Sexo e destino

Capítulo V

Capítulo V



No entardecer do dia imediato, enquanto seguíamos de perto a crescente renovação íntima de Cláudio que, por algumas vezes, já conseguira se entender com Agostinho, adquirindo mais amplos recursos de cultura espírita, a filha de Aracélia repousava, sob o patrocínio de Moreira, que se reconfortava ao identificar o resultado compensador do próprio esforço. Ele mesmo, agora, compreendia que a moça se lhe afinava, com mais segurança, ao apoio fluídico. E regozijava-se com isso.

A Providência Divina abençoava o lavrador bisonho, propiciando-lhe a ventura de contemplar os grelos promissores das primeiras sementes do bem que ele plantava.

Se algo distante do posto, durante alguns minutos, a jovem, cujo corpo espiritual se revestia de inexprimível suscetibilidade, em vista do desgaste físico, passava a gemer, denotando sofrimento agravado, para calar-se, em súbita acalmia, tão logo o sustentador retomasse a posição.

Moreira sentia-se útil, orgulhava-se. Encontrava motivos para conversar conosco, permutando impressões. Solicitava esclarecimentos, a fim de entrar em processos mais eficazes de auxílio. Adquirira interesse para o trabalho. Assemelhava-se a um homem que houvesse debalde suspirado, muito tempo, pela condição de pai e, tendo achado uma criança, conseguira com ela ocupar o vazio do coração.

Cláudio, a seu turno, não se circunscrevia à própria transformação. Desdobrava-se por dispensar à filha todo o carinho e toda a assistência de que se via capaz.

O facultativo amigo trouxera pela manhã um neurologista. Falou-se em modificação do tratamento e na consequente internação da menina numa casa de saúde em Botafogo; entretanto, a peritonite desaconselhava a mudança rápida. Por essa razão, concordou-se na aplicação maciça de antibióticos, até que a melhora esperada autorizasse a medida.

O genitor não regateava cuidados, nem desencorajava qualquer providência tendente a socorrê-la, custasse o que custasse.

Chegada a noite, o irmão Félix veio até nós e, após felicitar Moreira pela tarefa que realizava, participou-nos a desencarnação de Dona Beatriz.

A esposa de Nemésio desligara-se, enfim, do corpo que o câncer combalira.

Verificada a estabilidade dos serviços em andamento, o instrutor convocou-nos a tomar-lhe o rumo, na direção dos Torres.

Seguimos.


De jornada, conquanto discreto, desabafou-se.

Preocupava-se por Marina. Indispensável protegê-la contra a obsessão começante.

Afastara-se Moreira; no entanto, permaneciam lá, no pátio interno, os arruaceiros e vampirizadores que ele contratara. Perseguidores gratuitos e infelizes que, inevitavelmente, trariam outros para tumultuar a vida mental da moça, comprometida pelo remorso.

Os termos e a inflexão de voz do irmão Félix acentuavam-lhe a grandeza de alma. Ele não via na filha de Dona Márcia a jovem corrompida que nós mesmos, em alegações destituídas de qualquer malícia, não hesitávamos enquadrar nas linhas da prostituição, nem lhe conferia certificado de aviltamento nas ideias recônditas. Reportava-se a ela, como quem menciona terra nobre que a desídia do cultivador entrega à serpente. Marina, na conceituação dele, era uma filha de Deus, credora de veneração e ternura. Confiava nela, esperaria o futuro.


Antes, porém, que as circunstâncias me exigissem algum pronunciamento, esbarramos com a moradia da família que a morte visitara.

Entramos atentos.

Lustres providos de luz intensa punham à mostra a reduzida assembleia que se habilitava ao velório.

Aqui e ali, frases convencionais, atiradas sem maior sentimento aos ouvidos do esposo e do filho da senhora desencarnada.

Nemésio e Gilberto não entremostravam grande pesar nas fisionomias cansadas e impassíveis. A moléstia prolongada no reduto doméstico estragara-lhes a resistência para a representação de peças sociais, mesmo singelas. Amarrotados pelas vigílias consecutivas, não ocultavam a própria desopressão. Referiam-se à morta, no feitio de um viajor atormentado que, de há muito, deveria ter ancorado no porto do extremo refrigério.

