Ação e Reação

Capítulo II

Comentários do Instrutor



O recinto a que demandáramos era confortável e amplo; mas a expressiva assembleia que o lotava era, em grande parte, desagradável e triste.

Ao clarão de vários lampadários, podíamos observar, do largo estrado em que nos instaláramos com o orientador, os semblantes disformes que, em maioria, ali se congregavam.

Aqui e ali se acomodavam assistentes e enfermeiros, cuja posição espiritual era facilmente distinguível pela presença simpática com que encorajavam os sofredores.

Calculei em duas centenas, aproximadamente, o número de enfermos que à nossa frente se reuniam.

Mais de dois terços apresentavam deformidades fisionômicas.

Quem terá visitado um sanatório de moléstias da pele, analisando em conjunto os doentes mais graves, poderá imaginar o que fosse aquele agregado de almas silenciosas e dificilmente reconhecíveis.

Notando a quase completa quietude ambiente, indaguei de Druso quanto à tempestade que se contorcia lá fora, informando-me o generoso amigo que nos achávamos em salão interior da cidadela, exteriormente revestido de abafadores de som.

Integrando a equipe dirigente, Hilário e eu passamos a conhecer companheiros agradáveis e distintos, os Assistentes Silas e Honório e a irmã Celestina, três dos mais destacados assessores na condução daquela morada socorrista.

Não nos foi possível qualquer entendimento, além das saudações comuns, porque o orientador, após indicar um dos enfermos para proferir a oração de início, que ouvimos emocionadamente, tomou a palavra e falou com naturalidade, qual se estivesse conversando numa roda de amigos:

— Irmãos, continuemos hoje em nosso comentário acerca do bom ânimo.

Não me creiam separado de vocês por virtudes que não possuo.

A palavra fácil e bem posta é, muita vez, dever espinhoso em nossa boca, constrangendo-nos à reflexão e à disciplina.

Também sou aqui um companheiro à espera da volta.

A prisão redentora da carne acena,-nos ao regresso.

É que o propósito da vida trabalha em nós e conosco, através de todos os meios, para guiar-nos à perfeição. Cerceando-lhe os impulsos, agimos em sentido contrário à Lei, criando aflição e sofrimento em nós mesmos.

No Plano físico, muitos de nós supúnhamos que a morte seria ponto final aos nossos problemas, enquanto outros muitos se acreditavam privilegiados da Infinita Bondade, por haverem abraçado atitudes de superfície, nos templos religiosos.

A viagem do sepulcro, no entanto, ensinou-nos uma lição grande e nova — a de que nos achamos indissoluvelmente ligados às nossas próprias obras.

Nossos atos tecem asas de libertação ou algemas de cativeiro, para a nossa vitória ou nossa perda.

A ninguém devemos o destino senão a nós próprios.

Entretanto, se é verdade que nos vemos hoje sob as ruínas de nossas realizações deploráveis, não estamos sem esperança.

Se a sabedoria de nosso Pai Celeste não prescinde da justiça para evidenciar-se, essa mesma justiça não se revela sem amor.

Se somos vítimas de nós mesmos, somos igualmente beneficiários da Tolerância Divina, que nos descerra os santuários da vida para que saibamos expiar e solver, restaurar e ressarcir.

Na retaguarda, aniquilávamos o tempo, instilando nos outros sentimentos e pensamentos que não desejávamos para nós, quando não estabelecíamos pela crueldade e pelo orgulho vasta sementeira de ódio e perseguição.

Com semelhantes atitudes, porém, levantamos em nosso prejuízo a desarmonia e o sofrimento, que nos sitiam a existência, quais inexoráveis fantasmas.

O pretérito fala em nós com gritos de credor exigente, amontoando sobre as nossas cabeças os frutos amargos da plantação que fizemos… Daí, os desajustes e enfermidades que nos assaltam a mente, desarticulando-nos os veículos de manifestação.

Admitíamos que a transição do sepulcro fosse lavagem miraculosa, liberando-nos o Espírito, mas ressuscitamos no corpo sutil de agora com os males que alimentamos em nosso ser.

Nossas ligações com a retaguarda, por essa razão, continuam vivas. Laços de afetividade mal dirigida e cadeias de aversão aprisionam-nos, ainda, a companheiros encarnados e desencarnados, muitos deles em desequilíbrios mais graves e constringentes que os nossos.

Nutrindo propósitos de regeneração e melhoria, somos hoje criaturas despertando entre o Inferno e a Terra, que se afinam tão entranhadamente um com o outro, como nós e nossos feitos.

