Sabedoria do Evangelho - Volume 1

CAPÍTULO 10

NASCIMENTO DE JESUS



LC 2:1-20

1. Naqueles dias foi expedido um decreto de César Augusto, para que todo o mundo fosse recenseado.


2. Este recenseamento foi primeiro (antes) do que se fez no tempo em que Quirino era governador da Síria.


3. E todos iam alistar-se, cada um à sua própria cidade.


4. José também subiu da Galileia, da cidade de Nazaré, à Judeia, à cidade de Nazaré, à Judeia; à cidade de David, chamada Belém, por ser ele da casa e família de David,


5. para alistar-se, acompanhado de Maria, sua noiva, que estava grávida.


6. Estando eles ali, completaram-se os dias de dar à luz,


7. e teve um filho primogênito, e o enfaixou e o deitou em uma mangedoura, porque não havia lugar para eles na hospedaria.


Voltemos ao episódio, que comentamos em Mateus, observando as divergências do texto de Lucas. Este começa por situar historicamente o fato: estávamos sob o reinado de Herodes, que faleceu no ano 4 A. C., ou seja, no ano 750 de Roma (A. U. C.) conforme narram Josefo (Antiquit. Jud., 17,8,1 e 17, 9,213 e Bellum Jud. 1,33,1 e 8; e 2. 6.
4) isto é, nos primeiros meses do ano 4 A. C. Pois sabemos que faleceu dias após um eclipse da lua (Antiq. Jud. 17. 6. 4 § 187), que ocorreu entre 12 e 13 de março de

4 AC. (cfr. Scheirer, l. c. pág. 416). Estaríamos, portanto, à época da narração de Lucas, no máximo no ano 5 A. C. ou 749 de Roma. Precisaremos mais a data, verificando tratar-se do ano 7 A. C. (ou 747 de Roma).


Outra referência histórica é o recenseamento ordenado por um edito de César Augusto (Otávio) que se iniciou no Egito no ano 10-9 A. C. (cfr. Grenfell

& Hunt, Oxyril/,Chus papyri, tomo 2, pág. 207-214), continuado na Gália (cfr. Dion 53, 22,
5) e na Síria, por Quirino (cfr. Corpus Inscript. Lat. 3, 6
687) no ano 7 depois de Cristo. Trata-se, pois, aqui, de outro recenseamento anterior, realizado por Sentius Saturninus, Legado imperial na Palestina, de 8 a 6 A. C. (cfr. Tertuliano, Patrol. Lat. vol. 2, col. 405, e Schurer, Geschichte des judischen Volkes, tomo 1, pág. 321). Isto fortalece a hipótese do ano 7 A. C.

para o nascimento de Jesus.

Diz Lucas que "todos iam alistar-se, cada um à sua cidade", e por isso José e Maria seguiram viagem para Belém de Judá, cidade de David. Esse princípio não vigorava do Direito Romano, embora Gaius Valeri us Máximus, em 103 (depois de Cristo) tivesse ordenado no Egito (cfr. Pap. Lond. 3, pág. 125), que os cidadãos "se dirigissem para a sede do município a fim de alistar-se". Mas é diferente: é a sede do município, e não a cidade de origem. Ora, não era esse o caso de José, porque Belém não era a sede do município de Nazaré.

O fato de ter-se feito acompanhar de Maria (ainda noiva, segundo Lucas, já sua esposa, segundo Mateus) pode explicar-se por ser ela também da "casa e família" de David.

Em Belém completa-se o tempo de Maria, tendo-lhe nascido o filho primogênito. A notificação de que Jesus é o primogênito não implica na necessidade de que posteriormente viesse a ter outros filhos. A expressão é autônoma e tem em mira salientar que Jesus era o bekor, que pertencia a Deus, devendolhe ser consagrado desde o nascimento (cfr. EX 13:2 e EX 34:19).

O evangelista diz que o menino "foi colocado em uma mangedoura, porque não havia lugar para eles na hospedaria". A hospedaria, ou kân, era um abrigo rústico para os viajantes.


O termo φάτνη (mangedoura) refere-se à mangedoura fixa, que podia estar instalada numa gruta (segundo a tradição oral e o "protoevangelho" de Tiago, n. º 18), ou o estábulo interno da habitação, onde, no rigor do inverno, se guardavam os animais; consistia num quarto construído em continuação da casa, numa "puxada", em que podiam abrigar-se também pessoas com relativo conforto; e realmente isso ocorria, quando os lugares da casa já estavam todos tomados.

A tradição (por falar-se em estábulo e mangedoura) enriqueceu a narrativa de Lucas com o pormenor lendário de que Jesus foi colocado entre um boi e um jumento. Inspirou-se a tradição também em Isaías (Isaías 1:3) e em Habacuc (3:2), de acordo com o texto dos Septuaginta e da Ítala: "serás conhecido no meio de dois animais", (cfr. Orígenes, Patrol. Graeca, vol. 13, col. 1832 e Jerônimo, Patrol. Lat. vol. 22, cal. 884).

