E a vida continua...

Capítulo XVII

Assuntos do coração



Esvaíram-se dez meses sobre a tarefa assistencial de Evelina e Fantini, ao pé de Túlio necessitado, quando os dois solicitaram entendimento com o Instrutor Ribas, ao redor de problemas que lhes escaldavam o pensamento.

Aspiravam, sobretudo, a rever os parentes no plano físico.

Convertera-se Ernesto num poço de memórias sobre a esposa e a filha, a senhora Serpa não mais suportava as saudades do marido e dos pais. Porque ansiassem pelo retorno, ardiam na sede de informes e explicações.

O orientador acolheu-os com a lhaneza habitual e, após registrar-lhes o pedido de bons ofícios para que lhes fosse obtida a concessão, acentuou, simples:

— Creio que vocês já estejam em condições satisfatórias para a execução do empreendimento. Dedicam-se pontualmente ao trabalho, conhecem agora o que seja reencarnação, autodisciplina, burilamento próprio…

E evidenciando entranhado carinho:

— Algum motivo particular, mais intimamente particular, na petição?

Adiantou-se a moça, acanhada:

— Instrutor, venho experimentando desoladoramente a falta de Caio…

— Esposos que se amam — interferiu Ernesto —, quando distanciados um do outro, fazem-se noivos outra vez… Porque não confessar que também eu ando aflito por abraçar minha velha?


— Caro amigo — aventurou-se Evelina, fixando o mentor de maneira expressiva —, em nos reportando à ligação conjugal, arriscaria uma consulta…

— Diga, filha…

— O senhor não ignora que, em meu primeiro reencontro com Mancini, senti-me, por momentos, a jovem menos responsável que fui, observando-me fortemente atraída para ele. Depois, reagindo, vi-me, de novo, recuando mentalmente para o domínio de Caio, o marido que ficou no plano físico, dando a mim mesma a impressão de que sou um satélite, gravitando entre os dois… Passei a esforçar-me em auxílio de Túlio e, aos poucos, venho reconhecendo que ele não é, absolutamente, o homem que eu desejaria para companheiro… Entretanto, para ajudá-lo e tolerá-lo, presentemente, sinto necessidade de um estímulo…

— O amor a Deus.

— Compreendo hoje que todos respiramos na própria essência de Deus; contudo, o mistério para mim está nisso… Sei que nada conseguimos sem Deus, mas, entre Deus e a obrigação que me cabe cumprir, preciso de alguém que me escore o espírito, que se me erija em apoio, na movimentação do cotidiano, em busca daquele estado de alma que apelidamos por paz interior, euforia ou mesmo felicidade… Esta fome espiritual que me faz pensar dia e noite na reintegração com Caio significará que ele, meu esposo, é realmente o meu amor absoluto? aquele espírito que será o sol de bênçãos a envolver-me para sempre, quando chegarmos à perfeição?


Ribas sorriu e filosofou:

— Todos nos destinamos ao Amor Eterno e no entanto, para alcançar o objetivo supremo, cada qual de nós possui um caminho próprio. Para a maioria das criaturas, o encontro do amor ideal assemelha-se, de algum modo, à procura do ouro nas minas ou de diamante nas catas. É indispensável peneirar o cascalho ou mergulhar as mãos no barro do mundo, a fim de encontrá-lo. Sempre que amamos profundamente a alguém, transformamos esse alguém no espelho de nossos próprios sonhos… Passamos a ver-nos na pessoa que se nos transforma em objeto da afeição. Se essa criatura efetivamente nos reflete a alma, o carinho mútuo cresce cada vez mais, assegurando-nos o clima de encorajamento e alegria para a viagem nem sempre fácil da evolução. Nessa hipótese, teremos obtido apoio seguro para a subida do acrisolamento moral… Em caso contrário, a pessoa a que particularmente nos devotamos acaba devolvendo-nos os próprios reflexos, à maneira de um banco que nos restituísse ou estragasse os investimentos por desistência ou incapacidade de zelar por nossos interesses. Então, surgem para nós aquelas posições espirituais que nomeamos por mágoa, desencanto, indiferença, desilusão…

— O senhor desejará talvez afirmar — recordou Fantini — que caminhamos na existência pelas vias da afinidade, de afeição em afeição, até achar aquela afeição inesquecível que se nos levante na vida por chama de amor eterno?