Achamo-nos imbuídos do sonho de renovação e paz, aspirando à imersão na 5ida Superior, entretanto, quem poderia adquirir respeitabilidade sem quitar-se com a Lei?

Ninguém avança para a frente sem pagar as dívidas que contraiu.

Como trilhar o caminho dos anjos, de pés amarrados ao carreiro dos homens, que nos acusam as faltas, compelindo-nos a memória ao mergulho nas sombras?!…

Druso fez ligeira pausa e, depois de significativo gesto, como que indicando a torturada paisagem exterior, prosseguiu em tom comovente:

— Em derredor do nosso pouso de trabalho e esperança, alongam-se flagelos infernais…

Quantas almas petrificadas na rebelião e na indisciplina aí se desmandam no aviltamento de si mesmas?

O Céu representa uma conquista, sem ser uma imposição.

A Lei Divina, alicerçada na justiça indefectível, funciona com igualdade para todos.

Por esse motivo, nossa consciência reflete a treva ou a luz de nossas criações individuais.

A luz, aclarando-nos a visão, descortina-nos a estrada. A treva, enceguecendo-nos, agrilhoa-nos ao cárcere de nossos erros.

O Espírito em harmonia com os Desígnios Superiores descortina o horizonte próximo e caminha, corajoso e sereno, para diante, a fim de superá-lo; no entanto, aquele que abusa da vontade e da razão, quebrando a corrente das bênçãos divinas, modela a sombra em torno de si mesmo, insulando-se em pesadelos aflitivos, incapaz de seguir à frente.

Definindo, assim, a posição que ,nos é peculiar, somos almas entre a luz das aspirações sublimes e o nevoeiro dos débitos escabrosos, para quem a reencarnação, como recomeço de aprendizado, é concessão da Bondade Excelsa que nos cabe aproveitar, no resgate imprescindível.

Em verdade, por muito tempo ainda sofreremos os efeitos das ligações com os nossos cúmplices e associados de intemperança e desregramento, mas, dispondo de novas oportunidades de trabalho no campo físico, é possível refazer o destino, solvendo escuros compromissos, e, sobretudo, promovendo novas sementeiras de afeição e dignidade, esclarecimento e ascensão.

Sujeitando-nos às disposições das leis que prevalecem na esfera carnal, teremos a felicidade de reencontrar velhos inimigos, sob o véu de temporário esquecimento, facilitando-se-nos, assim, a reaproximação preciosa.

Dependerá, desse modo, de nós mesmos, convertê-los em amigos e companheiros, de vez que, padecendo-lhes a incompreensão e a antipatia, com humildade e amor, sublimaremos nossos sentimentos e pensamentos, plasmando novos valores de vida eterna em nossas almas.

Ante a pausa que o Instrutor imprimiu às suas considerações, voltei-me para a assembleia que o escutava, suspensa nas flamas de elevada meditação.

Alguns dos enfermos ali enfileirados tinham lágrimas nos olhos, enquanto outros mostravam o semblante extático dos que se conservam entre o consolo e a esperança.

Druso, que também sentia o efeito das suas palavras nos ouvintes reconfortados, continuou:

— Somos Espíritos endividados, com a obrigação de dar tudo, em favor da nossa renovação. Comecemos a articular ideias redentoras e edificantes, desde agora, favorecendo a reconstrução do nosso futuro.

Disponhamo-nos a desculpar os que nos ofenderam, com o sincero propósito de rogar perdão às nossas vítimas.

Cultivando a oração com serviço ao próximo, reconheçamos na dificuldade o gênio bom que nos auxilia, a desafiar-nos ao maior esforço.

Reunindo todas as possibilidades ao nosso alcance, espalhemos, nas províncias de treva e dor que nos rodeiam, o socorro da prece e o concurso do braço fraternal, preparando o regresso ao campo de luta — o Plano carnal —, em que o Senhor pela bênção de um corpo novo nos ajudará a esquecer o mal e replantar o bem.

Para nós, herdeiros de longo passado culposo, a esfera das formas físicas simboliza a porta de saída do inferno que criamos.

Superando nossas enfermidades morais e extinguindo antigas viciações, no triunfo sobre nós mesmos, acrisolaremos nossas qualidades de espírito, a fim de que, em nos elevando, possamos estender mãos amigas aos que jazem na lama do infortúnio.

