Dispúnhamo-nos à despedida, quando simpática senhora desencarnada abeirou-se de nós, cumprimentando o Assistente com respeitosa afetividade.
Áulus incumbiu-se da apresentação.
— É a irmã Teonília, uma de nossas diligentes companheiras no trabalho assistencial.
A nova amiga correspondeu-nos às saudações com gentileza e explicou ao nosso orientador o objetivo que a trazia.
Contou, então, que Anésia, devotada companheira da instituição em que nos achávamos, sorvia o fel de dura prova.
Além das preocupações naturais com a educação das três filhinhas e com a assistência imprescindível à mãezinha doente, em vésperas de desencarnação, sofria tremenda luta íntima, de vez que Jovino, o esposo, vivia agora sob a estranha fascinação de outra mulher. Esquecera-se, invigilante, das obrigações no santuário doméstico. Parecia, de todo, desinteressado da companheira e das filhas. Como que voltara às estroinices da primeira juventude, qual se nunca houvesse abraçado a missão de pai.
Dia e noite, deixava-se dominar pelos pensamentos da nova mulher que o enlaçara na armadilha de mentirosos encantos.
Em casa, nas atividades da profissão ou na via pública, era ela, sempre ela a senhorear-lhe a mente desprevenida.
Transformara-se o mísero num obsidiado autêntico, sob a constante atuação da criatura que lhe anestesiava o senso de responsabilidade para consigo mesmo.
Não poderia Áulus interferir?
Não seria justo afastar semelhante influência, como se extirpa uma chaga com o socorro operatório?
O Assistente ouviu-a com calma e falou, conciso:
— Conheço Anésia e nela estimo admirável irmã. Há meses, não disponho de oportunidade para visitá-la como venho desejando. Decerto, não me negarei ao concurso fraterno, entretanto, não será conveniente estabelecer medidas drásticas sem uma auscultação do caso em si. Sabemos que a obsessão entre desencarnados ou encarnados, sob qualquer prisma em que se mostre, é uma enfermidade mental, reclamando por vezes tratamento de longo curso. Quem sabe se o pobre Jovino não estará na condição de um pássaro hipnotizado, não obstante o corpanzil que lhe confere aparências de robustez no Plano físico?
— Do que posso perceber — anotou a interlocutora —, vejo tão somente um homem comprometido em trabalho digno, ameaçado por perversa mulher…
— Oh! não! — atalhou o nosso instrutor condescendente —, não a classifique com semelhante adjetivação. Acima de tudo, é imperioso aceitá-la por infeliz irmã.
— Sim, sim… concordo — exclamou Teonília, reajustando-se. — De qualquer modo, rogo-lhe a caridosa intercessão. Anésia tem sido uma colaboradora providencial em nossa tarefa. Não me sentiria satisfeita, cruzando os braços…
— Faremos quanto se nos afigure viável no círculo de nossas possibilidades, contudo, é imprescindível analisar o passado para concluir sobre as raízes da ligação indébita a que nos reportamos.
E, imprimindo grave tonalidade à voz, o Assistente enunciou:
— Estará descendo Jovino a impressões do pretérito? não será uma provação que o nosso amigo terá traçado à própria consciência, com finalidade redentora, e à qual não sabe agora como resistir?
Teonília esboçou um gesto de humildade silenciosa, enquanto Áulus rematava, afagando-lhe os ombros:
— Guardemos otimismo e confiança. Amanhã, à noitinha, conte conosco no lar de Anésia. Sondaremos, de perto, quanto nos caiba fazer.
Nossa amiga, expressou reconhecimento e despediu-se sorrindo.
A sós conosco, durante o regresso ao nosso templo de trabalho e de estudo, Áulus salientou a nossa oportunidade de prosseguir observando. O assunto prendia-se naturalmente a problema de influenciação e teríamos ensejo de examinar fenômenos mediúnicos importantes, na esfera vulgar da experiência de muitos.
Com efeito, em momento preestabelecido, reunimo-nos no dia seguinte para a excursão programada.
Atingimos a estação de destino ao anoitecer.
Teonília aguardava-nos no pórtico de domicílio confortável, sem ser luxuoso.
Pequeno roseiral à entrada dizia sem palavras dos belos sentimentos dos moradores.
Guiados por nossa amiga, alcançamos o interior doméstico.
A família entregava-se à refeição.
Uma senhora jovem servia atenciosamente a um cavalheiro maduro e bem-posto, ladeado por três meninas, das quais a mais moça revelava a graça primaveril dos catorze a quinze anos.
