Findo o repouso a que nos dedicáramos, Silas, por inspiração do dirigente da casa, veio convidar-nos a rápido passeio pelos arredores.
Druso, aliás, com semelhante lembrete, atendia-nos ao propósito de algo estudar sobre os princípios de causa e efeito, nas criaturas recém-desencarnadas.
Sabíamos que a morte do corpo denso era sempre o primeiro passo para a colheita da vida e, por isso, não ignorávamos que o ambiente era dos mais favoráveis à nossa investigação construtiva, porque o imenso Umbral, à saída do campo terrestre, vive repleto de homens e mulheres que vararam a grande fronteira, em plena conexão com a experiência carnal.
Hilário e eu, alegremente, pusemo-nos no encalço do companheiro que, transpondo conosco largo portão de acesso ao exterior, nos disse, bem-humorado, decerto ciente de nossos objetivos:
— Sem qualquer dúvida para nós, que voltamos recentemente da Terra, as províncias infernais, muito mais do que as celestes, são adequadas às nossas pesquisas sobre a lei de causa e efeito, de vez que o crime e a expiação, o desequilíbrio e a dor fazem parte de nossos conhecimentos mais simples nas lides cotidianas, ao passo que a glória e o regozijo angélicos representam estados superiores de consciência que nos transcendem a compreensão.
E, espraiando o olhar pelos quadros tristes em derredor, acrescentou, reconduzindo a frase a comovente inflexão:
— Estamos psiquicamente mais perto do mal e do sofrimento… Em razão disso, entendemos sem qualquer discrepância os problemas aflitivos que se multiplicam aqui…
À medida que nos afastávamos, empreendíamos mais vasta penetração na sombra densa, a espessar-se cada vez mais, alumiada, porém, aqui e ali, por tochas mortiças, como se a luz, nos sítios em torno, lutasse terrivelmente para nutrir-se e sobreviver.
Soluços e gritos, imprecações e blasfêmias emergiam da treva.
Compreendemos de relance que o espaço ocupado pela instituição era de forma retangular e que o terreno sob nosso exame se lhe localizava à retaguarda, à maneira de enorme povoação extramuros.
Percebendo-nos a curiosidade e o interesse, o Assistente veio ao encontro de nossas indagações, explicando:
— Achamo-nos efetivamente na zona posterior ao nosso instituto, em larga faixa superlotada de Espíritos conturbados e sofredores.
Hilário, que não se via menos surpreendido que eu, observou sem rebuços:
— Mas, toda essa gente parece relegada à intempérie. Não seria razoável que a Mansão se estendesse, abarcando-a com o seu amparo e defendendo-a com seus muros?
— Logicamente — respondeu Silas sem alterar-se —, esse plano é o mais desejável; entretanto, estamos à frente de compacta multidão de almas em reajuste. Este imenso conglomerado de criaturas sem o corpo de carne começou num grupo de seres desencarnados que clamavam pelo socorro da Mansão sem os necessários requisitos para recolher-lhe a assistência. Firme na execução do programa que lhe assiste, nossa casa não lhes podia abrir as portas de imediato, em face do desespero e da revolta em que se comprazem, mas também não desdenhava a possibilidade de prestar-lhes a ajuda possível, fora do campo de ação em que vive sediada. Iniciou-se, dessa forma, a presente organização, que, contra a nossa vontade, é um abismo de sofrimento. Aqui se reúnem, de maneira indiscriminada, milhares de entidades, vítimas dos seus pensamentos desvairados e sombrios. Quando superam a crise de perturbação ou de angústia de que são portadoras, o que pode perdurar por dias, meses ou anos, são trazidas à nossa instituição que, tanto quanto possível, evita abrir-se às consciências ainda positivamente encravadas na revolta sistemática.
