Reportagens de além-túmulo

Capítulo II

O irmão Severiano



Severiano Fagundes era dos melhores doutrinadores do Espiritismo numa das grandes capitais brasileiras. Sua palavra vibrante era muito admirada nas tribunas doutrinárias; sua presença, um estímulo aos companheiros. Temperamento expansivo, era portador de expressões alegres e vivas. Ótimo organizador dos serviços de intercâmbio com o Invisível, tinha especial aptidão para convencer as entidades recalcitrantes, embora não as convencesse de todo, relativamente aos deveres espirituais. Sabia elucidar os médiuns, formar as sessões práticas, transmitir verbalmente os ensinamentos recebidos. Surgiam obsidiados? Lá estava o Severiano combatendo os agentes da discórdia, esclarecendo obsessores infelizes.

Entretanto, o poderoso doutrinador, além de profundamente arbitrário em seus modos de agir, parecia comprazer-se em certas irregularidades da vida. Se algum companheiro se aproximava, prudentemente, e lhe falava dos perigos que semelhante situação poderia acarretar, Severiano dava de ombros e interrogava: — “Ora, mas que tem isso? São futilidades da existência humana. A verdade é que nunca me viram faltar aos deveres para com a Doutrina. Compareço pontualmente às reuniões, não me furto ao trabalho de esclarecimento dos irmãos perturbados, nem me nego ao concurso fraternal nas atividades mais pesadas do nosso grupo.”

E a vida passava.

O nosso amigo tinha os seus casos tristes, suas situações escabrosas, mas continuava impávido no arrojo da pregação.

Não faltava às sessões, mas esquecia a família; doutrinava os Espíritos mais cruéis, entretanto, alegava não tolerar a esposa que Deus lhe havia confiado, porque não pudera compreender o Espiritismo à sua maneira; preparava bem os médiuns; contudo, não se interessava pelos filhos, como devia.

E era um companheiro valente o Severiano. Sabia animar, corrigir, resolver problemas difíceis, lançar incentivos eficazes.

Os anos passaram sobre o quadro de seus serviços e o ardoroso doutrinador foi chamado à Esfera espiritual.

Em virtude de seus conhecimentos, relativamente à Doutrina, Severiano percebeu que não mais pertencia ao número dos adormecidos na carne. Estava plenamente convencido da transição fenomênica da morte do corpo. No entanto, como no Plano invisível cada criatura somente poderá ver através da luz que acendeu na própria alma, o grande propagandista dos princípios doutrinários, com imensa surpresa, não encontrou os amigos espirituais com que contava, não obstante o esforço de todos em seu favor. Viu-se sem rumo, entre sombras e paisagens confusas. Ao contrário de suas ilusões no período de atividades que lhe antecedera ao desprendimento do mundo, começou a refletir mais seriamente na vida particular que a esponja do tempo havia absorvido. Revia, agora, os mínimos detalhes das ocorrências pequeninas. Ter-se-ia portado bem nessa ou naquela circunstância? A consciência dizia-lhe que não, que ficaram muitas tarefas por fazer, em virtude da deficiência de seu esforço, sempre tão pronto para ensinar aos outros.

À medida que se escoavam os dias, observava a multiplicação dos remorsos e dores íntimas. O pobre amigo não sabia como explicar o seu mal-estar, qual o motivo da paisagem escura que o cercava.

Certo dia, Severiano chorou como criança, nas súplicas que procurou elevar a Deus. Lembrou as reuniões em que ensinara austeras disciplinas, via-se à frente das entidades perturbadas que se comunicavam, e recordava as exortações que lhes dirigia corajosamente.

Severiano chorou. É verdade que, como homem, havia errado muito, fugindo aos trabalhos próprios de sua vida; no entanto, devotara-se à doutrina dos Espíritos, espalhara consolações e conselhos. Nesse instante, uma sincera compunção parecia arrebatá-lo a lugar diferente. Viu-se numa paisagem mais leve, à frente de uma entidade de semblante divino, que o contemplava carinhosamente.

— Irmão querido — perguntou o ex-doutrinador, sensibilizado —, por que sofro tanto, em caminhos sem luz?

— É que acendeste muita claridade nos outros, mas esqueceste de ti mesmo — esclareceu a nobre entidade com amoroso sorriso.

Severiano começou a explicar-se: lamentou a sua situação, falou longamente, mas o mensageiro de Jesus interrogou com solicitude fraternal:

— Irmão Severiano, serviste de fato ao Evangelho?

— Sim — replicou o mísero, hesitante —, disciplinei muitos Espíritos perturbadores, fazendo-lhes sentir os deveres que lhes competiam.

A generosa entidade tomou então de um grande volume e afirmou com bondade:

— Temos aqui o Evangelho, tal como o estudaste no mundo. Observemos o que nos diz a lição de Jesus, com respeito à tua primeira alegação.

E o livro abriu-se, automaticamente, impulsionado por energias luminosas, apresentando o versículo 4 do capítulo 23, de Mateus: “Pois atam fardos pesados e difíceis de suportar e os põem aos ombros dos homens; eles, porém, nem com o dedo querem movê-los.” (Mt 23:4)

Severiano Fagundes ficou muito pálido. Recordou, instintivamente, tudo o que deixara de fazer no círculo de suas obrigações justas. Como o generoso amigo espiritual o contemplava em silêncio, sorrindo com amor, o pobre irmão, que lembrava as lutas da Terra, murmurou:

— Sei que não cuidei de mim, como deveria; entretanto, tive muita fé.

Essas palavras foram proferidas com enorme desapontamento. Mas o emissário do Cristo voltou a dizer:

— Vejamos, então, o que nos diz o Evangelho, relativamente à tua segunda alegação.

E surgiu o versículo 17 do capítulo 2 da Epístola universal de Tiago, em caracteres radiosos: “Assim também a fé, se não tiver as obras, é morta em si mesma.” (Tg 2:17)

Severiano baixou os olhos e começou a chorar amargamente, pois só agora reconhecia que ensinara muito Evangelho aos outros, lendo-o com leviandade; todavia, não aplicara o código divino à própria vida. Nada mais disse ao mentor carinhoso e justo que, abraçando-o fraternalmente, murmurou com bondade infinita:

— Irmão Severiano, levanta os olhos para o Mestre e anima-te! Voltarás à Terra para o serviço redentor; mas, não te esqueças de que, como encarnado, serás também Espírito em doutrinação. É preciso escutar o dever, a luta e o sofrimento… São mensageiros de Jesus os que ensinam o Evangelho na Terra. Precisamos ser canal de verdade para os outros; mas não é só isso, porque é indispensável sejamos canais e reservatórios ao mesmo tempo, a fim de que, como discípulos de um Mestre tão rico de sabedoria e amor, não venhamos a sucumbir pela miséria própria.

A generosa entidade continuou a exaltar a beleza das obrigações cumpridas e, cheio de lágrimas e esperanças novas, Severiano Fagundes começou a preparar-se para recomeçar a lição na vida humana.


(.Irmão X)