Claro que o entendimento da véspera dispensava novas informações. Áulus, no entanto, esclareceu, minucioso:
— Anésia e Jovino acham-se aqui com as filhinhas Marcina, Marta e Márcia.
A palestra familiar desdobrava-se afetuosa, mas o dono da casa parecia contrafeito. Doces apontamentos das meninas não lhe arrancavam o mais leve sorriso. Contudo, enquanto o genitor timbrava em mostrar-se aborrecido, a mãezinha se fazia mais terna e mais contente, incentivando a conversação das duas filhas mais velhas que comentavam episódios humorísticos do bazar de quinquilharias em que trabalhavam juntas.
Findo o jantar, a senhora dirigiu-se à mais moça e recomendou com carinho:
— Márcia, minha filha, volte à vovó e espere por mim. Nossa doente não deve estar a sós.
A pequena obedeceu de bom grado e, transcorridos alguns instantes, Marcina e Marta demandaram sala próxima, em palestra mais íntima.
Dona Anésia reajustou a copa e a cozinha, operando em silêncio, enquanto o marido se esparramava numa poltrona, devorando os jornais vespertinos. Reparando, todavia, que o esposo se levantara para sair, endereçou-lhe olhar inquieto e indagou, delicadamente:
— Poderemos, acaso, esperar hoje por você?
— Hoje? hoje?… — redarguiu o interlocutor, sem fixá-la.
E o diálogo prosseguiu, animadamente.
— Sim, um pouco mais tarde; faremos nossas preces em conjunto…
— Preces? para que isso?
— Sinceramente, Jovino, creio no poder da oração e suponho que nunca precisamos tanto como agora de usá-la em favor de nossa tranquilidade doméstica.
— Não concordo com a sua opinião.
E, sarcástico, a exibir estranho sorriso, continuou:
— Não disponho de tempo para lidar com os seus tabus. Tenho compromissos inadiáveis. Estudarei, junto de amigos, excelente negócio.
Nesse instante, contudo, surpreendente imagem de mulher surgiu-lhe à frente dos olhos, qual se fora projetada sobre ele a distância, aparecendo e desaparecendo com intermitências.
Jovino fez-se mais distraído, mais enfadado.
Fitava agora a esposa com indiferença irônica, demonstrando inexcedível dureza espiritual.
Intrigados com o fenômeno sob nossa vista, ouvimos Anésia que, enlaçada por Teonília, dizia quase suplicante:
— Jovino, você não concorda que temos estado mais ausentes um do outro, quando precisamos estar mais juntos?
— Ora, ora! deixe de pieguices! Sua preocupação seria própria, há vinte anos, quando não éramos senão tolos colegiais!
— Não, não é bem isso… Inquietam-me nosso lar e nossas filhas…
— De minha parte, não vejo como torturar-me. Creio que a casa está bem provida e não estou dormindo sobre nossos interesses familiares. Meus negócios estão em movimento. Preciso de dinheiro e, por essa razão, não posso perder tempo com beatices e petitórios, endereçados a um Deus que, sem dúvida, deve estar muito satisfeito em morar no Céu, sem lembrar-se deste mundo…
Anésia dispunha-se a revidar, no entanto, a atitude do marido era tão flagrantemente escarnecedora que, decerto, julgou mais oportuno silenciar.
O chefe da família, depois de apurar o nó da gravata vivamente colorida, bateu a porta estrepitosamente sobre os próprios passos e retirou-se.
A companheira humilhada caiu em pranto silencioso sobre velha poltrona e começou a pensar, articulando frases sem palavras:
— “Negócios, negócios… Quanta mentira sobre mentira! Uma nova mulher, isso sim!… Mulher sem coração que não nos vê os problemas… Dívidas, trabalhos, canseiras! Nossa casa hipotecada, nossa velhinha a morrer!… Nossas filhas cedo arremessadas à luta pela própria subsistência!”
Enquanto as reflexões dela se faziam audíveis para nós, irradiando-se na sala estreita, vimos de novo a mesma figura de mulher que surgira à frente de Jovino, aparecendo e reaparecendo ao redor da esposa triste, como que a fustigar-lhe o coração com invisíveis estiletes de angústia, porque Anésia acusava agora indefinível mal-estar.
Não via com os olhos a estranha e indesejável visita, no entanto, assinalava-lhe a presença em forma de incoercível tribulação mental. De inesperado, passou da meditação pacífica a tempestuosos pensamentos.