Talvez porque evocássemos em silêncio os episódios da véspera, lembrando os desencarnados acolhidos no grande asilo, nosso companheiro acrescentou:
— Vocês acompanharam ontem o socorro prestado a um irmão infeliz, seviciado nas trevas, e viram a chegada de sofredores arrebatados à carne, em libertação recentíssima. Contudo, entre os beneficiados, viram Espíritos inconscientes e devedores, mas não insensatos e rebelados.
Ante esta observação que, de alguma sorte, nos asserenava a mente inquieta, Hilário indagou:
— E este ambiente, assim tumultuado pelo infortúnio, conta com o amparo de que necessita?
— Sim — aclarou nosso amigo —, muitas criaturas recuperadas na Mansão aceitam aqui preciosas tarefas de auxílio, incumbindo-se da assistência fraterna, em largos setores desta região torturada. Melhoradas lá, trazem para aqui as bênçãos recolhidas, transformando-se em valiosos elementos de serviço de ligação. Através delas, a administração do nosso instituto atende a milhares de consciências necessitadas e sabe com segurança quais os irmãos sofredores que se fazem dignos de acesso a nossa casa, após a transformação gradual a que se ajustam. Espalhando-se nos campos de sombra, em pequenos santuários domésticos, aqui continuam a própria restauração, aprendendo e servindo.
— Entretanto — continuou Hilário, curioso —, tão infortunada colônia de almas em desajuste não sofrerá o domínio das Inteligências perversas, quais as que vimos ontem no lado oposto a estes sítios?
— Sim —, os assaltos dessa ordem são aqui constantes e inevitáveis, principalmente em torno das entidades que largaram cúmplices bestializados em antros infernais ou em núcleos de atividades terrestres. Em tais casos, as vítimas de semelhantes feras humanas desencarnadas padecem longos e inenarráveis suplícios, através da fascinação hipnótica de que muitos gênios do mal são cultores exímios.
E, depois de ligeira pausa, Silas acentuou:
— São esses alguns dos fenômenos de flagelação compreensível que alguns místicos do mundo, em desdobramento mediúnico, no reino das trevas, classificaram como sendo vastação purificadora. Para eles, as almas culpadas, depois da morte, experimentam horríveis torturas por parte dos demônios aclimatados nas sombras.
As informações do Assistente, casadas aos gemidos e lamentações que ouvíamos sem cessar, impunham-nos desagradável impressão.
Foi por isso talvez que Hilário, penosamente tocado pelos gritos em torno, interrogou, surpreendido:
— Mas por que diz você flagelação compreensível?
E, num desabafo:
— Acha justo que tanta gente aqui se aglutine em semelhante desolação?
Silas sorriu, triste, e obtemperou:
— Compreendo-lhe o pesar. Indiscutivelmente, tanta dor reunida não seria justa se não viesse de quantos preferiram no mundo o trato diário com a injustiça. Não é claro, porém, que todos venhamos a colher o fruto da plantação que nos pertence? Na mesma leira de terra dadivosa e neutra, quem acalenta a urtiga recolhe a urtiga que fere, e quem protege o jardim tem a flor que perfuma. O solo da vida é idêntico para nós todos. Não encontraremos aqui neste imenso palco de angústia almas simples e inocentes, mas sim criaturas que abusaram da inteligência e do poder, e que, voluntariamente surdas à prudência, se extraviaram nos abismos da loucura e da crueldade, do egoísmo e da ingratidão, fazendo-se temporariamente presas das criações mentais, insensatas e monstruosas, que para si mesmas teceram.
Nossa conversação foi interrompida de imediato, à frente de pequena casa a confundir-se com o nevoeiro, de cujo interior brotava reconfortante jorro de luz.
Cães enormes que podíamos divisar cá fora, na faixa de claridade bruxuleante, ganiam de estranho modo, sentindo-nos a presença.
De súbito, um companheiro de alto porte e rude aspecto apareceu e saudou-nos da diminuta cancela, que nos separava do limiar, abrindo-nos passagem.
Silas no-lo apresentou, alegremente.
Era Orzil, um dos guardas da Mansão, em serviço nas sombras.
A breves instantes, achávamo-nos na intimidade de pouso tépido.
