Em companhia do Assistente, tornamos à segunda reunião semanal do grupo presidido pelo irmão Raul Silva, a cuja organização nosso orientador não regateava simpatia e confiança.
O conjunto de trabalhadores não se alterara na constituição que lhe era característica.
A pequena fila dos obsessos, todavia, apresentava modificações.
Duas senhoras, seguidas pelos respectivos esposos, e um cavalheiro de fisionomia fatigada integravam a equipe dos que receberiam assistência.
Os médiuns da casa desempenharam caridosa tarefa, emprestando as suas possibilidades para a melhoria de várias entidades transviadas na sombra e no sofrimento, com a colaboração eficiente de Dona Celina à frente do serviço.
Solucionados diversos problemas alusivos ao programa da noite, eis que uma das senhoras enfermas cai em pranto convulsivo, exclamando:
— Quem me socorre? quem me socorre?!…
E comprimindo o peito com as mãos, acrescentava em tom comovedor:
— Covarde! por que apunhalar, assim, uma indefesa mulher? serei totalmente culpada? meu sangue condenará seu nome infeliz…
Raul, com a serenidade habitual, abeirou-se dela e consolou-a, com carinho:
— Minha irmã, o perdão é o remédio que nos recompõe a alma doente… Não admita que o desespero lhe subjugue as energias!… Guardar ofensas é conservar a sombra. Esqueçamos o mal para que a luz do bem nos felicite o caminho…
— Olvidar? nunca… O senhor sabe o que vem a ser uma lâmina enterrada em sua carne? sabe o que seja a calamidade de um homem que nos suga a existência para arremessar-nos à miséria, comprazendo-se, depois disso, em derramar-nos o próprio sangue?
— Sim, sim, ninguém lhe contraria o direito à justiça, segundo as suas afirmações, entretanto, não será mais aconselhável aguardar o pronunciamento da Bondade Divina? Quem de nós estará sem mácula?
— Esperar, esperar?! há quanto tempo não faço outra coisa! Em vão procuro reaver a alegria… Por mais me dedique ao trabalho de romper com o pretérito, vivo a carregar a sombra de minhas recordações, como quem traz no próprio peito o sepulcro dos sonhos mortos… Tudo por causa dele… Tudo pelo malvado que me arruinou o destino…
E a pobre criatura prorrompeu em soluços, enquanto um homem desencarnado, não longe, fitava-a com inexprimível desalento.
Perplexos, Hilário e eu lançamos um olhar indagador ao Assistente, que nos percebeu a estranheza, porquanto a enferma, sem a presença da mulher invisível que parecia personificar, prosseguia em aflitiva posição de sofrimento.
— Não vejo a entidade de quem a nossa irmã se faz intérprete — alegou Hilário, curioso.
— Sim — disse por minha vez —; observo em nossa vizinhança um triste companheiro desencarnado, mas se ele estivesse telepaticamente ligado à nossa amiga, decerto a mensagem definiria a palavra de um homem, sem as características femininas da lamentação que registramos… Em verdade, não notamos aqui qualquer laço magnético que nos induza a assinalar fluidos teledinâmicos sobre a mente da médium…
Áulus afagou a fronte da doente em lágrimas, como se lhe auscultasse o pensamento, e explicou:
— Estamos diante do passado de nossa companheira. A mágoa e o azedume, tanto quanto a personalidade supostamente exótica de que dá testemunho, tudo procede dela mesma… Ante a aproximação de antigo desafeto, que ainda a persegue de nosso Plano, revive a experiência dolorosa que lhe ocorreu, em cidade do Velho Mundo, no século passado, e entra em seguida a padecer insopitável melancolia.
Recomeçou a luta na carne, na presente reencarnação, possuída de novas esperanças, contudo, tão logo experimenta a visitação espiritual do antigo verdugo, que a ela se enleia, através de vigorosos laços de amor e ódio, perturba-se-lhe a vida mental, necessitada de mais ampla reeducação. É um caso no qual se faz possível a colheita de valiosos ensinamentos.
— Isso quer dizer, então…
A frase de Hilário ficou, porém, no ar, porque o instrutor lhe definiu o pensamento, acrescentando:
— Isso quer dizer que nossa irmã imobilizou grande coeficiente de forças do seu mundo emotivo, em torno da experiência a que nos referimos, a ponto de semelhante cristalização mental haver superado o choque biológico do renascimento no corpo físico, prosseguindo quase que intacta. Fixando-se nessa lembrança, quando instada de mais perto pelo companheiro que lhe foi irrefletido algoz, passa a comportar-se qual se estivesse ainda no passado que teima em ressuscitar. É então que se dá a conhecer como personalidade diferente, a referir-se à vida anterior.
Sorrindo, paternal, considerou:
— Sem dúvida, em tais momentos, é alguém que volta do pretérito a comunicar-se com o presente, porque ao influxo das recordações penosas de que se vê assaltada, centraliza todos os seus recursos mnemônicos tão somente no ponto nevrálgico em que viciou o pensamento. Para o psiquiatra comum é apenas uma candidata à insulinoterapia ou ao eletrochoque, entretanto, para nós, é uma enferma espiritual, uma consciência torturada, exigindo amparo moral e cultural para a renovação íntima, única base sólida que lhe assegurará o reajustamento definitivo.
