inimigo, me tortura por dentro. Assemelha-se a um demônio, morando em minha consciência…

Tentava agora enlaçá-la, aflito, mas Clarêncio interferiu, indicando-nos:

— Ouça, amigo! Nossos irmãos prometeram ampará-lo e, decerto, cumprirão a palavra. Nossa abnegada Antonina, no momento, precisa ausentar-se, em nossa companhia, por algumas horas.

E abraçando-o, paternal, recomendou:

— Você pode igualmente auxiliá-la. Guarde-lhe a casa, enquanto os meninos repousam. Amanhã, receberá, por sua vez, o socorro de que necessita.

O velho sorriu conformado e aquietou-se.

Deixando-o a sós, na sala estreita, saímos para a noite.

Entrelaçando as mãos, e conservando nossas irmãs no circuito fechado de nossas forças, empreendemos a formosa romagem.

Quem na Terra poderá imaginar as deliciosas sensações da alma livre?

Viajando com a rapidez do pensamento, avançamos à frente da sombra noturna, largando para trás o deslumbramento da aurora, em colorido e cantante dilúculo…

Atingindo formosa paisagem, banhada de suave luz, em que um parque imponente e acolhedor se distendia, fixei o semblante de nossas companheiras, que se mostravam extáticas e felizes.

Dona Antonina, amparando-se em Clarêncio qual se fora uma filha apoiada nos braços paternos, inquiriu, maravilhada:

— Porque não transformar esta excursão em transferência definitiva? Pesa o corpo, à maneira de insuportável cruz de carne, quando conseguimos sentir a Terra, de longe…

— É verdade, — concordou a outra irmã, que se sustentava em nós, — porque não nos é dado permanecer, olvidando os pesares e os dissabores do mundo?

— Compreendemos, — ajuntou o Ministro, generoso, — compreendemos quanta inquietação punge o Espírito reencarnado, mormente quando desperto para a beleza da vida superior, entretanto, é indispensável saibamos louvar a oportunidade de servir, sem jamais desmerecê-la. Achamo-nos ainda distantes da redenção total e todos nós, com alternativas mais ou menos longas, devemos abraçar a luta na carne, de modo a solver com dignidade nossos velhos compromissos. Somos viajores nos milênios incessantes. Ontem fomos auxiliados, hoje nos cabe auxiliar.

À medida que avançávamos, ondas de perfume acentuavam-se, em torno de nós, revigorando-nos as energias e induzindo-nos a respirar a longos sorvos.

Flores de contextura delicada pendiam abundantemente de árvores vigorosas, embalsamando as leves virações que sussurravam encantadoras melodias…

Como se trouxesse agora todo o busto engrinaldado de luz, Clarêncio sorria, bondoso.

Emudecera-se-lhe a palavra.

Sentíamo-nos todos magnetizados e enternecidos ante a beleza do quadro que nos prendia a admiração.

Antonina, porém, como se estivesse irradiando insopitável curiosidade, mesclada de alegria, voltou a exclamar:

— Ah! Se morrêssemos hoje!… Se a carne não nos pesasse mais!…

O Ministro, contudo, imprimindo mais grave entonação à voz, mas sem perder a brandura que lhe era peculiar, considerou, de imediato:

— Se hoje abandonassem o veículo de matéria densa, quem diz que seriam felizes? Quem de nós obterá a suprema ventura, sem a perfeita sublimação pessoal?

E, fitando Antonina com bondade misturada de compaixão, observou:

— Agora, vocês visitarão filhinhos abençoados que a morte lhes arrebatou temporariamente ao convívio terrestre. Vocês se sentem como que num palácio dourado, em pleno paraíso de amor, mas, e os filhinhos que ficam? Haverá Céu sem a presença daqueles que amamos? Teremos paz sem alegria para os que moram em nosso coração? Imaginemos que as algemas do cárcere físico se partissem agora… O atormentado lar humano cresceria de vulto na saudade que as tomaria de assalto… A lembrança dos filhos aprisionados no Planeta acorrentá-las-ia ao mundo carnal, à maneira de forte raiz retendo a árvore no solo escuro. Os rogos e os gemidos, as lutas e as provas dos rebentos menos felizes da existência lhes falariam ao espírito mais imperiosamente que os cânticos de bem-aventurança dos filhos afortunados e, naturalmente, desceriam do Céu para a Terra, preferindo a posição de angustiadas servas invisíveis, trocando a resplendente glória da liberdade pelos dolorosos padecimentos da prisão, de vez que a ventura maior de quem ama reside em dar de si mesmo, a favor das criaturas amadas…

As duas mulheres ouviram as sensatas ponderações sem dizer palavra.