Aos ralhos do guardião, dois dos seis grandes cães acomodaram-se junto de nós, deitando-se-nos aos pés. Orzil era de constituição agigantada, figurando-se-nos um urso em forma humana.
No espelho dos olhos límpidos mostrava sinceridade e devotamento.
Tive a nítida ideia de que éramos defrontados por um penitenciário confesso, a caminho de segura regeneração.
Na sala estreita e simples, alinhavam-se alguns bancos e, acima deles, destacava-se um nicho ovalado, em cujo bojo havia uma cruz tosca, alumiada por uma candeia estruturada em forma de concha.
Afastou-se Orzil para sossegar os grandes animais menos domesticados, no interior da choupana, e, enquanto isso, o Assistente informou-nos:
— É um amigo de cultura ainda escassa que se comprometeu em delitos lamentáveis no mundo. Sofreu muito sob o império de antigos adversários, mas presentemente, após longo estágio na Mansão, vem prestando valioso concurso nesta vasta região em que o desespero se refugia. É ajudado, ajudando. E, servindo com desinteresse e devoção fraternal, não somente se reeduca, como também suavizará o campo da nova existência que o aguarda na Esfera carnal, pelas simpatias que vem atraindo em seu favor.
— Vive só? — perguntei, mal sopitando a curiosidade.
— Dedica-se a meditações e estudos de natureza pessoal — comentou Silas, paciente —, mas, como acontece a muitos outros auxiliares, tem consigo algumas celas ocupadas por entidades em tratamento, prestes a serem recebidas em nossa instituição.
Nesse ponto do entendimento, Orzil voltou até nós e o Assistente interpelou-o, com bondade:
— Como passamos de serviço?
— Muito trabalho, chefe — respondeu ele, humilde. — A tempestade de ontem trouxe imensa devastação. Creio ter havido muito sofrimento nos pântanos.
Percebendo que se referia aos precipícios abismais em que se debatiam milhares de almas infelizes e conturbadas, Hilário perguntou:
— E não será possível atingir semelhantes lugares para aliviar a quem padece?
Nosso novo amigo esboçou dolorosa carantonha de tristeza e resignação, ajuntando:
— Impossível…
Como quem se punha em socorro do companheiro, Silas aduziu:
— Os que se agitam nestas furnas jazem, de modo geral, quase sempre extremamente revoltados e, na insânia a que se entregam, fazem-se verdadeiros demônios de insensatez. É necessário se disponham à conformação clara e pacífica para que, ainda mesmo semi-inconscientes, consigam acolher com proveito o auxílio que se lhes estende aos corações.
E como se quisesse passar à demonstração do que asseverava, convidou-nos a inspecionar as celas próximas.
— Quantos doentes agora internados?
Orzil, atencioso, respondeu sem titubear:
— Temos três amigos em franca situação de inconsciência.
Depois de alguns passos, ouvimos gritaria estentórica.
As acomodações reservadas aos enfermos jaziam ao fundo, à maneira de largos boxes de confortável cavalariça. Essa é a figura mais adequada à nossa tarefa descritiva, porque a construção em si denunciava rusticidade e segurança, naturalmente adstrita aos objetivos de contenção.
À medida que nos acercávamos do refúgio, desagradável odor nos afetava as narinas.
Respondendo-nos à inquirição íntima, o Assistente salientou:
— Vocês não ignoram que todas as criaturas vivem cercadas pelo halo vital das energias que lhes vibram no âmago do ser e esse halo é constituído por partículas de força a se irradiarem por todos os lados, impressionando-nos o olfato, de modo agradável ou desagradável, segundo a natureza do indivíduo que as irradia. Assim sendo, qual ocorre na própria Terra, cada entidade aqui se caracteriza por exalação peculiar.
— Sim, sim… — confirmamos Hilário e eu, simultaneamente.
Entretanto, o cheiro alarmante de carne em decomposição era para nós, ali, um acontecimento excepcional.
