O alto relevo de sua imagem — a gravura de um homem lançando redes de pesca — tornar-se-ia no futuro um poderoso símbolo na mão esquerda do pontífice da Igreja de Roma, o Anel do Pescador.
Entretanto, Pedro, a rocha, apelido que evocava o vigor de seu caráter, vivia naqueles momentos grave vulnerabilidade.
Jesus havia alertado aos seus:
— “Nesta noite todos vós tropeçareis por minha causa”. (BÍBLIA, 2000 –
MATEUS 26:31.)
Mas Pedro, insubmisso, respondeu:
— “Ainda que todos tropecem esta noite, eu não tropeçarei”.
Pedro tinha crises obsessivas costumeiras (XAVIER, 2013h, cap. 18, p. 66), como se observa nos acontecimentos da estrada de Cesareia de Filipe, no Getsêmani e no pátio das casas de Anás e Caifás.
O grupo caminhava certa manhã, quando Jesus indagou aos apóstolos:
— “Quem dizem os homens que é este Homem?” (BÍBLIA, 2000 –
MATEUS 16:13 e ss.)
Disseram:
— “Uns que é João Batista; outros, Elias; outros, Jeremias ou algum outro profeta”.
Os apóstolos e o povo — demonstra a resposta — tinham a crença de que seus grandes vultos poderiam regressar à vida material, sob nova vestimenta carnal, reencarnando. Jesus não os corrige, prosseguindo com naturalidade o diálogo:
— “E vós, quem dizeis que eu sou?”
Simão Pedro, envolvido por força superior, redarguiu:
— “Tu és o Messias, o Filho de Deus vivo”.
Jesus aprova:
— “Feliz és tu, Simão, filho de Jonas! Porque isso não te foi revelado por alguém de carne e sangue e sim por meu Pai do céu”.
Ao mesmo tempo em que o Nazareno desvela sua identidade aos queridos companheiros, Ele valoriza o filtro mediúnico de Simão:
— “Pois eu te digo que tu és Pedro e sobre esta Pedra construirei minha igreja [...]. A ti darei as chaves do reino de Deus: o que atares na Terra ficará atado no Céu; o que desatares na Terra ficará desatado no Céu”.
A caminhada avançou e, breves minutos depois, Jesus fez o primeiro anúncio da paixão e da ressurreição, predizendo as dores próximas do pesado tributo de renúncia. Os discípulos se atemorizaram e Pedro, exaltado, chamou Jesus em separado para censurá-lo:
— “Deus te livre, Senhor! Tal coisa não te acontecerá”.
O que poderia parecer um consolo fraternal, Jesus desvendou como ardilosa infiltração obsessiva. O apóstolo cedia a entidade espiritual interessada em fazer o grupo recuar, insuflando medo, quando a determinação deveria prontificá-los até o testemunho mais sacrificante.
Amélia Rodrigues (FRANCO, 1981, p.
77) esclarece que, diante do que envolvia o discípulo além das zonas físicas, “Jesus profere a severa frase com que expulsa a insinuação e desarticula o programa de perturbações nefastas”:
— “Retira-te, Satanás! Queres fazer-me cair. Pensas de modo humano, não de acordo com Deus”.
O opositor espiritual se afasta. Pedro desperta.
A delicada mediunidade do apóstolo que recebeu a inspiração do Céu, há pouco, num instante de invigilância sintoniza com a representação do mal de que se nutrem os Espíritos empedernidos na perversidade. Pela ponte mediúnica transitam anjos e demônios, conforme a concessão mental e emocional do seu detentor, a cada momento. (FRANCO, 1981, p. 77.)
Pois na noite da prisão de Jesus, nova crise obsessiva terá curso. Simão já havia resistido a que Jesus lhe lavasse os pés, no cenáculo, criticando a permissão dos demais apóstolos. Em breve, enquanto seu Mestre buscará na oração alívio à tristeza, no Jardim das Oliveiras, Pedro experimentará estranho cansaço, repentino e exauriente, que o subjugará ao sono. Depois agredirá Malco, o servo do sumo sacerdote, ferindo-lhe a orelha. O Amigo, no entanto, procurou preparar seu amigo para aquela travessia, alertando-o para as personalidades inferiores que, da esfera espiritual, estreitavam-lhe o cerco, explorando perigosamente sua fraqueza:
— “Simão, Simão, eis que Satanás pediu insistentemente para vos peneirar como trigo; eu, porém, orei por ti, a fim de que tua fé não desfaleça. Quando, porém, te converteres [arrependeres], confirma [fortalece] teus irmãos”. (
LUCAS 22:31-32.)
A tolerância de Jesus à investida dos agressores espirituais da causa seria advertência permanente aos discípulos de todos os tempos, a recomendar humildade: “O trigo joeirado torna-se pão” e “ralar o grão é meio para libertar os recursos nutrientes que nele dormem”. (FRANCO, 1993, p. 135.)