O invólucro abandonado por aquela alma boa e veneranda recolhia atenções especiais, para apresentar-se no catafalco de luxo, ao passo que ela mesma, inconsciente, se asilava nos braços de irmãs afetuosas, sob o olhar comovido de Neves e de outros familiares em carinhoso desvelo.

O irmão Félix, assumindo o comando, deu instruções.

Beatriz, que se preparara laboriosamente para aquela hora, seria conduzida, com presteza, à organização socorrista do plano espiritual, no próprio Rio, até que restaurasse as forças, de modo a seguir viagem.

Tudo harmonia nas disposições traçadas.

Entretanto, quando o triste retrato físico de Dona Beatriz foi trazido ao estrado de repouso que se lhe improvisara, Marina apareceu em pranto de compunção. Chorava, tocada de dor sincera e inexprimível. Parecia, naquela reunião de etiqueta, a única pessoa ligada por laços de amor à piedosa dama, que encerrava, calada e humilde, a derradeira página da existência naquela casa que a fortuna abrilhantava. Ao fitar aquele corpo hirto, caiu de joelhos, em lágrimas copiosas. Invejou aquela cujo último sorriso de complacência ali se estampava sereno, qual se estivesse satisfeita por deixá-la no lugar que ocupara, durante tantos anos, ao pé de um esposo que a enganara sempre.

— Ah! Dona Beatriz!… Dona Beatriz!…

As palavras soluçadas escapavam daquele peito juvenil, como se quisessem traçar uma longa confissão.

Acercamo-nos da moça, no propósito de auxiliá-la; entretanto, Félix considerou que o desafogo lhe faria bem.

Marina, fatigada de insônia e desgastada pela ação dos obsessores que lhe exauriam as forças, sentia medo.

Contemplava o envoltório descarnado de Dona Beatriz, através das lágrimas, refletindo nos segredos da morte e nos problemas da vida…

Se a alma sobrevivia ao corpo — pensava, inquieta —, decerto que a senhora Torres vê-la-ia agora sem o mínimo subterfúgio. Certificar-se-ia de que ela fora, ali, não a enfermeira espontânea e sim a mulher que lhe dominava o esposo e o filho…

Atemorizada, rogava-lhe entendimento, perdão.

Que diria aquela boca silenciosa para ela, se pudesse falar, depois de auscultar a verdade?!…

Beatriz, porém, naquele instante conduzida ao refazimento, jazia inacessível às complicações da sociedade terrestre. E, em lugar dela, era o próprio remorso que se lhe alteava na imaginação, acusando, acusando…

A mágoa da jovem provocava simpatia nos circunstantes e despertava, tanto em Nemésio quanto no filho, novos motivos de atração. À frente do choro pungente, ambos fitavam-na, enternecidos, exprimindo reconhecimento nos olhos, cada qual desejando nela a companheira ideal para casamento próximo, sem a menor suspeita, quanto às convicções um do outro.

Naquela mesma noite, assinalei a falta de Dona Beatriz no ambiente caseiro.

O afastamento da filha de Neves e dos amigos espirituais que lhe frequentavam a companhia deixara a vivenda qual praça desarmada de quaisquer recursos que lhe garantissem a ordem.

Transcorrido algum tempo sobre o velório em si, vagabundos desencarnados nele tiveram acesso livre.

O nível dos pensamentos descambou para a conversação libertina. Nem mesmo a dignidade que a morte infundia ao recinto foi acatada. Relatos jocosos irromperam, suplementados pela chacota dos próprios anedotistas. Um dos presentes comentou, entusiasta, os espetáculos debochados de que fora testemunha, em recente viagem ao estrangeiro, suscitando o interesse de vampirizadores que ouviam as narrações, seduzidos pela tentação de repeti-los, na versão deles próprios.

Não contentes, por fim, com os licores aristocráticos, desde muito guardados nos armários da família, beberrões encarnados e desencarnados impeliram Nemésio à encomenda telefônica de vinhos e uísques, rapidamente gorgolejados por gargantas sequiosas.

O irmão Félix, prevendo a leviandade, recomendara se aplicasse, à matrona desencarnada, recursos anestesiantes, a fim de que se lhe mantivesse o isolamento do licencioso festim, praticado em nome da solidariedade afetiva perante a morta.