Silas percebeu-nos a estranheza e endereçou interrogativo olhar ao encarregado daquele oratório de purgação, o qual informou, presto:
— Temos conosco o irmão Corsino, cujo pensamento continua enrodilhado ao corpo sepulto, de maneira total. Enredado à lembrança dos abusos a que se entregou na carne, ainda não conseguiu desvencilhar-se da lembrança daquilo que foi, trazendo a imagem do próprio cadáver à tona de todas as suas recordações.
Silas não teceu qualquer comentário novo, porque atingíamos, de chofre, o primeiro abrigo, cuja porta gradeada nos deixava contemplar, lá dentro, um homem envelhecido, de cabeça pendida entre as mãos e a clamar:
— Chamem meus filhos! chamem maus filhos…
— É o nosso irmão Veiga — disse Orzil, prestimoso. — Mantém fixa a ideia na herança que perdeu ao desencarnar: vasta quantidade de ouro e bens que passou à propriedade dos filhos, três rapazes que concorrem no mundo ao melhor e maior quinhão, prevalecendo-se, para isso, de juízes venais e rábulas inconsequentes.
Acostados agora aos varais da porta, Silas recomendou-nos observar com atenção mais detida o ambiente que formava a psicosfera do enfermo.
Efetivamente, de minha parte percebi quadros que surgiam e desapareciam, fugazes, semelhantes às figurações efêmeras que se desprendem, silenciosas, dos fogos de artifício.
Desses painéis que se avivavam e se apagavam ao mesmo tempo, transpareciam três jovens, cujas imagens passageiras vagueavam entre documentos esparsos, cédulas e cofres refertos de valores, como que pincelados no ar com tinta tenuíssima, que se adelgaçava e se recompunha, sucessivamente.
Compreendi que registrávamos as , criadas pelas reminiscências do nosso amigo que, decerto, na situação em que se nos apresentava, não podia, de momento, senão viver o seu drama íntimo, tal a insistência da fixação mental em que se encarcerava.
Amparado evidentemente pelas vibrações de auxílio que o Assistente lhe enviava, segundo percebi, esfregou os olhos como quem buscava liberar-se de garoa imperceptível e assinalou-nos a presença. Avançou de um salto para nós e, apoiando-se nas grades que nos separavam, gritou, dementado:
— Quem sois? Juízes? juízes?…
E derramou-se em lamúrias que nos tocavam o coração:
— Lutei por vinte e cinco anos para reaver a herança que me cabia por morte de meus avós… E, quando a vi nas mãos, a morte me arrebatou ao corpo, sem piedade… Não me resignei a essa injunção e permaneci em minha velha casa… Desejava, pelo menos, acompanhar a partilha do espólio que me interessava, mas meus rapazes amaldiçoaram-me a influência, impondo-me, a cada passo, frases venenosas e hostis… Não satisfeitos com as agressões mentais que me infligiam, começaram a perseguir minha segunda esposa, que lhes foi mãe ao invés de madrasta, administrando-lhe tóxicos por medicação inocente, até que a pobrezinha foi internada numa casa de loucos, sem esperança de recuperação… Tudo por causa do nosso rico dinheiro que os malandros querem pilhar… Diante de tal injustiça, pensei suplicar o favor dos seres que povoam as trevas, porque somente os gênios do mal devem ser os fiéis executores da grande vingança…
Tentou enxugar as lágrimas de desespero e acrescentou:
— Dizei-me!… por que motivo terei alimentado infelizes ladrões, julgando acariciar filhos de minhalma? Casei-me quando moço, acalentando sonhos de amor, e gerei espinheiros de ódio!…
E como a voz de Silas se fez ouvir, rogando calma, o infortunado vociferou, desabrido:
— Nunca! nunca perdoarei!… Recorri aos infernos sabendo que os santos me aconselhariam conformidade e sacrifício… Quero que os demônios torturem meus filhos, tanto quanto meus filhos me torturam…
Transformando o choro convulso em gargalhadas estridentes, passou a bradar:
— Meu dinheiro, meu dinheiro, exijo meu dinheiro! O Assistente voltou-se para Orzil e considerou, compadecido:
— Sim, por agora a situação de nosso amigo é demasiado complexa. Não pode ausentar-se da grade, sem prejuízo.
