Nos domínios da mediunidade

Capítulo XXI

Mediunidade no leito de morte



Na noite seguinte, voltamos ao lar de Anésia, com o objetivo particular de socorrer-lhe a mãezinha doente.

Dona Elisa piorara.

Encontramo-la, agitada, a desligar-se do corpo físico.

O médico da família examinava-lhe o quadro orgânico, evidenciando preocupação e desalento.

O estetoscópio dava-lhe a conhecer a posição difícil do coração exausto. Além disso, o elevado teor de ureia favorecia a intoxicação alarmante. Previa o fim próximo da resistência física, entretanto, o delírio da enferma desnorteava-o. Dona Elisa via-se presa de estranha perturbação mental.

Superexcitada, aflita, declarava-se perseguida por um homem que se propunha abatê-la a tiros, clamava pelo filho desde muito na vida espiritual e dizia ver serpentes e aranhas ao pé do leito.

A despeito do suor pastoso de quem se aproxima da morte e da extrema palidez que lhe desfigurava a máscara fisionômica, fazia supremo esforço para continuar falando em voz alta.

O facultativo convidou a dona da casa a entendimento reservado e comunicou-lhe as péssimas impressões de que se via possuído.

A enferma deveria prosseguir com medicação de emergência, à face da crise, contudo, a noite ser-lhe-ia sacrificial. A uremia avançava célere, o coração era um barco desgovernado e, por isso, o colapso poderia surpreendê-la de momento para outro.

Anésia acolheu a palavra do clínico, enxugando as lágrimas que teimavam em lhe saltar dos olhos.

Despediu-se dele e colocou-se em oração, confiando-se à influência de Teonília, que lhe seguia os passos, qual se lhe fora abnegado nume protetor. Sem conseguir explicar a si mesma a serenidade balsâmica que lhe tomou gradativamente a alma, aquietou-se entre a fé e a paciência, na certeza de que não lhe faltaria o amparo do Plano Superior. Longe de perceber a ternura de que era objeto, por parte da devotada amiga, recebia-lhe os apelos confortadores em forma de sublimes pensamentos de esperança e de paz.

Demorou-se na contemplação da anciã que pedia socorro em voz arrastadiça e fitou-lhe os olhos desmesuradamente abertos, sem expressão…

Profunda piedade assenhoreou-lhe o carinho filial.

— Mãezinha — disse, afetuosa —, sente-se agora melhor?

A interpelada tomou-lhe as mãos, como se fora uma criança medrosa, e sussurrou:

— Minha filha, não estou melhor, porque o assassino me espreita… Não sei como escapar… estou igualmente cercada de aranhas enormes… que fazer para salvar-me?!…

E, em seguida, elevando o tom de voz, gritou com lamentosa inflexão:

— Ai! as serpentes!… as serpentes!… Ameaçam-me da porta… Que será de mim?

Escondia o rosto nas mãos descarnadas e debalde tentava erguer o corpo, movimentando a cabeça trêmula.

— Mãezinha, acalme-se! — rogava a filha comovida. — Confiemos na Providência. Jesus é o nosso Amigo Vigilante. Por que não esperar pela proteção dele? A senhora vai recuperar-se… Repare com atenção. Nosso quarto está em paz…

Asserenava-se a enferma de algum modo, com a desconfiança e o medo a se lhe estamparem nos olhos e, logo após, constrangendo Anésia a inclinar-se, segredava-lhe aos ouvidos:

— Sinto que o nosso Olímpio está conosco… Meu filho desceu do Céu e veio buscar-me… Não tenho dúvida… é meu filho, sim… meu filho…

A carinhosa enfermeira acreditou no que ouvia, compreendendo, porém, que a presença do irmão não seria de desejar e convidou a genitora ao serviço da prece. Não seria melhor que se unissem ambas em prece, pedindo o socorro celestial?

E enquanto Anésia se fazia intérprete da assistência de Teonília, a esforçar-se por envolver a velhinha em fluidos calmantes, Áulus convidou-nos a reparar a comunhão entre o filho desencarnado e a pobre mãe a desencarnar.

Olímpio, o rapaz assassinado noutro tempo, jungia-se a ela, à maneira de planta parasitária asfixiando um arbusto raquítico.

