O rápido curso de aprendizagem que vínhamos realizando atingia a sua fase final.
Áulus não dispunha de tempo para favorecer-nos com experiências mais amplas. Era um trabalhador comprometido em serviços diversos.
Embora isso compreendêssemos, Hilário e eu nos sentíamos algo melancólicos.
O Assistente, contudo, desenvolvia todas as possibilidades ao seu alcance para conservar-nos o entusiasmo habitual.
Atravessávamos ruas e praças, quando nos defrontamos com um museu, a que se acolhiam alguns visitantes retardatários.
E o nosso orientador, como quem se dispunha a aproveitar as horas que nos restavam para dilatar observações e apontamentos, convidou-nos a entrar, exclamando:
— Numa instituição como esta, é possível realizar interessantíssimos estudos. Decerto, já ouviram referências à psicometria. Em boa expressão sinonímica, como o é usada na Psicologia experimental, significa “registro, apreciação da atividade intelectual”, entretanto, nos trabalhos mediúnicos, esta palavra designa a faculdade de ler impressões e recordações ao contato de objetos comuns.
Passamos por longo portal e, no interior do edifício, reparamos que muitas entidades desencarnadas iam e vinham, de mistura com as pessoas que anotavam utilidades de outro tempo, com crescente admiração.
— Muitos companheiros de mente fixa no pretérito frequentam casas como esta pelo simples prazer de rememorar… — comentou o Assistente.
Verifiquei que algumas preciosidades, excetuando-se uma que outra, estavam revestidas de fluidos opacos, que formavam uma massa acinzentada ou pardacenta, na qual transpareciam pontos luminosos.
Notando-me a curiosidade, o instrutor aclarou, benevolente:
— Todos os objetos que você vê emoldurados por substâncias fluídicas acham-se fortemente lembrados ou visitados por aqueles que os possuíram.
Não longe, havia curioso relógio, aureolado de luminosa faixa branquicenta.
Áulus recomendou-me tocá-lo e, quase instantaneamente, me assomou aos olhos mentais linda reunião familiar, em que venerando casal se entretinha a palestrar com quatro jovens em pleno viço primaveril.
Com aquele quadro vivo a destacar-se ante a minha visão interior, examinei o recinto agradável e digno. O mobiliário austríaco imprimia sobriedade e nobreza ao conjunto, que jarrões de flores e telas valiosas enfeitavam.
O relógio lá se encontrava, dominando o ambiente, do cimo de velha parede caprichosamente adornada.
Registrando-me a surpresa, o Assistente adiantou:
— Percebo a imagem sem o toque direto. O relógio pertenceu a respeitável família do século passado. Conserva as formas-pensamento do casal que o adquiriu e que, de quando em quando, visita o museu para a alegria de recordar. É um objeto animado pelas reminiscências de seus antigos possuidores, reminiscências que se reavivam no tempo, através dos laços espirituais que ainda sustentam em torno do círculo afetivo que deixaram.
Hilário tateou a preciosidade e falou:
— Isso quer dizer que vemos imagens aqui impressas por eles, por intermédio de vibrações…
— Justamente — confirmou o orientador. — O relógio está envolvido pelas correntes mentais dos irmãos que ainda se apegam a ele, assim como o fio de cobre na condução da energia está sensibilizado pela corrente elétrica. Auscultando-o, na fase em que se encontra, relacionamo-nos, de imediato, com as recordações dos amigos que o estimam.
Hilário refletiu alguns momentos e observou:
— Então, se estivéssemos interessados em conhecer esses companheiros e encontrá-los, um objeto nessas condições seria um mediador para a realização de nossos desejos…
— Sim, perfeitamente — aprovou o instrutor —; usaríamos, para isso, alguma coisa em que a memória deles se concentra. Tudo o que se nos irradia do pensamento serve para facilitar essa ligação.
— Muito importante o estudo da força mental — considerei, sob forte impressão.
Áulus sorriu e comentou:
— O pensamento espalha nossas próprias emanações em toda parte a que se projeta. Deixamos vestígios espirituais, onde arremessamos os raios de nossa mente, assim como o animal deixa no próprio rastro o odor que lhe é característico, tornando-se, por esse motivo, facilmente abordável pela sensibilidade olfativa do cão. Quando libertados do corpo denso, aguçam-se-nos os sentidos e, em razão disso, podemos atender, sem dificuldade, a esses fenômenos, dentro da Esfera em que se nos limitam as possibilidades evolutivas.