Os derradeiros afeiçoados de Beatriz, no Plano espiritual, se retiraram, discretos, e nós mesmos não tivemos outro recurso senão largar a residência, alta madrugada, depois do socorro a Marina, relegando os despojos da nobre senhora às grossas nuvens de emanações alcoólicas que instalavam, por toda a habitação, atmosfera dificilmente respirável.


Somente no dia seguinte, acabados os funerais, voltei do hospital ao ninho dos Torres, onde a filha de Cláudio se demorava.

Telefonemas diversos, entre mãe e filha, examinavam a nova situação. Dona Márcia reclamava o regresso, Nemésio desejava que a secretária lhe amparasse a moradia. Ele próprio, em dado momento, chamou Dona Márcia pelo fio, solicitando-lhe concessões. Que Marina permanecesse orientando as servidoras que lhe atendiam a casa. Mais algumas semanas e tudo se aclararia satisfatoriamente.

A senhora Nogueira, honrada com a gentileza, não vacilava confiar. Aquiesceu lisonjeada, feliz. Em cada frase que o chefe lhe deitara de longe aos ouvidos, pressentia a aliança de Nogueiras e Torres pelo casamento entre os jovens.

Marina, entretanto, explorada nas próprias energias pelos agentes da perturbação que Moreira lhe pespegara, definhava no leito. Trancara-se no quarto. Doía-lhe a deslealdade que cultivara, incessantemente, diante da filha de Neves, culpava-se pelo desastre que arruinara Marita, a quem não tinha coragem de visitar ou rever. Ela que se vira, até então, vitoriosa em todas as partidas, sentia-se derrotada, à feição de contendor arredado da arena pela própria imperícia. Chorava. Ouvia vozes, declarava-se perseguida por vultos estranhos. Fugia de todos, enfadada, nervosa. Se recebia Nemésio ou Gilberto, caía em crise de pranto que os conselhos não removiam e nem os medicamentos conseguiam sedar.

Escoados cinco dias de apreensões, Nemésio telefonou para Dona Márcia, com mais clareza, rogando-lhe permissão para um entendimento pessoal, no Flamengo, na manhã seguinte. Informado de que o chefe da família Nogueira não poderia afastar-se do hospital, insistiu com a interlocutora para que lhe acolhesse a visita. Marina andava abatida. Tencionava levá-la a Petrópolis. Mudança de ares, renovação de paisagem. A menina tombara em prostração, à face dos sacrifícios que lhe exigira a esposa morta. Pretendia homenagear-lhe a dedicação, com a permanência de alguns dias no clima serrano, mas, para isso, estimaria ouvir a família, fazer planos.

Dona Márcia, aspirando a expor respeitabilidade familiar, indagou se Gilberto iria também, como que temendo acumpliciar-se em alguma ligação indesejável e prematura entre os jovens. Nemésio, porém, apaixonado bastante pela moça, não era capaz de penetrar a sutileza da esposa de Cláudio, que assim se exprimia no intuito de fazer-se passar, diante dele, por severa guardiã das virtudes domésticas; e a senhora Nogueira, aguardando Gilberto para genro e ignorando a intimidade entre a filha e Torres, pai, não atinava, em toda a extensão, com aquele efusivo atestado de garantia moral que Nemésio, automaticamente, lhe oferecia, pedindo-lhe confiança.

Estivesse tranquila. A moça seguiria exclusivamente com ele e uma governanta. Mais ninguém.

Dona Márcia louvou a medida, agradeceu.

Mesmo assim, a entrevista ficou marcada para o dia seguinte.


No momento aprazado, acompanhamos Nemésio ao Flamengo, como quem estuda ingrediente perigoso, antes de aditá-lo a processo curativo em andamento.

A recepcionadora não esqueceu particularidade alguma do bom-tom, à vista do luto em que os Torres haviam entrado.

Enfeites discretos na sala, hortênsias azuis, conjunto de peças em roxo para o café.

O negociante quedou agradavelmente surpreendido. Cumprimentando a anfitriã bem-apessoada num modelo de algodão transparente e suave, não sabia se a progenitora era uma segunda edição da filha ou se lhe cabia interpretar a filha por segunda edição dela.