Finda a pausa ligeira, o instrutor continuou:

— Somos devedores uns dos outros!… Laços mil nos jungem os corações. Por enquanto, não há paraíso perfeito para quem volta da Terra, tanto quanto não existe purgatório integral para quem regressa ao humano sorvedouro! O amor é a força divina, alimentando-nos em todos os setores da vida e o nosso melhor patrimônio é o trabalho com que nos compete ajudar-nos, mutuamente.

Na paisagem banhada de luz, experimentei mais alta veneração pela Natureza, que, em todas as Esferas, é sempre um livro revelador da Eterna Sabedoria…

Nossas irmãs, tocadas por júbilo inexprimível, afiguravam-se-me formosas madonas de sonho, repentinamente vivificadas, diante de nós.


— É pelo trabalho, — prosseguiu o orientador, — que nos despojamos, pouco a pouco, de nossas imperfeições. A Terra, em sua velha expressão física, não é senão energia condensada em época imemorial, agitada e transformada pelo trabalho incessante, e nós, as criaturas de Deus, nos mais diversos degraus da escada evolutiva, aprimoramos faculdades e crescemos em conhecimento e sublimação, através do serviço… O verme, arrastando-se, trabalha em benefício do solo e de si mesmo; o vegetal, respirando e frutescendo, ajuda a atmosfera e auxilia-se. O animal, em luta perene, é útil à gleba em que se desenvolve, adquirindo experiências que lhe são valiosas, e nossa alma, em constantes peregrinações, através de formas variadas, conquista os valores indispensáveis à sublime ascensão… Somos filhos da eternidade, em movimentação para a glória da verdadeira vida e só pelo trabalho, ajustado à Lei Divina, alcançaremos o real objetivo de nossa marcha!


Antonina, que parecia mais acordada que a sua companheira, para a contemplação do excelso quadro que nos circundava, perguntou, com enlevo:

— Porque não guardamos a viva recordação de nossas existências anteriores? Não seria bendita felicidade o reencontro consciente com aqueles que mais amamos?!…

— Sim, sim… — confirmava Clarêncio, enquanto nossa deliciosa excursão prosseguia, célere, — mas, na condição espiritual em que ainda nos situamos, não sabemos orientar os nossos desejos para o melhor. Nosso amor ainda é insignificante migalha de luz, sepultada nas trevas do nosso egoísmo, qual ouro que se acolhe no chão, em porções infinitesimais, no corpo gigantesco da escória. Assim como as fibras do cérebro são as últimas a se consolidarem no veículo físico em que encarnamos na Terra, a memória perfeita é o derradeiro altar que instalamos, em definitivo, no templo de nossa alma, que, no Planeta, ainda se encontra em fases iniciais de desenvolvimento. É por isso que nossas recordações são fragmentárias… Todavia, de existência a existência, de ascensão em ascensão, nossa memória gradativamente converte-se em visão imperecível, a serviço de nosso Espírito imortal…

— Mas se pudéssemos reconhecer no mundo os nossos antigos afetos, se pudéssemos rever os semblantes amigos de outras eras, identificando-os… — aventurou Antonina, reverente.

— Retomar o contato com os melhores, seria recuperar igualmente os piores, — atalhou Clarêncio, bondoso, — e, indiscutivelmente, não possuímos até agora o amor equilibrado e puro, que se consagra aos desígnios superiores, sem paixão. Ainda não sabemos querer sem desprezar, amparar sem desservir. Nossa afetividade, por enquanto, padece deploráveis inclinações. Sem o esquecimento transitório não saberíamos receber no coração o adversário de ontem para regenerar-nos, regenerando-o. A Lei é sábia. De qualquer modo, porém, não olvidemos que nosso Espírito assinala todos os passos da jornada que lhe é própria, arquivando em si mesmo todos os lances da vida, para formar com eles o mapa do destino, de acordo com os princípios de causa e efeito que nos governam a estrada, mas somente mais tarde, quando o amor e a sabedoria sublimarem a química dos nossos pensamentos, é que conquistaremos a soberana serenidade, capaz de abranger o pretérito em sua feição total…

O Ministro fez ligeiro intervalo, sorriu paternalmente para nós e rematou:

— A Lei, contudo, é invariavelmente a Lei. Viveremos em qualquer parte, com os resultados de nossas ações, assim como a árvore, em qualquer trato do solo, produzirá conforme a espécie a que se subordina.

O firmamento parecia responder às sugestões da palestra admirável.

Bandos de aves mansas pousavam na ramaria que brilhava não longe de nós.

O Sol apresentava perceptíveis raios diferentes, até agora desconhecidos à apreciação comum na Terra, provocando indefiníveis combinações de cor e luz.

Por abençoada e colorida colmeia de amor, harmonioso casario surgiu ao nosso olhar.

Centenas de gárrulas crianças brincavam entre fontes e flores de maravilhoso jardim.