— Somos, desse modo, induzidos a crer — considerou meu companheiro — que não dispomos de recursos para alcançar o pensamento daqueles que se fizeram superiores a nós…
— Sim, aqueles que atingiram uma elevação que não somos capazes de imaginar, remontaram a outros Planos, transcendendo-nos o modo de expressão e de ser. O pensamento deles vibra em outra frequência. Naturalmente, podem acompanhar-nos e auxiliar-nos, porque é da Lei que o superior venha ao inferior quando queira, contudo, por nossa vez, não nos é facultado segui-los.
O Assistente refletiu um instante e prosseguiu:
— Simbolizemos, para discernir. O que ocorre, entre eles e nós, acontece entre nós e os seres que se nos localizam à retaguarda. Podemos, por exemplo, cuidar dos interesses das tribos primitivas ou retardadas, sem que elas consigam fazer o mesmo em nosso favor. Penetramos os costumes e conhecimentos da taba, sem que a taba entenda patavina de nosso edifício cultural. O pensamento nos condiciona ao Círculo em que devemos ou merecemos viver e, só ao preço de esforço próprio ou de segura evolução, logramos aperfeiçoá-lo, superando limitações para fazê-lo librar em Esferas superiores.
O Assistente fitou-nos com bondade e acrescentou:
— No entanto, evitemos digressões em desacordo com os nossos objetivos essenciais.
— Imaginemos — disse por minha vez — que nos propuséssemos fixar a atenção num exame mais circunstanciado. Poderíamos, assim, conhecer a história da matéria que serve à formação do relógio que analisamos?
— Sem dúvida. Isso demandaria mais trabalho, mais tempo, contudo, é iniciativa perfeitamente viável.
— Cada objeto, então — concluiu Hilário —, pode ser um mediador para entrarmos em relação com as pessoas que se interessam por ele e um registro de fatos da Natureza…
— Sem mais nem menos — confirmou Áulus, seguro de si —; não podemos esquecer que o paleontologista pode reconstituir determinadas peças da fauna pré-histórica por um simples osso encontrado a esmo. Quando se nos apura a sensibilidade de maneira mais intensiva, em simples objetos relegados ao abandono podemos surpreender expressivos traços das pessoas que os retiveram ou dos sucessos de que foram testemunhas, através das vibrações que eles guardam consigo.
E, num sorriso, ajuntou:
— As almas e as coisas, cada qual na posição em que se situam, algo conservam do tempo e do espaço, que são eternos na memória da vida.
Logo após, detivemo-nos a estudar primorosa tela do século XVIII, que não apresentava qualquer sinal de moldura fluídica.
Efetivamente, era uma preciosidade isolada. Por ela, não nos foi possível estabelecer qualquer contato espiritual de natureza exterior.
Áulus assumiu a atitude do professor benevolente que lhe era peculiar e explicou:
— Pesquisado mais intimamente, este quadro será interessante registro, oferecendo-nos informações acerca dos ingredientes que o constituem, entretanto, não funciona como “mediador de relações espirituais”, por achar-se plenamente esquecido pelo autor e por aqueles que provavelmente o possuíram…
Avançamos mais além.
Ao lado de extensa galeria, dois cavalheiros e três damas admiravam singular espelho, junto do qual se mantinha uma jovem desencarnada com expressão de grande tristeza.
Uma das senhoras teve palavras elogiosas para a beleza da moldura, e a moça, na feição de sentinela irritada, aproximou-se tateando-lhe os ombros.
A matrona tremeu, involuntariamente, sob inesperado calafrio, e falou para os companheiros:
— Aqui há um estranho sopro de câmara funerária. É melhor que saiamos…
Confiou-se o grupo a manifestações de bom humor e retirou-se, acompanhando-a noutro rumo. A entidade, que não nos assinalava a intromissão, pareceu-nos contente com a solidão e passou a contemplar o espelho, sob estranha fascinação.
Áulus acariciou-a, de leve, tocou o objeto com atenção e comentou:
— Anotaram o fenômeno? Do pequeno conjunto de visitantes, a irmã que registrou a aproximação da jovem, sob nosso exame, é portadora de notável sensibilidade mediúnica. Se educasse as suas forças e sondasse o espelho, entraria em relação imediata com a moça que ainda se apega a ele desvairadamente. Receber-lhe-ia as confidências, conhecer-lhe-ia o drama íntimo, porque imediatamente lhe assimilaria a onda mental, senhoreando-lhe as imagens…
Hilário, incapaz de sofrear a curiosidade que nos esfogueava o cérebro, indagou sobre a moça. Que fazia ali, naquele túmulo de recordações? por que se interessava, com tanta ânsia, por um simples espelho, sem maior significação?