— Sim, mas entendendo-se o conceito de afeição, sem a estreiteza do sexo, de vez que a ligação esponsalícia, embora sublime, é apenas uma das manifestações do amor em si. Determinado homem ou determinada mulher podem confirmar na esposa ou no esposo a presença do seu tipo ideal; entretanto, talvez prossigam, após o casamento, mais intimamente vinculados ao coração materno ou ao espírito paternal… E, às vezes, somente encontrarão o laço de eleição num dos filhos. Em amor, a afinidade é o que conta…


— Instrutor — enunciou Evelina, impressionada —, e as uniões de suplício, os casamentos infelizes?!…

— Sim, a reencarnação é também recapitulação. Muitos casais no mundo se constituem de espíritos que se reencontram para a consecução de afazeres determinados. A princípio, os sentimentos se lhes justapõem, no setor da afinidade, como as crenas de duas rodas que se completam para fazer funcionar o engenho do matrimônio… Depois, percebem que é imperioso burilar outras peças dessa máquina viva, a fim de que ela produza as bênçãos esperadas. Isso exige compreensão, respeito mútuo, trabalho constante, espírito de sacrifício. Se uma das partes ou ambas as partes se confiam a desentendimento, a obra encetada ou reencetada vem a cair…

— Então? — a pergunta de Evelina pairou no ar, revestida de imensa curiosidade.

— Então, aquele dos cônjuges que lesou o ajuste, ou ambos, conforme as raízes da desunião, devem esperar pela obtenção de novas oportunidades no tempo para a reconstrução do amor que dilapidaram.


— Instrutor, permita-me uma pergunta. A união conjugal de duas criaturas que se amam, quando interrompida pela morte no mundo, pode ser reatada aqui?

Ribas, expressivo:

— Perfeitamente, se os cônjuges realmente se amam…

Fantini aparteou:

— E quando isso não acontece?

— Aquele que ama sinceramente continua trabalhando, neste lado da vida, pelo outro que não lhe guarda na Terra a mesma altura de sentimento, aprimorando a obra do amor em outros aspectos, que não o da afetividade esponsalícia.

A senhora Serpa mostrou o semblante iluminado por bonito sorriso e asseverou, segura de si:

— Isso não me ocorrerá. Tenho hoje motivos para confiar em Caio tanto quanto confio em mim mesma.

— Sua fé — volveu o Instrutor — é um retrato de sua sinceridade.

Ernesto fitou demoradamente a companheira e admirou-lhe a ternura da alma boa e ingênua. Desde muito, passara a nutrir por ela entranhado carinho. Nunca a apanhara em qualquer deslize. Sempre compassiva, abnegada. Muitas vezes, surpreendia-se ligado a ela por encantadora atração. Sob que prisma a estimava? Filha, companheira, mãe, irmã? Não conseguiria dizer.

Temendo o mergulho em mais longas divagações, ele, o bom amigo, chasqueou, no intuito claro de desviar o curso dos próprios pensamentos:

— Instrutor Ribas, qual se verifica no caso de nossa irmã, também estou persuadido de que minha esposa espera por mim… Entretanto, se isso não sucede?…

— Se isso não ocorre — e o mentor frisou as palavras com paternal inflexão de bom humor —, você, Fantini, desfrutará, sem dúvida, a possibilidade de auxiliá-la na condição de um amigo fraternal.

— E, nessa hipótese, caber-me-ia o direito de eleger uma nova companheira na vida nova?