— “Lembro-me dela, sim — refletia agora em franco desespero —, conheço-a! é uma boneca de perversidade… Há muito tempo vem sendo um veículo de perturbação para a nossa casa. Jovino está modificado… Abandona-nos, pouco a pouco. Parece detestar até mesmo a oração… Ah! que horrível criatura uma adversária qual essa, que se imiscui em nossa existência à maneira da víbora traiçoeira! Se eu pudesse haveria de esmagá-la com os meus pés, mas hoje guardo uma fé religiosa, que me forra o coração contra a violência…”
À medida, porém, que Anésia monologava intimamente em termos de revide, a imagem projetada de longe abeirava-se dela com maior intensidade, como que a corporificar-se no ambiente para infundir-lhe mais amplo mal-estar.
A mulher que empolgava o espírito de Jovino ali surgia agora visivelmente materializada aos nossos olhos.
E as duas, assumindo a posição de francas inimigas, passaram à contenda mental.
Lembranças amargas, palavras duras, recíprocas acusações.
A esposa atormentada passou a sentir desagradáveis sensações orgânicas.
O sangue afluía-lhe com abundância à cabeça, impondo-lhe aflitiva tensão cerebral.
Quanto mais se lhe dilatavam os pensamentos de revolta e amargura, mais se lhe avultava o desequilíbrio físico.
Teonília afagou-a, carinhosa, e informou ao nosso orientador:
— Há muitas semanas diariamente se repete o conflito. Temo pela saúde de nossa companheira.
Áulus deu-se pressa em aplicar-lhe recursos magnéticos de alívio e, desde então, as manifestações estranhas diminuíram até completa cessação.
Efetivado o reajustamento relativo de Anésia e percebendo-nos a curiosidade, o Assistente esclareceu:
— Jovino permanece atualmente sob imperiosa dominação telepática, a que se rendeu facilmente, e, considerando-se que marido e mulher respiram em regime de influência mútua, a atuação que o nosso amigo vem sofrendo envolve Anésia, atingindo-a de modo lastimável, porquanto a pobrezinha não tem sabido imunizar-se com os benefícios do perdão incondicional.
Hilário, intrigado, perguntou:
— Examinamos, porém, um fenômeno comum?
— Intensamente generalizado. É a influenciação de almas encarnadas entre si que às vezes, alcança o clima de perigosa obsessão. Milhões de lares podem ser comparados a trincheiras de luta, em que pensamentos guerreiam pensamentos, assumindo as mais diversas formas de angústia e repulsão.
— E poderíamos enquadrar o assunto nos domínios da mediunidade?
— Perfeitamente, cabendo-nos acrescentar ainda que o fenômeno pertence à sintonia. Muitos processos de alienação mental guardam nele as origens. Muitas vezes, dentro do mesmo lar da mesma família ou da mesma instituição, adversários ferrenhos do passado se reencontram. Chamados pela Esfera Superior ao reajuste, raramente conseguem superar a aversão de que se veem possuídos, uns à frente dos outros, e alimentam com paixão, no imo de si mesmos, os raios tóxicos da antipatia que, concentrados, se transformam em venenos magnéticos, suscetíveis de provocar a enfermidade e a morte. Para isso, não será necessário que a perseguição recíproca se expresse em contendas visíveis. Bastam as vibrações silenciosas de crueldade e despeito, ódio e ciúme, violência e desespero, as quais, alimentadas, de parte a parte, constituem corrosivos destruidores.
Finda ligeira pausa, o Assistente continuou:
— O pensamento exterioriza-se e projeta-se, formando imagens e sugestões que arremessa sobre os objetivos que se propõe atingir. Quando benigno e edificante, ajusta-se às Leis que nos regem, criando harmonia e felicidade, todavia, quando desequilibrado e deprimente, estabelece aflição e ruína. A química mental vive na base de todas as transformações, porque realmente evoluímos em profunda comunhão telepática com todos aqueles encarnados ou desencarnados que se afinam conosco.
— E como solucionar o problema da antipatia contra nós? — indagou meu companheiro com interesse.
Áulus sorriu e respondeu:
— A melhor maneira de extinguir o fogo é recusar-lhe combustível. A fraternidade operante será sempre o remédio eficaz, ante as perturbações dessa natureza. Por isso mesmo, o Cristo aconselhava-nos o amor aos adversários, o auxílio aos que nos perseguem e a oração pelos que nos caluniam, como atitudes indispensáveis à garantia de nossa paz e de nossa vitória.
Nesse instante, porém, Anésia consultara o relógio e reerguera-se.
Vinte horas.
Era o momento preciso de suas preces junto da mãezinha doente, e acompanhamo-la, atenciosos, a fim de igualmente orarmos.