Analisei-a, com atenção, e concluí:
— Mediunicamente falando, vemos aqui um processo de autêntico animismo. Nossa amiga supõe encarnar uma personalidade diferente, quando apenas exterioriza o mundo de si mesma…
— Poderíamos, então, classificar o fato no quadro da mistificação inconsciente? — interferiu Hilário, indagador.
Áulus meditou um minuto e ponderou:
— Muitos companheiros matriculados no serviço de implantação da Nova Era, sob a égide do Espiritismo, vêm convertendo a teoria animista num travão injustificável a lhes congelarem preciosas oportunidades de realização do bem; portanto, não nos cabe adotar como justas as palavras “mistificação inconsciente ou subconsciente” para batizar o fenômeno. Na realidade, a manifestação decorre dos próprios sentimentos de nossa amiga, arrojados ao pretérito, de onde recolhe as impressões deprimentes de que se vê possuída, externando-as no meio em que se encontra. E a pobrezinha efetua isso quase na posição de perfeita sonâmbula, porquanto se concentra totalmente nas recordações que já assinalamos, como se reunisse todas as energias da memória numa simples ferida, com inteira despreocupação das responsabilidades que a reencarnação atual lhe confere. Achamo-nos, por esse motivo, perante uma doente mental, requisitando-nos o maior carinho para que se recupere. Para sanar-lhe a inquietação, todavia, não nos bastam diagnósticos complicados ou meras definições técnicas no campo verbalista, se não houver o calor da assistência amiga.
Nosso orientador fez ligeira pausa, acariciando a enferma, e, enquanto Raul Silva continuava a doutriná-la e a consolá-la, notificou-nos, bondoso:
— Deve ser tratada com a mesma atenção que ministramos aos sofredores que se comunicam. É também um Espírito imortal, solicitando-nos concurso e entendimento para que se lhe restabeleça a harmonia. A ideia de mistificação talvez nos impelisse a desrespeitosa atitude, diante do seu padecimento moral. Por isso, nessas circunstâncias, é preciso armar o coração de amor, a fim de que possamos auxiliar e compreender. Um doutrinador sem tato fraterno apenas lhe agravaria o problema, porque, a pretexto de servir à verdade, talvez lhe impusesse corretivo inoportuno ao invés de socorro providencial. Primeiro, é preciso remover o mal, para depois fortificar a vítima na sua própria defesa… Felizmente, o nosso Raul assimila as correntes espirituais que prevalecem aqui, tornando-se o enfermeiro ideal para as situações dessa ordem.
Hilário, tanto quanto eu, edificado com os ensinamentos ouvidos, perguntou respeitoso:
— E podemos considerá-la médium, mesmo assim?
— Como não? Um vaso defeituoso pode ser consertado e restituído ao serviço. Naturalmente, agora a paciência e a caridade necessitam agir para salvá-la. Nossa irmã deve ser ouvida na posição em que se revela, como sendo em tudo a desventurada mulher de outro tempo, e recebida por nós nessa base, para que use o remédio moral que lhe estendemos, desligando-se enfim do passado… O assunto não comporta desmentido, porque indiscutivelmente essa mulher existe ainda nela mesma. A personalidade antiga não foi tão eclipsada pela matéria densa como seria de desejar. Ela renasceu pela carne, sem renovar-se em espírito…
O Assistente fixou o gesto de quem mergulhava na própria consciência a sonda de suas reflexões e falou, qual se o fizesse de si para consigo:
— Ela representa milhares de criaturas aos nossos olhos!… Quantos mendigos arrastam na Terra o esburacado manto da fidalguia efêmera que envergaram outrora! quantos escravos da necessidade e da dor trazem consigo a vaidade e o orgulho dos poderosos senhores que já foram em outras épocas!… quantas almas conduzidas à ligação consanguínea caminham do berço ao túmulo, transportando quistos invisíveis de aversão e ódio aos próprios parentes, que lhes foram duros adversários em existências pregressas!… Todos podemos cair em semelhantes estados se não aprendemos a cultivar o esquecimento do mal, em marcha incessante com o bem…
Nessa altura, Raul Silva, na condição de hábil psicólogo, convidou a doente ao benefício da prece.
Competia-lhe a ela suplicar ao Céu a graça do olvido. Cabia-lhe expungir o passado da imaginação, de maneira a pacificar-se. E, singularmente comovido, recomendou-lhe repetir em companhia dele as frases sublimes da oração dominical.
A pobre senhora acompanhou-o docilmente.
Ao término da súplica, mostrava-se mais tranquila.
O prestimoso amigo, traduzindo a colaboração do mentor que o acompanhava, solícito, rogou-lhe considerar, acima de tudo, o impositivo do perdão aos inimigos para a reconquista da paz e, em lágrimas, a enferma desligou-se das impressões que a imobilizavam no pretérito, tornando à posição normal.
Enquanto Silva lhe aplicava passes de reconforto, o Assistente comentou:
— Outra não pode ser, por enquanto, a intervenção assistencial em seu benefício. Pela enfermagem espiritual bem conduzida, reajustar-se-á pouco a pouco, retomando o império sobre si mesma e capacitando-se para o desempenho de valiosas tarefas mediúnicas mais tarde.
Estimaríamos a possibilidade de continuar analisando o caso sob nossa vista, contudo, a outra senhora doente passou de improviso ao transe agitado e era preciso estudar, fazendo o melhor.
[Insulinoterapia e eletrochoque — Esse tipo de tratamento foi largamente utilizado ao tempo em que este livro foi escrito, em 1952.]