Quando o Dr. Crisanto Rosa, engenheiro moço e recém-casado, chegou à sede do serviço, encontrou o Pica-Pau na improvisada estação.
— Doutor, quero levar suas malas.
Dona Moema, a esposa, teve um movimento de recuo.
O homem que assim falava era horrível. As mãos retorcidas e o rosto monstruoso no corpo, que gingava de estranho modo, davam notícia de pavorosas queimaduras.
O Dr. Crisanto não gostou da recepção.
Dispensou rudemente.
— Não preciso — explicou, sério.
O pobre homem, contudo, voltou à carga:
— Ora, doutor, deixe-me carregar! Já estou esperando o senhor há tantos dias.
Tanta humildade transpareceu da voz suplicante, que o engenheiro sorriu, vencido, entregando-lhe parte da bagagem.
E Pica-Pau, suportando peso enorme, saiu carregando três grandes malas, na direção da graciosa casa de madeira que esperava o novo chefe.
O Dr. Crisanto fora comissionado para dirigir o avanço da grande rodovia interestadual em construção, e deveria morar ali, em plena mata, entre as famílias de alguns trabalhadores.
Não haveria, porém, dificuldade maior. A poucos quilômetros, vilarejo florescente e movimentado fornecia de tudo.
O engenheiro e a esposa, encantados, ocuparam a residência pequenina que os aguardava, e Pica-Pau, sempre agitado e alegre, gingava daqui para acolá.
Sem que o casal lhe pedisse, varreu as adjacências da casa, fez lume no fogão externo, conseguiu grande porção de lenha cortada e retirou larga quantidade de água do poço.
Dona Moema, modificada pelo comportamento dele, ofertou-lhe alguns restos de refeição, que o servidor humilde comeu com vontade.
A noite começava a descer, fria e rápida.
Sentara-se Pica-Pau numa tora de madeira, ao pé da casa, com a cabeça apoiada nas mãos, quando o Dr. Crisanto e a esposa o chamaram à sala.
— Pica-Pau, sei que você tem esse nome, porque mo disseram quando cheguei… — começou o engenheiro.
— É sim, doutor. Meu trabalho é na lenha. Todos me chamam Pica-Pau…
— E onde é que você mora?
— Não tenho lugar certo.
— Onde dorme?
— Desde que a turma da estrada chegou, durmo nas máquinas.
O engenheiro fitou a esposa, expressivamente, e continuou:
— Conversei com Moema a seu respeito. Não lhe posso dar abrigo em casa, mas temos a coberta do despejo. Se você quiser dormir lá, temos colchão…
Pica-Pau mostrou o sorriso de quem descobrira a felicidade.
— Quero sim — foi toda a resposta.
— Moema ficou satisfeita pelo modo com que você agiu hoje… Precisamos de alguém para serviço caseiro…
— Posso ajudar, sim senhor.
— E quanto recebe você por mês?
— Ora, doutor, não pense nisso — replicou alegre —, trabalharei para o senhor a troco de comida…
Marido e mulher entreolharam-se comovidos.
E, desde então, Pica-Pau foi o serviçal amigo, instalado no telheiro.
O Dr. Crisanto, por mais que indagasse, não colheu outra notícia senão aquela que toda a gente conhecia.
Pica-Pau fora vítima de queimaduras em cidade distante e aparecera, por ali, como um tipo anônimo.
O engenheiro, condoído, já que lhe receberia a cooperação, submeteu-o a exame de saúde por um dos médicos de serviço e o médico atestou-lhe absoluta sanidade física.
— Foi pena queimar-se tanto — disse o clínico bem-humorado —, podia ser um gigante no serviço.
Pica-Pau mostrava-se agora outro.
Dona Moema, reconhecida, mandava ajustar para ele as roupas e os sapatos que o marido lançasse ao desuso.