Nós, que temos errado nas sombras, atormentados viajores do sofrimento, nós, que conhecemos o deserto de gelo e o suplício do fogo na alma opressa, poderíamos, acaso, encontrar maior felicidade que a de subir alguns degraus no Céu, para descer, com segurança, aos infernos, de modo a salvar aqueles que mais amamos, perdidos hoje quais nos achávamos ontem, nas furnas da miséria e da morte?

Dezenas de circunstantes entreolhavam-se, admirados e felizes.

A essa altura, mostrava-se o mentor nimbado de doce claridade a se lhe irradiar do tórax em cintilações opalinas.

Fitei meu companheiro e, reparando-lhe os olhos enevoados de pranto, busquei sufocar minha própria comoção.

O Instrutor não falava como quem ensinasse, teorizando. Estampava na voz a inflexão de quem trazia uma dor imensamente sofrida e dirigia-se aos companheiros humildes, ali congregados, quais se lhe fossem, todos eles, filhos queridos ao coração.

— Supliquemos ao Senhor — prosseguiu, comovidamente — nos conceda forças para a vitória —, vitória que nascerá em nós para a grande compreensão. Somente assim, ao preço de sacrifício no reajuste, conseguiremos o passaporte libertador!…


Calando-se o dirigente da casa, levantou-se da assembleia uma senhora triste, e, caminhando até nós, dirigiu-se a ele em lágrimas:

— Meu amigo, releve-me a intromissão. Quando partirei para o campo terrestre com meu filho? Tanto quanto posso, visito-o nas trevas… Não me vê, nem me escuta… Sem se dar conta da miséria moral a que se acolhe, continua autoritário e orgulhoso… Paulo, no entanto, não é para mim um inimigo… é um filho inolvidável… Ah! como pode o amor contrair tamanho débito?!…

— Sim… — exclamou Druso, reticencioso —, o amor é a força divina que frequentemente aviltamos. Tomamo-la pura e simples da vida com que o Senhor nos criou e com ela inventamos o ódio e o desequilíbrio, a crueldade e o remorso, que nos fixam indefinidamente nas sombras… Quase sempre, é mais pelo amor que nos enredamos em pungentes labirintos no tocante à Lei… amor mal interpretado… mal conduzido…

Como se voltasse de rápida fuga ao seu mundo interior, acendeu novo brilho no olhar, afagou as mãos da torturada mulher e anunciou:

— Esperamos possa você reunir-se, em breve, ao seu rapaz na valiosa empresa do resgate. Pelos informes de que dispomos, não se demorará ele nas inibições em que ainda se encontra. Tenhamos serenidade e confiança…

Enquanto a pobrezinha se retirava com um sorriso de paciência, o Instrutor ponderou conosco:

— Nossa irmã possui excelentes qualidades morais, mas não soube orientar o sentimento materno para com o filho que jaz nas sombras. Instilou nele ideias de superioridade malsã, que se lhe cristalizaram na mente, favorecendo-lhe os acessos de rebeldia e brutalidade. Transformando-se em tiranete social, o infeliz foi fisgado, sem perceber, ao pântano tenebroso, em seguida à morte do corpo, e a desventurada genitora, sentindo-se responsável pela sementeira de enganos que lhe arruinou a vida, hoje se esforça por reavê-lo.

— E realizará semelhante propósito? — perguntou Hilário com interesse.

— Não podemos duvidar — replicou nosso amigo, convincente.

— Mas…. Como?

— Nossa amiga, que amoleceu a fibra da responsabilidade moral no excesso de reconforto, voltará à reencarnação em círculo paupérrimo, recebendo aí, quando novamente mulher jovem, então desprotegida, o filho que ela própria complicou nas antigas fantasias de mulher fútil e rica. Ser-lhe-á, na carência de recursos econômicos, a inspiradora de heroísmo e coragem, regenerando-lhe a visão da vida e purificando-lhe as energias na forja da dificuldade e do sofrimento.

— E vencerão no difícil tentame? — indagou meu companheiro, de novo, evidentemente intrigado.

— A vitória é a felicidade que todos lhes desejamos.

— E se perderem na batalha projetada?