— Nossa amiga — explicou o Assistente —, em sua doce afetividade, supõe no filho um gênio guardião, quando a realidade é que o infeliz se deixou dominar, mesmo depois de perder o veículo carnal, pelo vício da embriaguez. Alcoólatra impenitente, caiu ante o revólver de um companheiro, tão desvairado quanto ele mesmo, numa noite de insânia. Desligado da carne e já intensamente minado pelo “delirium tremens”, não teve forças para mentalizar a recuperação que lhe é imprescindível e prosseguiu em companhia daqueles que lhe pudessem facultar o prolongamento dos excessos em que se compraz… Evocado, contudo, pela insistência materna, veio parar neste quarto, onde se encontra enleado pelas requisições da irmã Elisa. Acontece, no entanto, que, em se libertando gradualmente do vaso físico, nossa irmã transfere o campo emotivo, do círculo da carne para a Esfera do Espírito, passando compulsoriamente a sofrer ó influxo pernicioso da entidade que ela própria trouxe para junto de si, usando a vontade e o pensamento. Na posição em que se colocam, são ambos, assim, por força das circunstâncias, duas mentes sintonizadas na mesma faixa de impressões, porque, enfraquecida qual se encontra, a enferma se submete facilmente ao domínio do rapaz, cujo pavor e cujo desequilíbrio se lhe transfundem na alma submissa e afetuosa.

Analisando o fenômeno, perguntei se a associação sob nossa vista poderia ser comparada à incorporação mediúnica, qual a conhecemos.

— Sem qualquer dúvida — confirmou o orientador. — Elisa, atraindo o filho, num estado de passividade profunda, que lhe sobrevém por motivo de natural desgaste nervoso e sem experiência que lhe outorgue discernimento e defesa, assimila-lhe, de modo espontâneo, as correntes mentais, retratando-lhe a desarmonia interior. Estando a desencarnar-se, devagarinho, reflete-lhe as reminiscências do pretérito e as terríveis visões íntimas que lhe são agora familiares, de vez que, à distância das libações costumeiras, o infortunado amigo padece as alucinações comuns às vítimas do alcoolismo crônico.

— Céus! — exclamou Hilário, compadecido — como relegar uma velhinha doente a provação dessa ordem? não significará isso clamorosa injustiça?

— Concordo em que é lamentável o quadro sob nosso exame — obtemperou o Assistente —, entretanto, ninguém trai as leis que nos regem a vida. Elisa, com a presença do filho, recebeu aquilo que procurou ardentemente. Certo, apresenta-se na configuração passageira de uma anciã penetrando a antecâmara da morte, todavia, na realidade, é um Espírito imperecível e responsável, manejando os valores mentais que se expressam e se conjugam, segundo princípios claros e definidos.

Finda ligeira pausa, acentuou:

— Muita vez, pedimos o que não conhecemos, recolhendo o que não desejamos. No fim, porém, há sempre lucro, porque o Senhor nos permite retirar, de cada situação e da cada problema, os preciosos valores da experiência.

Áulus, contudo, não perdeu tempo em divagações.

Conferenciou reservadamente com Teonília quanto ao serviço programado, em favor da enferma e, aceitando-nos a colaboração, desligou o rapaz, usando para isso avançados potenciais magnéticos.

Tão logo se afastou o desventurado Olímpio, identificamos curioso fenômeno. Dona Elisa, que falava singularmente animada, entrou em absoluta prostração, qual se houvera sido manietada.

Assinalando-nos a curiosidade, o orientador esclareceu:

— A atuação do filho desencarnado alimentava-lhe a excitação mental a incidir sobre o campo nervoso. Agora, está confinada às energias que lhe são próprias.


A doente, emitindo sons guturais, calara-se, de súbito.

Debalde tentou Anésia arrancar-lhe uma palavra.

Dona Elisa, embora vendo e ouvindo, não mais logrou articular uma frase. Buscou inutilmente mover os braços, ante a dor aguda que passou a registrar no peito, todavia, não teve forças para tanto.

Áulus deu-se pressa em administrar-lhe passes calmantes, contudo, não obteve grande resultado.

— É a contração final das coronárias — exclamou, comovido. — Elisa não resistirá. O miocárdio não mais reage ao nosso influxo magnético. O processo anginoso alcançou o fim.

Reparei que a agonizante estimaria conversar com a filha, no entanto, incoercível sofrimento constringia-lhe o tórax.

A língua não mais lhe obedecia ao comando íntimo.

Teve a noção de que lhe cabia fazer a viagem do túmulo… Como se um relâmpago lhe rasgasse a noite mental, num desses raros minutos que valem séculos para a alma, reviu apressadamente o passado. Todas as cenas da infância, da mocidade e da madureza reapareceram de inesperado no templo da memória, como que a convidá-la a escrupuloso exame de consciência.