Deixamos o doente, imprecando contra nós, de punhos cerrados, e abeiramo-nos de outra cela.
Ante a palavra de Silas, que nos recomendava observar o quadro em foco, fitamos o novo enfermo, um homem profundamente triste, sentado ao fundo da prisão, de cabeça pendida entre as mãos e de olhos fixos em parede próxima.
Seguindo-lhe a atenção no ponto que concentrava os seus raios visuais, a modo de espelho invisível retratando-lhe o próprio pensamento, vimos larga tela viva em que se destacava enluarada rua de grande cidade, e, na rua, conseguimos distingui-lo no volante de um carro, perseguindo um transeunte bêbado, até matá-lo, sem compaixão.
Achávamo-nos diante de um homicida preso a constrangedores quadros mentais que o encerravam em punitivas recordações.
Notava-se-lhe a intraduzível angústia, entre o remorso e o arrependimento.
A leve chamado de Silas, despertou como fera roubada à quietação do sono.
Instintivamente precipitou-se sobre nós, num salto espetaculoso que a enxovia conteve, e bramiu:
— Não há testemunhas… Não há testemunhas!… Não fui eu quem atropelou o infeliz, não obstante o odiasse com razão… Que pretendem de mim? Denunciar-me? Covardes! Espreitavam, então, a rua morta?
Não respondemos.
Silas, após fitá-lo, compadecido, falou:
— Deixemo-lo. Está completamente enleado às recordações do crime que cometeu, crendo continuar, depois da morte, a escarnecer da justiça.
Hilário, estupefato, interferiu, ponderando:
— Naquele doente que vimos, cercado pela figura de três mancebos, e neste companheiro que contempla uma cena de morte…
Nosso amigo apreendeu-lhe o pensamento e completou-lhe a anotação, asseverando:
— Vimos dois irmãos infelizes, vivendo entre as imagens mantidas por eles mesmos, através da força mental com que as alimentam.
Nesse instante, alcançávamos o terceiro cubículo, em que um homem feridento esvurmava as feias chagas, usando as próprias unhas.
A atmosfera francamente pestilencial exigia enorme disciplina contra a eclosão de nossas náuseas. Assinalando-nos a presença, avançou para nós, clamando amargamente:
— Compadecei-vos de mim! Sois médicos? Atendei-me por amor de Deus! Vede os detritos em que me apoio!…
Voltei-me, de imediato, para o chão, seguindo-lhe os gestos, e notei, efetivamente, que o mísero se movimentava num montão de sujeira, coberto por filetes de sangue podre.
Somente depois de mais ampla atenção, averiguei que o quadro repugnante era constituído pelas emanações mentais do companheiro infeliz sob nossos olhos.
— Doutores! — continuou ele, em tom de súplica — há quem diga que roubei dos outros, a fim de satisfazer meus vícios no alcoice que eu frequentava… Mas é mentira, é mentira!… Juro-vos que morava no bordel por espírito de caridade… As mulheres desditosas requeriam defesa… Auxiliei-as quanto pude… Ainda assim, adquiri, junto delas, a enfermidade que me aniquilou o corpo físico e que ainda me empesta a respiração, convertendo-se aqui em meu próprio hálito!… Socorrei-me por quem sois!… Socorrei-me por quem sois!…
A repetição dos rogos, contudo, derramava-se em tom imperativo, como se as palavras humildes do petitório fossem apenas o disfarce de uma ordem tiranizante.
O Assistente convidou-nos à retirada e explicou:
— É um antigo e inveterado gozador que despendeu em prazeres inúteis largos recursos que lhe não pertenciam. Por muito tempo ainda, a mente dele oscilará entre a irritação e o desencanto, nutrindo o ambiente horrível de que se fez o fulcro desequilibrado.