Bamboleante como sempre, era visto aqui e ali, no vilarejo próximo, transportando grandes sacolas para compras, ou no jipe de serviço, dando adeus com as mãos recurvas.
Observando-o, o engenheiro e a esposa notaram que o servidor possuía apenas um hábito profundamente arraigado. Todas as noites, antes do sono, enquanto o Dr. Crisanto permitisse o funcionamento do motor para a luz elétrica, relia um livro surrado.
Certa feita, o casal aproximou-se para ver, e ficou sabendo.
Pica-Pau compulsava um exemplar de “O Evangelho segundo o Espiritismo”.
— Então, você gosta desse livro? — perguntou o chefe, sorrindo.
— Sim, doutor — respondeu, acanhado —, é a única coisa que eu tenho…
E acariciando o volume ensebado:
— Este livro me consola e me ajuda a pensar…
— Você é espírita? — indagou Dona Moema, com inflexão de respeito.
— Sou um pobre homem que já lutou muito — respondeu Pica-Pau —, mas encontrei no Espiritismo o sossego da alma. Se posso responder à pergunta, Dona Moema, digo que sou espírita, com muito desejo de praticar o que o Espiritismo me ensina…
Conquanto não abraçassem os mesmos princípios, os amigos louvaram-lhe a fé, bondosos e tolerantes.
Dona Moema passou a esperar o primogênito e era de ver-se a dedicação de Pica-Pau.
O apagado trabalhador desdobrava-se em concurso espontâneo.
Abeirando-se da “délivrance”, a jovem senhora foi conduzida pelo esposo à casa de parentes no Rio.
Começou, então, para Pica-Pau uma experiência nova.
Distante da esposa, o Dr. Crisanto não era o mesmo homem.
Sem dúvida não diminuíra a consideração para com ele, mas estava diferente. Correto na profissão, mudara a vida particular.
Noite a noite, o engenheiro, como que faminto de novidade, buscava a cidadezinha próxima e embriagava-se, levianamente, em companhia de supostos amigos.
Num certo sábado, porque as horas avançassem madrugada a fora, sem que o chefe voltasse, Pica-Pau fez cinco quilômetros a pé.
Procurou, aflitamente, e encontrou-o num bar.
— Doutor — disse ao engenheiro —, vim chamá-lo.
— Que há?
E Pica-Pau engrolou a voz:
— Chegou um portador com notícias de Dona Moema…
O chefe aboletou-se no jipe e os dois viajaram, cada qual com a sua própria ansiedade.
Em casa, porém, Pica-Pau falou, desconcertado:
— Doutor, perdoe-me… Não há mensageiro algum… Estava preocupado com o senhor…
O Dr. Crisanto, algo transtornado pelo copo farto, gritou:
— Era o que faltava… Você, dirigindo! Não encomendei fiscalização alguma!… Não me consta que espíritas andem mentindo… Nunca mais faça isso!…
Pica-Pau, humilhado, preparou-lhe o café forte e o assunto ficou encerrado.
Entretanto, no sábado seguinte, repetiu-se o problema.
Às duas da madrugada, Pica-Pau, arfando de fadiga, ante a longa caminhada, alcança o bar, surpreende o chefe, e avisa, desapontado:
— Doutor, a casa das máquinas está pegando fogo.
O engenheiro, desconfiado, atende; e ambos se põem novamente no jipe.
Mas, em caminho, o diretor do serviço fala, nervoso:
— Pica-Pau, se você estiver mentindo, pagará caro…
Chegando à casa das máquinas e observando a tranquilidade ambiente, fez um gesto interrogativo, ao que Pica-Pau respondeu, encabulado:
— Doutor, reconheço que menti, mas não posso ver o senhor nessa vida…
— Ah! não me pode ver? — replicou o Dr. Crisanto, irado. — Então não veja…
E vibrou-lhe tremendo pescoção ao pé do ouvido. Pica-Pau rodou sobre os calcanhares e caiu com um filete de sangue a escorrer-lhe da boca, mas não reagiu.