— As leis humanas, tanto no plano terrestre quanto aqui, são princípios suscetíveis de alteração e, na essência, não afetam as Leis Divinas. Na moradia dos homens, não existe obrigatoriedade para o estado de viuvez. Conservam-se órfãos de companhia no lar aqueles corações que o desejam. Rompidos os compromissos do casamento com a morte do corpo, o homem ou a mulher permanecem sozinhos, quando possuem motivos para isso. Natural aconteça aqui o mesmo. O homem ou a mulher desencarnados guardam insulamento ou não, conforme os propósitos íntimos que alimentem, entendendo-se, porém, que em qualquer posição dispomos de recursos para honorificar o trabalho da edificação do amor puro que acabará imperando, de maneira definitiva, em nossas relações uns com os outros.

Evelina, denotando preocupação no olhar, diligenciou colher maiores conhecimentos:

— Instrutor amigo, o senhor conhece companheiros que não conseguiram consorciar-se aqui?

— Eu sou um deles.

— Alguma razão especial? — esmerilou Fantini.

— Acontece que o amor conjugal, quando se exprime em bases do amor puro, continua vibrando no mesmo diapasão entre dois mundos, sem que a permuta de energias de um cônjuge para outro venha a sofrer solução de continuidade. Minha esposa e eu sempre fomos profundamente unidos. Bastávamo-nos na Terra um ao outro, em matéria de alimento afetivo. Sobrevindo a minha desencarnação, percebi logo que ela e eu continuávamos em plena vinculação mútua, qual se fôssemos partes integrantes de um circuito de forças. Na dedicação espiritual dela, colho meios de continuar em meu aprendizado do amor a todos, ocorrendo-lhe o mesmo.

— Ligação ideal!… — regozijou-se Evelina, extática.


Patenteando a ansiedade de que se via presa, no sentido de se reintegrar na ternura do marido distante, comentou, reverente:

— Instrutor, noto que há sempre reserva em nossos amigos mais experientes daqui, quando se diz algo sobre a possível desencarnação de pessoas queridas que deixamos na retaguarda… Chego a pensar que isso é assunto proibido entre nós, será mesmo assim?

— Não tanto. À medida que se nos desenvolve a noção de responsabilidade, compreendemos a reencarnação como período de escola. Cada existência está supervisionada por deliberações superiores, muitas vezes insondáveis para nós.

A interlocutora, denunciando aspirações íntimas, profundas, arriscou:

— Caro amigo, suponhamos que eu venha a reencontrar o esposo mergulhado em saudades iguais às minhas, atormentado, triste… Não me será cabível, nem de leve, encorajá-lo na certeza de que seremos novamente felizes aqui, prometendo-lhe a ventura renovada para além da morte? Digo isso, porquanto não lhe deixei filhos para entreter-lhe a coragem de sofrer, de esperar…

— Fuja de refletir assim. Não temos instrumentos para medir a fidelidade daqueles que amamos, e, ainda que seu marido estivesse agoniado, em tremendo desajuste, por motivo de sua ausência, não saberíamos se a desencarnação lhe traria o remédio adequado. Quem nos dirá que a mais longa demora dele, no corpo físico, não seria a providência desejável, a fim de que se lhe revele com mais segurança? Martelar-lhe na cabeça a ideia da morte significaria, provavelmente, ajudá-lo a reduzir tempo na experiência material; e quem nos afirmará com certeza que ele se sentirá feliz, regressando à vida do espírito, por imposição nossa e não por determinação da natureza, sempre sábia, por refletir os desígnios do Eterno?

— Oh! meu Deus! — e a senhora Serpa deixou escapar um suspiro de aflição — como agir em auxílio do coração que vive no meu?

Ribas respondeu, afetuoso:

— Em muitas ocasiões, quando dizemos que o coração de alguém pulsa em nós, seria mais justo declarar que o nosso coração é que pulsa nesse alguém…

E com inflexão mais carinhosa:

— Dentro de breves dias, você e Fantini poderão viajar, de visita ao ninho doméstico.

Evelina e o companheiro agradeceram, felizes. Doce alegria banhou-lhes a alma, de improviso, como se o sentimento se lhes deslocasse das brumas da saudade para brilhar ao sol da esperança, em novo alvorecer.