Comodamente sentados, a palestra começou pela troca de sentimentos recíprocos. Pêsames pela morte de Dona Beatriz, pesar diante do acidente ocorrido em Copacabana. Moléstia de Marita, cansaço de Marina. Devotamento de Cláudio pela filha hospitalizada. Elogio a parentes. Apontamentos ao redor das aperturas da vida.

Dona Márcia, com requintes de apresentação, comentava todos os assuntos propostos, com aprumo de inteligência. Otimismo irradiante, finura de trato.

Nemésio, encantado, fumava e sorria, admirando-lhe a personalidade.

Conversa vai, conversa vem, a viagem a Petrópolis surgiu à tona e o diálogo mais vivo desenrolou-se entre aquela que o visitante esperava para sogra e aquele com quem a interlocutora não contava para genro.

— A senhora descanse — recomendava Torres, eufórico —, Marina seguirá em minha companhia, tudo em ordem. Creia que a mudança de ares é a terapêutica adequada. A pobrezinha merece repouso, excedeu-se em trabalho…

— Não tenho objeções — acentuou a genitora de Marina, estranhando o lume daqueles olhos percucientes que lhe investigavam as reações —; no entanto, o senhor sabe… Sou mãe. Além disso, tenho o marido ocupado com a outra filha que, apesar de adotiva, é para nós um pedaço do coração… Uma viagem, assim, à pressa…

— Oh! mas não se preocupe, de modo algum ; afinal, não sou mais uma criança..

— Sim, mas o senhor compreende… Enquanto sua esposa estava de cama, a permanência de minha filha em sua casa era justa, mas agora.. Sei que Marina não se encontra no convívio de estranhos, o senhor para nós não é somente o diretor da firma em que ela trabalha, o senhor para ela é também um amigo, um protetor, um pai…

— Muito mais do que isso!…

A senhora Nogueira estremeceu. Que projetava dizer o entrevistador com semelhante afirmação, diante das frases que articulara intencionalmente reticenciosas, aguardando que ele lhe fornecesse alguma esperança positiva no enlace próximo dos filhos? Sem querer, tornou a refletir, de escantilhão, nas suspeitas de Cláudio. Os passeios e divertimentos do abastado comprador de imóveis com a menina, que ela admitira fossem apenas motivos de consolação para um velho sofrido, assumiria o aspecto inconfessável que o marido lhes conferia? “Muito mais do que isso!…” Aquelas palavras, no tempero de ternura com que eram ditas, varavam-lhe a cabeça. Acordavam-na para a realidade que nem de leve pressentira. Ainda assim, não se dispunha a acreditar. Impossível! impossível que Marina…

Num átimo, empregou toda a sua curiosidade feminil no rico negociante, fisgando-o, de alto a baixo. Excessivamente humana para não examinar o jogo em que se encontrava sem conhecer exatamente a posição que lhe competia na defesa do próprio interesse, descobriu no viúvo, que supusera arcaico e patriarcal, atrativos marcantes, suscetíveis de impressionar favoravelmente qualquer moça desprevenida. Conhecia Gilberto em pessoa, classificando-o, aliás, como sendo um rapaz notável; entretanto, concluía, ali, que o velho ganharia do moço em qualquer torneio de sedução. Ela que se orgulhava de experiências avantajadas, em matéria de ligações afetivas, receava agora… Quis falar, inventando uma saída brilhante, mas engasgava-se. Os olhos conquistadores, na elegância daquele Brummel amadurecido e circunspecto, perturbavam-na. Tremeu, desconcertou-se.

Nemésio sorriu, atribuindo-lhe a emoção ao contentamento de mãe que se garante, quanto ao futuro da filha, e observou:

— A senhora não tem razões para afligir-se. Marina é credora de minha melhor consideração. Esteja convicta de que, nestes dois meses de trato diário, ela vem desfrutando a maior liberdade em minha casa. É hoje dona de nossa absoluta intimidade. Estou certo de que a senhora é dama de nossa época, sem clausura e sem preconceitos. Não se agastará, desse modo, ao saber que Marina em meu lar faz o que quer, gasta o que quer, dorme onde quer, sem que ninguém a incomode…