Lágrimas rolavam-lhe dos olhos, quando viu que o Dr. Crisanto movimentava o veículo, de volta ao vilarejo distante.
Na manhã imediata, o engenheiro acreditava que o servidor estivesse longe, mas, com surpresa, viu Pica-Pau abeirar-se dele, de rosto inchado, a trazer-lhe calmamente a bandeja do café.
Dona Margarida, a arrumadeira, ao vê-lo assim, perguntou, admirada:
— Mas Pica-Pau, onde é que você arranjou esse rosto?
— Dor de dentes, Dona Margarida…
— Dor de dentes, na sua idade? — voltou ela, irônica.
— É sim, senhora… Ainda tenho alguns cacos…
A discrição e a humildade de Pica-Pau comoveram o Dr. Crisanto, que mostrou expressiva melhora.
Depois de dois meses, no entanto, quando já se achava em vésperas de buscar a esposa e o filhinho recém-nato, o engenheiro voltou às noitadas alegres.
Pica-Pau notou o perigo, mas não se mexeu.
O serviço esperava a visita de várias autoridades, quando o Dr. Crisanto, certa noite, foi procurado no bar por Pica-Pau.
O pobre dizia-lhe, inquieto:
— Doutor, com o pagamento atrasado há dois meses, os operários estão acusando o senhor e planejam uma cilada…
O engenheiro riu-se, francamente.
— Que cilada?
— Querem dinamitar a ponte em construção… É preciso salvar o nome do senhor… O pessoal não tem razão…
O Dr. Crisanto desferiu gargalhada irritante e observou:
— Suas mentiras, Pica-Pau, não pegam mais… Ponha também a sua bomba…
O portador fez uma expressão de amargura e regressou, coxeando, coxeando…
Não havia, porém, decorrido duas horas, quando pequena comissão veio de jipe, à procura do chefe, com a dolorosa notícia.
Pica-Pau, ao tentar o salvamento da grande construção sobre o rio, conseguira preservar a ponte, mas sofrera terrível acidente: ao arrastar a banana explosiva colocada na edificação por mãos criminosas, verificara-se o estouro e teve os braços decepados, além de ferimentos por todo o corpo.
Horrivelmente surpreendido, o Dr. Crisanto voltou à pressa.
Trazido em padiola improvisada, Pica-Pau estava no telheiro em que se acolhia. A cama pobre empapava-se de sangue, embora os primeiros curativos tivessem sido feitos.
Arrasado de dor, o engenheiro compreendeu a gravidade da situação.
Trancou-se no recinto humilde com o ferido, que pousava nele os grandes olhos, e rogou:
— Pica-Pau, perdoe-me pelo amor de Deus! como não pude compreender você a tempo?!…
— Ora, doutor, não pense nisso! — respondeu o mutilado em voz sumida — tudo está bem…
— Não! Não! Punirei os culpados!
— Não faça isso! Desculpe sempre, doutor… Ninguém é mau porque deseje…
— Mas foi um crime…
— Ora, doutor, quem pode julgar? — falou o acidentado, com voz doce, como se quisesse acariciar o chefe com a palavra, já que não podia fazê-lo com as mãos. — Às vezes, quem colocou a dinamite na ponte é um homem doente… obsidiado… é preciso perdoar…
O Dr. Crisanto não teve coragem de prosseguir exasperado, e perguntou, emocionado:
— Que quer você que eu faça, Pica-Pau?