De regresso ao tugúrio de Orzil, perguntei sem preâmbulos:
— Nossos irmãos doentes, desse modo, estarão segregados, até que se renovem?
— Perfeitamente — aclarou Silas, bondoso.
— E que devem fazer para atingir a melhora necessária? — indagou Hilário com insofreável assombro.
Nosso amigo sorriu e obtemperou:
— O problema é de natureza mental. Modifiquem as próprias ideias e modificar-se-ão.
Entregou-se a ligeira pausa, mostrou novo brilho no olhar percuciente e acentuou com segurança:
— Isso, porém, não é tão fácil. Consagram-se vocês, presentemente, a estudos especiais dos princípios de causa e efeito. Fiquem pois sabendo que nossas criações mentais preponderam fatalmente em nossa vida. Libertam-nos quando se enraízam no bem que sintetiza as Leis Divinas, e encarceram-nos quando se firmam no mal, que nos expressa a delinquência responsável, enleando-nos por essa razão ao visco sutil da culpa. Afirma velho aforismo popular na Terra que “o criminoso volta ao local do crime”. Daqui podemos asseverar que, mesmo desfrutando a possibilidade de ausentar-se da paisagem do crime, o pensamento do criminoso está preso ao ambiente e à própria substância da falta cometida.
E, reparando em nossa perplexidade, acrescentou:
— Recordemos, ainda, o pensamento, atuando à feição de onda, com velocidade muito superior à da luz, e lembremo-nos de que toda mente é dínamo gerador de força criativa. Ora, sabendo que o bem é expansão da luz e que o mal é condensação da sombra, quando nos transviamos na crueldade para com os outros, nossos pensamentos, ondas de energia sutil, de passagem pelos lugares e criaturas, situações e coisas que nos afetam a memória, agem e reagem sobre si mesmos, em circuito fechado, e trazem-nos, assim, de volta, as sensações desagradáveis, hauridas ao contato de nossas obras infelizes. Estudamos três tipos de almas que deixaram na existência última somente quadros tristes e lamentáveis, nos quais não dispõem de atenuantes que lhes empalideçam as faltas indiscutíveis. Os filhos do nosso amigo que sofre a fixação de usura não receberam dele quaisquer recursos de educação dignificante que os habilitem a ajudá-lo, quando visitados pelas ondas do pensamento paternal, que voltam ao centro de origem carregadas pelos princípios mentais de ódio e egoísmo dos jovens litigantes. Nosso irmão que padece a fixação de remorso, não tendo expiado nos cárceres da justiça humana o crime que perpetrou deliberadamente, recolhe, de retorno, as ondas de pensamento que emite, sem qualquer auxílio que lhe amenize o arrependimento doloroso; e o nosso companheiro que se detém no vício reabsorve as ondas de seu próprio campo mental, acumuladas de fatores deprimentes, que a elas se incorporam nos lugares por onde passam, restituídas a ele mesmo com multiplicados elementos de corrupção.
Diante de nosso espanto, o Assistente inquiriu:
— Compreenderam?
Sim, havíamos entendido…
Sob forte emoção, Hilário considerou:
— Agora percebo com mais clareza o benefício concreto da oração e da piedade, da simpatia e do socorro que, na Terra, deveríamos dispensar, sinceramente, aos chamados mortos…
— Sim, sim… — respondeu Silas, prestimoso todos estamos ligadas uns aos outros, na carne e fora da carne, e achamo-nos livres ou prisioneiros, no campo da experiência, segundo as nossas obras, através dos vínculos de nossa vida mental. O bem é a luz que liberta, o mal é a treva que aprisiona… Estudando as leis do destino, é preciso atentar para semelhantes realidades indefectíveis e eternas.
Calamo-nos, preocupados e meditativos.
Em razão disso, nosso regresso à Mansão, depois de breve repouso na choupana de Orzil, foi consagrado à meditação e ao silêncio, em torno das preciosas lições colhidas.