Dona Márcia escutou as alegações com deferência e inferiu que Nemésio lhe estimava a filha desinibida, liberta. Mesmo assim, ficou sem saber onde Torres, pai, diligenciava chegar, em se reportando à independência que Marina usufruía… Não lograva perceber em que situação o cavalheiro a desejava mais livre, se junto dele ou se junto do filho.. Hábil o suficiente para não se arriscar a qualquer apreciação capaz de arruinar-lhe vantagens futuras, recompôs as energias, esboçou um sorriso brejeiro e falou, afável:

— Bem, eu não tenho uma filha namorando, no tempo dos mártires; no entanto, gostaria que o senhor fosse mais explícito…

E, deixando-a quase a estatelar-se de pasmo, Nemésio copiou a doçura de um menino e confessou-lhe o próprio romance. Amava-lhe a filha, aspirava ao matrimônio. Enlutara-se, mas, em breves semanas, o tributo social desapareceria. Que ela, Dona Márcia, conservasse o segredo perante o marido. Rendera-se-lhe ao entendimento afetuoso e extravasara o coração, solicitando-lhe auxílio.

Ante aqueles olhos dominados de assombro, que ele interpretava por júbilo materno, relacionou parte da fortuna que amontoara. Enumerou seis dos melhores apartamentos que possuía, alugados em condições excelentes, salientou os negócios da imobiliária, cujos lucros eram satisfatoriamente compensativos, embora manejasse capitais alheios, a juros módicos, para os empreendimentos de maior vulto.

A senhora Nogueira sentia-se perplexa, esmagada.

Não sabia em que pensar, se no inusitado da situação, se na sagacidade da filha. Reconhecia-se excedida em astúcia, atirada para trás.

Em fração de segundos, imaginou a posição de Gilberto. Como estaria o rapaz, arrebatado à outra?

Mulher experiente, conquanto, por vezes, chegasse a conclusões tardias quanto ao esposo e à filha, em matéria de inclinação e conduta, não se enganava sobre as ligações que Nemésio intentava esconder na conversação deleitosa. A inflexão apaixonada com que o viúvo esmaltava cada frase, no momento em que as flores no sepulcro da morta não haviam emurchecido, dispensava para ela quaisquer circunlóquios. Aquele homem lhe mencionava a filha, não na expectativa do admirador ingênuo, mas sim com a certeza do amante consolidado.

A que estouvamentos se entregara Marina, no lar dos Torres? — conjeturava, inquieta. Se empolgara o próprio chefe, enredando-lhe o espírito nas teias de lamentável alucinação, que procedimento adotara perante o jovem, alterando-lhe os rumos? Inferindo, porém, que as qualidades de Nemésio, com os cabedais financeiros de que se seguiam, não eram, em seu conceito, um partido para desprezar, ouvia tudo, imobilizando um sorriso complacente no rosto.

Quando se dispunha, no entanto, a mergulhar no assunto, o telefone chamou.

A campainhada valeu-lhe por desafogo. Intervalo providencial que lhe modificava o pensamento, conferindo-lhe tréguas para analisar os episódios em curso.

Era o médico amigo, em aviso confidencial.

Satisfazendo-lhe a solicitação, formulada dias antes, participava-lhe a piora de Marita. Se desejasse vê-la com vida, não atrasasse a visita. Cláudio não compreendia a gravidade do problema e ainda sonhava com o reerguimento da moça; entretanto, nele, clinico amadurecido, já não havia lugar à esperança. Reportou-se à peritonite, ao processo renal, à caquexia, às feridas que haviam surgido das contusões..

Dona Márcia agradeceu e fez-se pálida, a tal ponto, que Nemésio se viu forçado a correr de um lado para outro, a fim de ampará-la. Inteirando-se do que ocorria, ofereceu-se para conduzi-la até o leito da filha. Explicou que usufruiria não somente a satisfação de acompanhá-la, como também aproveitaria o ensejo para cumprimentar a jovem acidentada e levar um abraço pessoal ao pai de Marina, que considerava, antecipadamente, um amigo e familiar.

Assustada, aflita, a senhora Nogueira aceitou e, a breves instantes, os dois se punham de automóvel, a caminho do hospital, com as aparências de um casal elegante e feliz, rolando sobre o asfalto para uma visita de cerimônia.




(Página recebida pelo médium Francisco Cândido Xavier.)