— Doutor, se o senhor puder, leia para mim uma página do Evangelho… Estou agora sem braços…
O engenheiro tomou o livro semigasto, e, abrindo na parte final, fez a leitura, entre lágrimas copiosas:
“Meu Deus, és soberanamente justo. O sofrimento, neste mundo, há, pois, de ter a sua causa e a sua utilidade. Aceito a aflição que acabo de experimentar, como expiação de minhas faltas passadas e como prova para o futuro. Bons Espíritos que me protegeis, dai-me forças para suportá-la sem lamentos. Fazei que ela me seja um aviso salutar; que me acresça a experiência; que abata em mim o orgulho, a ambição, a tola vaidade e o egoísmo, e que contribua para o meu adiantamento.” ()
Pica-Pau aquietara-se, muito calmo, mas o Dr. Crisanto, à maneira de louco, providenciou o resto da noite e, no dia seguinte, pela manhã, tomou o avião de serviço e rumou com o mutilado para o Rio, tentando salvar-lhe a vida.
Era mais de meio-dia, quando Pica-Pau deu entrada no grande hospital carioca em que seria submetido a tratamento.
Dois médicos amigos do Dr. Crisanto, no entanto, abanaram a cabeça, depois de minuciosa inspeção.
O ferido avizinhava-se do fim.
Agoniado, o engenheiro foi à procura da família e contou à esposa e à velha mãezinha, Dona Maria Cecília, os sucessos amargos.
Ambas quiseram testemunhar carinho ao herói.
E, nas primeiras horas da noite, o trio se dirigia para o confortável quarto em que Pica-Pau encontrara acolhida régia.
Na luz indireta que clareava frouxamente o recinto, Dona Moema foi a primeira a cumprimentá-lo.
— Então, Pica-Pau — falou, emocionada —, quando voltarmos, teremos mais alguém… Você vai ajudar-me a velar por nosso rapaz, que já estará crescidinho…
Ele voltou os olhos muito abertos e respondeu, lúcido:
Oh! sim… um belo menino… Deus o abençoe.. Em seguida, o Dr. Crisanto apresentou-lhe a sua velha progenitora.
A encanecida senhora começou a dirigir-lhe palavras de consolo; entretanto, ao sentir-lhe a fixidez do olhar profundo, desconcertou-se, pouco a pouco, e emudeceu em pranto.
Ele, porém, com serenidade indescritível, passou a dizer, com muito esforço:
— Sim, Cecília, você não precisa perguntar… Sou eu mesmo… Pedro… Pedro, que você não vê há trinta anos… Deus escutou minhas preces… Não queria morrer sem nosso encontro… Perdoe por todos os males… que causei a você… Eu era moço, Cecília… Moço e ignorante… Viciei-me em bebidas e esqueci o lar… humilhando você… Você tinha razão, não me querendo mais… Mas creia que piorei, perdendo você… Você foi o único amor de minha vida… Perdoe tudo… Mudei muito, Cecília… Um dia… alcoolizado… fui vítima da maldade de alguns rapazes que me atearam fogo às vestes… Tratado num hospital, aí conheci a Doutrina Espírita, que reformou minha vida… Passei a ser outro homem… Todavia, não tive coragem de procurá-la… Fiquei deformado… irreconhecível… Mas consegui seguir o nosso Crisanto nos últimos tempos… Continue vivendo para ele, Cecília… Eu, agora… estou no fim… Mas a vida prossegue depois da morte… Um dia, Cecília, no mundo sem lágrimas, serei para você o que devo ser… Confiemos em Deus…
Entretanto, fosse pelo esforço enorme ou porque o Espírito do acidentado julgasse terminada a sua tarefa entre os homens, a cabeça de Pica-Pau tornara-se imóvel. Grossas lágrimas, a se lhe escorrerem dos olhos, agora desmesuradamente abertos, misturavam-se ao suor álgido…
Dona Maria Cecília, ajoelhada, em pranto silencioso, beijou-lhe a testa suarenta e Pica-Pau sorriu pela última vez.
O Dr. Crisanto, emocionado, tocou o braço materno e falou:
— Mas, mamãe, que houve?
A nobre senhora, no entanto, após cobrir carinhosamente o corpo hirto, pôde apenas responder, entre soluços:
— Este homem, meu filho, é seu pai…
(Psicografia de Francisco C. Xavier)