De acordo com os comentários acima, não era praxe romana a exigência de que os cidadãos se locomovessem para ser recenseados na cidade de seu nascimento. Eminentemente práticos, desejando sempre eficiência e rapidez nos resultados, não podiam ficar sujeitos a grandes movimentações de massas populares, que retardariam os negócios. Pequenos comerciantes e agricultores não poderiam abandonar seus campos e suas lojas para transladar-se (com que recursos?) a localidades por vezes distantes, para simplesmente submeter-se a um censo. Seria uma exigência impraticável até mesmo na época moderna, com a facilidade de transportes. Imaginemos uma ordem dessas em nossos dias: quase a totalidade dos brasileiros teria que transladar-se para a Europa ou a África, para serem recenseados...

Não seriam os juristas (e que juristas!) romanos que determinariam esse absurdo, há dois mil ênios. José teria que viajar três dias a pé, abandonando seus afazeres, e isso só porque um de seus ascendentes nascera em Belém, havia mais de MIL ANOS! E por que não teria de ir a Ur, na Caldeia, onde nascera seu ascendente Abraão?

De tudo isso, deduzimos que o fato narrado pela frase do evangelista oculta um símbolo altamente místico e expressivo.

Com efeito, na cidade de Belém havia uma escola iniciática de grande elevação espiritual, mantida pelos essênios, e tradicional no profetismo judaico. Era Belém, de acordo com o significado etimológico da palavra, a "Casa do Pão", mas do Pão Espiritual, que o candidato a união com Deus devia frequentar antes do Encontro Sublime. Para essa escola dirigiu-se o intelecto (José) acompanhado da intuição (Maria), que já estava "grávida" do espírito, pejada de ideias e sensações espirituais a fim de preparar-se devidamente em Belém para que se desse o "nascimento do menino".

Notemos que o nascimento se dá pela intuição, só mais tarde atingindo o intelecto.


Belém de Judá, diz o evangelista, era a cidade de David, ou seja, traduzindo o sentido das palavras:

"a casa do pão (espiritual) de louvor a Yahweh, era a cidade do "Bem-Amado" (David), o Santuário do Amor feito homem.

Observemos, entretanto, que a "ida de José a Belém", cidade dos antepassados, exprime uma rememora ção das vidas anteriores, uma visão de conjunto de todo o caminho evolutivo já percorrido pelo espírito, que, antes do passo final, deve remontar às suas origens mais remotas a partir do momento em que penetrou o reino-hominal. Essa interpretação será confirmada pouco mais adiante, quando o falarmos da genealogia de Jesus.

Estando, então, José e Maria (o intelecto e a intuição) no ambiente propício, dá-se finalmente o primeiro encontro com Deus dentro de nós (Emanuel = Deus conosco). Mas notemos que eles estavam sós, pois não haviam encontrado lugar nas estalagens. Para dizer que ninguém, nenhum agrupamento humano, pode ajudar à eclosão de união mística. Somente no isolamento da solidão consegue a criatura unir-se ao Criador. Por isso, o intelecto e a intuição se afastam de todos, penetram no santuário do Pão Espiritual, e se recolhem aí num ambiente simples: a um estábulo. Por que "estábulo"? Exatamente aí reside outra lição. O estábulo é local próprio de animais. E o encontro se dá quando o esSABEDORIA DO EVANGELHO pírito se encontra no corpo animal, isto é, o corpo denso, constituído de células, que são verdadeiro "animais" para o espírito, para o Eu Profundo.

Quando se dá a união, quando nasce o menino (o "homem novo"), a intuição o deita na "mangedoura", ou seja, coloca-o no lugar em que os animais se alimentam. E onde se alimentam de compreensão os animais-homens, senão no cérebro, sede do intelecto? É O cérebro de fibras nervosas que alimenta de ideias o homem, ainda animalizado, até que ele atinja as culminâncias da mente, através da intuição.

A intuição, pois, deita o menino no intelecto (Maria entrega o filho a José), e a criatura vê descer até sua pequenez o Infinito de Deus.

Símbolos maravilhosamente descritos, com sublime transcendência e objetividade singela, jamais alcan çados em qualquer livro simbolista da literatura mundial.

Por causa desse simbolismo, compreendemos a ânsia das igrejas tradicionais em defender a tese da virgindade de Maria. O que de início se queria demonstrar, porque é a realidade, é que o encontro com Deus só pode dar-se virginalmente, isto é, sem interferência de quem quer que seja. Nenhum mestre pode produzir no discípulo o encontro místico: só a Centelha Divina, só o Espírito da própria criatura, é que realiza o nascimento. Então, a concepção é realmente "virginal" e produto de "um espírito", não por obra de homem. Para defender essa ideia real e sublime, e fazê-la permanecer límpida e clara através dos séculos, as igrejas (mesmo que tivessem perdido a percepção do sentido íntimo) tinham que forçar o simbolismo através dos fatos, para deixar bem cristalino para as gerações futuras o ensinamento contido no Livro Santo. Em vista disso, "carregaram" as cores do quadro, para que O ensinamento se não perdesse nem maculasse através dos séculos. E dessa forma, todos os que tivessem "olhos de ver, ouvidos de ouvir e coração de entender" pudessem ser esclarecidos: não adiantaria buscar "fecundação" em nenhum mestre, porque o nascimento é virginal ("quando vos disserem eis aqui o Cristo ou ei-lo ali, não acrediteis", MT 24:33-26).

Evidentemente, o nascimento só poderá dar-se "quando se completarem os dias", isto é, quando o amadurecimento tiver chegado a termo; e o "filho" é sempre o "primogênito", já que, realizado numa existência, permanecerá o mesmo durante toda a eternidade (seu reino não terá fim. LC 1:33).