Pedro protestou; estava disposto a enfrentar prisão e morte com seu Mestre. Em sua inquietação espiritual, queria dar mostras de sua dedicação; mais por palavras, é verdade. Então, Jesus, melancólico, compreendeu que o apóstolo necessitava de nova lição e detalhou-lhe uma das antevisões de sua clarividência:
— “Em verdade te digo que esta noite, antes que o galo cante, me negarás três vezes”. (
MATEUS 26:34.)
Horas adiante, Simão, desnorteado, seguia de longe o prisioneiro. Seriam esperáveis a prisão e a morte do Manso, mas não indispensáveis a traição, a negação e o abandono dos seus amigos.
Outro discípulo também acompanhava Jesus, e porque era conhecido do sumo sacerdote (conforme JOÃO duas vezes ressaltou — 18:15 e 16), ou dos servos do sumo sacerdote (como entende boa parte dos especialistas), entrou na residência da autoridade eclesiástica com Jesus, até o interior do pátio, enquanto Pedro, que vinha mais distante, ficou à porta. O outro discípulo retornou, falou com a porteira [criada], e ela permitiu a entrada de Pedro. Nesse momento, a porteira questionou Simão:
— “Não és, tu também, um dos discípulos deste homem?” (
JOÃO 18:17.)
Respondeu ele:
— “Não sou”.
A nobreza sacerdotal habitava a parte alta de Jerusalém. Segundo as tradições, as famílias do alto sacerdócio viviam em residências de grande luxo. O ex-sumo sacerdote, Anás, ocupava um palácio com dezenas de cômodos, servido por numerosa criadagem, e para essa casa Jesus foi levado logo após a prisão. Em seguida, teria sido conduzido ao não menos suntuoso palácio de Caifás, o sumo sacerdote em exercício.
A narrativa joanina situa pelo menos a primeira negação do apóstolo no pátio da mansão de Anás, valendo-se da técnica do relato simultâneo, descrevendo o interrogatório de Anás, com inserções do que acontecia em outro ambiente, o pátio. Os evangelhos sinópticos indicam o pátio da residência de Caifás como o cenário das negações, alternativa em geral preferida pelos estudiosos.
Paul Winter (1998, p. 66), em sua obra clássica, observou:
Somos chamados a entender que, enquanto Pedro era abordado pelas criadas de algum personagem influente, sucumbindo diante de perguntas hostis, Jesus conservava a fé e mantinha a compostura diante da mais elevada autoridade do país, sem se importar com as consequências.
O outro discípulo que acompanhava o destino do prisioneiro Jesus era João, conforme a maioria dos comentaristas, encarnados e desencarnados. Há, porém, quem entenda se tratar de Nicodemos, por ser mais natural a ele conhecer o sumo sacerdote. Tendo introduzido Pedro no pátio, João foi a Betânia, para levar a Maria a notícia pesarosa. (XAVIER, 2013a, cap. 26, p. 170.)
A porteira do palácio de Anás é a primeira a notar que Simão era um dos discípulos do Nazareno. E Pedro vacilou, cedendo à força perturbadora:
— “Não sou”.
Pedro aproximou-se de um braseiro e, de pé, procurava se aquecer, durante a espera interminável.
Entre os circunstantes, alguém perguntou:
— “Não és tu também um dos seus discípulos?”
— “Não sou”. (
JOÃO 18:25.)
Um dos servos do sumo sacerdote, parente daquele a quem Pedro ferira a orelha, interveio:
— “Não te vi no jardim com ele?”
Ante a terceira negativa, o galo cantou.
Segundo fontes rabínicas muito antigas, a criação de galinhas era proibida na Cidade Santa, pelo perigo de expor à superfície coisas impuras, no ato de ciscar, o que violaria sagradas normas de pureza. A proibição, todavia, como outras, não era respeitada, e havia quem advogasse que a criação daquelas aves tornava-se legal se houvesse um jardim ou um monte de esterco onde elas permanecessem.
Alguns comentaristas sugerem que Pedro negou Jesus não apenas três vezes, mas pelo menos cinco vezes: três vezes a uma mulher e duas vezes a homens. As primeiras três vezes, contestando a porteira: uma à entrada; outra quando ela o examina à luz da fogueira; e, na terceira vez, quando Simão busca refugiar-se dela no alpendre, mas, nessa ocasião, há a possibilidade de o apóstolo ter sido reconhecido por uma segunda mulher. Pouco tempo depois de desembaraçar-se da porteira, um homem o identificou, conforme Lucas. Esse evangelho então informa que, uma hora após, outro homem apontou Pedro como discípulo de Jesus.
Para
MATEUS 26:69-74, duas servas questionaram Pedro sobre sua ligação com Jesus. E as pessoas que se encontravam à beira do fogo, por fim, reconheceram Simão como seguidor de Jesus, por seu modo de falar o aramaico, modo tipicamente galilaico.
MARCOS 14:67-72 registrou uma mesma serva duas vezes interpelando o apóstolo, acrescida pelo coro dos demais, que identificaram a origem de Pedro em virtude de seu sotaque e dos maneirismos próprios dos nascidos na Galileia.