— Decerto — falou o orientador com expressiva inflexão de voz — regressarão em piores condições aos precipícios que nos circundam…

Depois de um sorriso triste, Druso ajuntou:

— Cada um de nós, os Espíritos endividados, em renascendo na carne, transporta consigo para o ambiente dos homens uma réstia do céu que sonha conquistar e um vasto manto do inferno que plasmou para si mesmo. Quando não temos força suficiente para seguir ao encontro do Céu que nos confere oportunidades de ascensão até ele, retornamos ao inferno que nos fascina à retaguarda…

Nosso anfitrião ia continuar, no entanto, um velhinho cambaleante veio até nós e disse-lhe humildemente:

— Ah! meu Instrutor, estou cansado de trabalhar nos tropeços daqui!… Há vinte anos carrego doentes loucos e revoltados para este asilo!… Quando terei meu corpo na Terra para descansar no esquecimento da carne, aos pés dos meus?…

Druso afagou-lhe a cabeça e respondeu, comovido:

— Não desfaleça, meu filho! Console-se! Também nós, faz muitos anos, estamos presos a esta casa, por injunções de nosso dever. Sirvamos com alegria. O dia de nossa mudança será determinado pelo Senhor.

Calou-se o ancião, de olhos tristes.


Logo após, o orientador fez vibrar pequena campainha e a assembleia se colocou à vontade para a livre conversação.

Um moço de expressão simpática abeirou-se de nós e, depois de saudar-nos afetuosamente, observou, inquieto:

— Instrutor amigo, ouvindo-lhe a palavra educativa e ardente, fico a cismar nos enigmas da memória… Por que este olvido para cá da morte física? Se tive existências outras, antes da última, cujos erros agora procuro reparar, por que razão me não lembro delas? Antes de partir para o campo físico, na romagem que me fixou o nome pelo qual hoje respondo, devo ter deixado bons amigos na vida espiritual, assim como alguém que, viajando na Terra de um continente para outro, comumente deixa no cais afeições queridas que não o esquecem… Como justificar a amnésia que me não permite recordar os companheiros que devo possuir a distância?

— Bem —, ponderou o interpelado, sabiamente —, os Espíritos que na vida física atendem aos seus deveres com exatidão, retomam pacificamente os domínios da memória, tão logo se desenfaixam do corpo denso, reentrando em comunhão com os laços nobres e dignos que os aguardam na 5ida Superior, para a continuidade do serviço de aperfeiçoamento e sublimação que lhes diz respeito; contudo, para nós, consciências intranquilas, a morte no veículo carnal não exprime libertação. Perdemos o carro fisiológico, mas prosseguimos atados ao pelourinho invisível de nossas culpas; e a culpa, meu amigo, é sempre uma nesga de sombra eclipsando-nos a visão. Nossas faculdades mnemônicas, relativamente às nossas quedas morais, assemelham-se, de certo modo, às conhecidas chapas fotográficas, as quais, se não forem convenientemente protegidas, sempre se inutilizam.

O mentor fez breve pausa em suas considerações e continuou:

— Imaginemos a mente como sendo um lago. Se as águas se acham pacificadas e límpidas, a luz do firmamento pode retratar-se nele com segurança. Mas, se as águas vivem revoltas, as imagens se perdem ao quebro das ondas móveis, principalmente quando o lodo acumulado no fundo aparece à superfície. A rigor, somos aqui, nas zonas inferiores, seres humanos muito distantes da renovação espiritual, não obstante desencarnados.

O consulente escutava-o, visivelmente surpreendido, e dispunha-se a formular interrogações novas, ante a pausa que se fizera, mas Druso, antecipando-se-lhe à palavra, acentuou em tom amigo:

— Observe a realidade em si mesmo. A despeito dos estudos a que presentemente se confia e apesar das sublimes esperanças que lhe ocupam agora o coração, seu pensamento vive preso aos sítios e paisagens de que, pela morte, supostamente se desvencilhou. Em pleno caminho da espiritualidade, você se identifica com as escuras reminiscências que permanecem ao longe, no tempo: o lar, a família, os compromissos imperfeitamente solucionados… Tudo isso é lastro, inclinando a sua mente para o mundo físico, onde nossos débitos reclamam sacrifício e pagamento.

É verdade, é verdade… — suspirou o rapaz, compungidamente.

Mas o Instrutor prosseguiu:

— Sob a hipnose nossa memória pode regredir e recuperar-se por momentos. Isso, porém, é um fenômeno de compulsão… E em tudo convém satisfazer à sabedoria da Natureza. Libertemos o espelho da mente que jaz sob a lama do arrependimento, do remorso e da culpa, e esse espelho divino refletirá o sol com todo o esplendor de sua pureza.

Druso ia continuar, mas a chegada de um colaborador impeliu-nos à conclusão do assunto.