A enferma não vacilou.

Seus momentos na carne estavam contados.

Incapaz de entender-se com a filha, desejou despedir-se de velha irmã que residia a longa distância.

Vimo-la, num supremo esforço, concentrando os próprios pensamentos para satisfazer a essa derradeira aspiração…

Anésia, por sua vez, sob a influência de Teonília, percebeu que a genitora atingira a estação terminal da existência terrestre e, enlaçando-a, carinhosamente, orava em pranto silencioso.

A agonizante entendeu-a, mas apenas derramou comoventes lágrimas como resposta.

Demorando na filha o olhar dorido e ansioso, Dona Elisa projetou-se, por fim, em nosso meio, mantendo-se, porém, ainda ligada ao veículo físico por um laço de prateada substância.

Enquanto se lhe inteiriçavam os membros, um só pensamento lhe predominava no espírito — dizer adeus à última irmã consanguínea que lhe restava na Terra.

Envolvida na onda de forças, nascida de sua própria obstinação, afastou-se, ligeira, volitando automaticamente no rumo da cidade em que se lhe situava a parenta.

Correspondendo à ordem de Áulus, passamos a segui-la de perto.

Dezenas de quilômetros foram instantaneamente vencidos.

Em plena noite alta, colocamo-nos ao lado dela, num aposento mal iluminado, em que venerável anciã dormia tranquila.

— Matilde! Matilde!…

A recém-chegada tentou despertá-la, à pressa, mas em vão. Consciente de que não dispunha senão de rápidos instantes, vibrou algumas pancadas no leito da irmã, que acordou de chofre, entrando, de imediato, em sua esfera de influência.

Dona Elisa passou a falar-lhe, atormentada. Dona Matilde, contudo, não lhe escutava as palavras pelos condutos auditivos do vaso carnal e sim pelo cérebro, através de ondas mentais, em forma de pensamentos a lhe remoinharem ao redor da cabeça.

Reerguendo-se, inquieta, falou de si para consigo: — “Elisa morreu”.

Indicando-nos as duas irmãs juntas, o Assistente explicou:

— Temos aqui um dos tipos habituais de comunicação nas ocorrências de morte. Pela persistência com que se repetem, os cientistas do mundo são constrangidos a examiná-los. Alguns atribuem esses fatos a transmissões de ondas telepáticas, ao passo que outros neles encontraram os chamados “fenômenos de monição”. Isso tudo, porém, reduz-se na Doutrina do Espiritismo à verdade simples e pura da comunhão direta entre as almas imortais.

— Todas as pessoas, desde que o desejem perguntou meu colega —, podem efetuar semelhantes despedidas, quando partem da Terra?

— Sim, Hilário, você diz bem quando afirma “desde que o desejem”, porque semelhantes comunicações, no instante da morte, somente se realizam por aqueles que concentram a própria força mental num propósito dessa espécie.

Todavia, não dispúnhamos de tempo para maiores conversações.

Dona Elisa, após liberar-se do anseio que lhe inquietava o campo íntimo, qual se o corpo distante lhe reclamasse a presença, à feição do que ocorre num caso de desdobramento vulgar, voltou, de imediato, a casa.

Seguindo-a de perto, notamo-la menos aflita, embora fatigada.

No aposento familiar, quis reaver o veículo físico, satisfazendo aos velhos hábitos, como se a realidade lhe constituísse tão somente estranho pesadelo, contudo, abatida e atormentada flutuou sobre o leito, ligada aos despojos pelo tênue fio a que nos referimos.

A recém-desencarnada, de alma opressa, resistia à fome de repouso que lhe castigava o pensamento, indecisa e agoniada, sem saber definir se estava viva dentro da morte ou se estava morta dentro da vida.

Outros amigos espirituais penetraram a câmara.

Áulus consultou o horário e acrescentou:

— Voltemos. Nada mais nos cabe fazer.

Hilário fixou o laço prateado entre o corpo hirto e a nossa amiga recém-liberta e indagou:

— Não poderemos colaborar no desfazimento desse cordão incômodo?

— Não — explicou o orientador —, esse elo tem a sua função específica no reequilíbrio da alma. Morte e nascimento são operações da vida eterna que demandam trabalho e paciência. Além disso, há companheiros especializados no serviço da libertação última. A eles compete o toque final.

E, acompanhando o instrutor, retiramo-nos do lar de Anésia, onde havíamos recolhido preciosas lições.