LUCAS 22:56-62 enumerou uma serva e dois homens. Frisou que, no exato instante da última negação, o galo cantou, e Jesus, de onde estava (talvez deixando a sala de audiências), voltou-se para o apóstolo, fixando nele piedoso olhar.
Simão saiu dali. Eram cerca de três horas da manhã, e as vielas solitárias de Jerusalém cobriam-se do marmóreo palor da lua cheia. Pedro, sempre rígido quanto ao perdão às quedas alheias, agora, sob remorso obcecante, chorava amargamente.
Cinco séculos mais tarde, no local onde se supõe que Simão abriu a alma em choro convulsivo, ergueram uma igreja com o nome de São Pedro in Galli Cantu.
Amélia Rodrigues (FRANCO, 1991b, p.
95) escreveu:
Com o espinho do arrependimento cravado na mente, a doer no coração, o discípulo se deixaria agora joeirar pelo sacrifício e se tornaria uma bandeira desfraldada, simbolizando a coragem que deveria infundir nos irmãos que lastreariam os solos das outras vidas com o martírio de si mesmos.
— “Que ensinamentos nos oferece a negação de Pedro?” — perguntaram a Emmanuel.
— A negação de Pedro serve para significar a fragilidade das almas humanas, perdidas na invigilância e na despreocupação da realidade espiritual, deixando-se conduzir, indiferentemente, aos torvelinhos mais tenebrosos do sofrimento, sem cogitarem de um esforço legítimo e sincero, na definitiva edificação de si mesmas. (XAVIER, 2013c, q. 320.)
Em outra parte (XAVIER, 2013b, cap. 89), o nobre benfeitor refletiu que o fracasso momentâneo do venerando pescador decorreu de sua desatenção para com as advertências recebidas.
Salientou Emmanuel que Pedro seguia Jesus, naquela noite, após a prisão, “de longe”, e “assentou-se entre os criados”.
O querido mentor então concluiu:
[...] muitos amigos do Evangelho prosseguem caindo em suas aspirações e esperanças, por acompanharem o Cristo a distância [...] entre os servos das convenções utilitaristas [...].
Sim, Pedro possuía uma personalidade complexa; era impetuoso e inconstante. Com frequência, deixava-se dominar por receios. Sintonizava-se com Espíritos de evolução primária. Mesmo assim, Jesus o escolheu para ser pescador de homens e paradigma da fé cristã, para os séculos. Por quê?
Jesus amava em Pedro a força de seu caráter, o entusiasmo, sua bondade, sinceridade, sua simplicidade, justiça, o espírito conciliador, que o tornavam merecedor de grande respeito, além de ser, no trabalho e na família, homem exemplar.
Um episódio dos evangelhos traduz, porém, aquela que talvez fosse a melhor das qualidades de Pedro: a disposição de tentar.
Encerrada a distribuição dos pães e peixes, e recolhidos os tantos cestos com os pedaços que sobraram, Jesus ordenou que seus apóstolos seguissem à frente, pelo lago, a caminho de Betsaida, enquanto Ele despedisse a multidão. Jesus ainda se demorou, procurando a quietude para a oração. O barco já estava à significativa distância, por volta da quarta vigília da noite, isto é, entre três e seis horas da manhã. Ventos contrários e ondas eriçadas dificultavam o movimento dos remos. Sobressaltados, os discípulos veem que algo se aproxima no nível das águas. Um fantasma? — eles se questionam, e gritam atemorizados. Contudo, é Jesus, que logo lhes diz:
— “Tende confiança, sou eu, não tenhais medo”. (
MATEUS 14:27-31.)
Simão Pedro é quem ousa romper a tensão:
— “Senhor, se és tu, manda que eu vá ao teu encontro sobre as águas”.
Jesus autoriza:
— “Vem”.
E de fato, descendo do barco, Pedro inicia os primeiros passos sobre as ondas do Genesaré, em direção a Jesus.
Mas o vento prossegue revolvendo o ambiente. Simão se deixa impressionar e abre flanco para o medo e grita:
— “Senhor, salva-me!”
O Nazareno, com presteza, segura-o, sem omitir a necessária repreensão:
— “Homem fraco na fé, por que duvidaste?”
Bela imagem! Repleta de símbolos, é, ao mesmo tempo, verídica, já que a levitação humana compõe uma das mais expressivas páginas do livro da mediunidade, em seu capítulo dos efeitos físicos.
Mesmo sem alcançar o êxito, sob o aparente fracasso, Pedro revelou a essência de sua psicologia: foi o único disposto a tentar, confiou na garantia de Jesus o quanto suas forças permitiram, entremostrando o gérmen de sua aptidão para segui-lo no futuro, incondicionalmente, pelos movediços e perigosos caminhos humanos.
Por todas as experiências que viveu — suas quedas e suas vitórias — Simão Pedro é bem um símbolo das principais pelejas que aguardam o candidato às culminâncias espirituais.