O Assistente, como quem já esperava por nosso inquérito, respondeu sem pestanejar:
— Toquei o objeto para informar-me. Este espelho originalíssimo foi confiado à jovem por um rapaz que lhe prometeu casamento. Vejo-lhe a figura romântica nas reminiscências dela. Era filho de franceses asilados no Brasil, ao tempo da França Revolucionária de 1791. Menino ainda, aportou no Rio e aí cresceu e se fez homem. Encontrou-a e conquistou-lhe o coração. Quando arquitetavam projetos de casamento, depois da mais íntima ligação afetiva, a família estrangeira, animada com os sucessos de Napoleão, na Europa, deliberou o retorno à pátria. O moço pareceu desolado, mas não desacatou a ordem paterna. Despediu-se da noiva e lhe implorou guardasse a peça como lembrança, até que pudesse voltar, e serem então felizes para sempre… Contudo, distraído na França pelos encantos de outra mulher, não mais regressou… Depressa esqueceu responsabilidades e compromissos, tornando-se diferente. A pobrezinha, no entanto, fixou-se na promessa ouvida e continua a esperá-lo. O espelho é o penhor de sua felicidade. Imagino a longa viagem que terá feito no tempo, vigiando-o como sendo propriedade sua, até que a lembrança viesse por fim repousar no museu.
— O assunto — aventei, preocupado — compele-nos a refletir sobre as antigas histórias de joias enfeitiçadas…
— Sim, sim — ponderou o Assistente —, a influência não procede das joias, mas sim das forças que as acompanham.
Hilário, que meditava a lição maduramente, considerou:
— Se alguém pudesse adquirir a peça e conduzi-la consigo…
— Decerto — atalhou o instrutor — arcaria também com a presença da moça desencarnada.
— E isso seria justo?
Áulus esboçou leve sorriso e obtemperou:
— Hilário, a vida nunca se engana. É provável que alguém apareça por aqui e se extasie à frente do objeto, disputando-lhe a posse.
— Quem?
— O moço que empenhou a palavra, provocando a fixação mental dessa pobre criatura, ou a mulher que o afastou dos compromissos assumidos. Reencarnados, hoje ou amanhã, possivelmente um dia virão até aqui, tomando-a por filha ou companheira, no resgate do débito contraído.
— Mas não podemos aceitar a hipótese de a jovem desencarnada ser atraída por algum círculo de cura, desembaraçando-se da perturbação de que é vítima?
— Sim — concordou o orientador —, isso é também possível; entretanto, examinada a harmonia da Lei, o reencontro do trio é inevitável. Todos os problemas criados por nós não serão resolvidos senão por nós mesmos.
A conversação era preciosa, contudo, a responsabilidade impelia-nos para diante.
De saída, renteamos com o gabinete em que funcionava a direção da casa.
Vendo duas cadeiras vagas, junto a pequena mesa de trabalho, meu colega consultou, com o evidente intuito de completar a lição:
— Creio que os móveis sob nossa vista são utilizados por auxiliares da administração do museu… Se nos sentarmos neles, poderemos entrar em relação com as pessoas que habitualmente os ocupam?
— Sim, se desejarmos esse tipo de experiência — informou o orientador.
— E em nos referindo aos encarnados? prosseguiu Hilário. — Qualquer pessoa, em se servindo de objetos pertencentes a outros, tais como vestuários, leitos ou adornos, pode sentir os reflexos daqueles que os usaram?
— Perfeitamente. Contudo, para que os registrem devem ser portadores de aguçada sensibilidade psíquica. As marcas de nossa individualidade vibram onde vivemos e, por elas, provocamos o bem ou o mal naqueles que entram em contato conosco.
— E tudo o que observamos é mediunidade?!…
— Sim, apesar de os fatos dessa ordem serem arrolados, por experimentadores do mundo científico, sob denominações diversas, entre elas a “criptestesia pragmática”, a “metagnomia tátil”, a “telestesia”.
E, tomando-nos a dianteira para o retorno à via pública, rematou:
— Em tudo, vemos integração, afinidade, sintonia… E de uma coisa não tenhamos dúvida: através do pensamento, comungamos uns com os outros, em plena vida universal.
[ — O fenômeno da impregnação de vibrações mentais em objetos inanimados é hoje, de uma certa forma, mais facilmente compreensível se o compararmos com a gravação de imagens e sons em mídias magnéticas.]