1. No terceiro dia, houve um casamento em Caná da Galileia, e achava-se ali a mãe de Jesus,
2. e foram convidados também Jesus e seus discípulos para o casamento.
3. Tendo acabado o vinho, a mãe de Jesus disse-1he: "Eles não têm mais vinho".
4. Respondeu-lhe Jesus: "Que (importa. isto) a mim e a ti, mulher? Ainda não chegou minha hora"
5. Disse sua mãe aos serviçais : "Fazei o que ele vos disser".
6. Ora, estavam ali colocadas seis talhas de pedra., das que os judeus usavam para as purificações, e continha cada uma duas ou três metretas.
7. Disse-lhes Jesus: "Enchei de água as talhas". Eles as encheram até a borda. .
8. Então lhes disse: "Tirai agora e levai ao presidente do banquete". E eles o fizeram.
9. Quando o presidente do banquete provou a água tornada em vinho, não sabendo donde era (mas o sabiam os serviçais, que haviam tirado água), chamou o noivo
10. e disse-lhe: "Todo homem põe primeiro o bom vinho, e quando os convidados se embriagaram então lhes apresenta o mais recente; mas tu guardaste o bom vinho até agora".
11. Jesus fez esta primeira demonstração em Caná da Galileia, e manifestou sua doutrina, e seus discípulos acreditaram nele.
"No terceiro dia" equivale ao que hoje costumamos dizer: "dois dias depois". Os gregos e romanos, ao estabelecer um lapso de tempo, começavam contando o próprio dia do início. Assim a relação entre um caso ocorrido, por exemplo, no dia 4 e outro no dia 6, este era dito: "no terceiro dia", considerando-se o próprio dia 4 como o 1. º, o dia 5 como 2. º e O dia, 6 como 3. º dia. Hoje costumamos dizer: "dois dias depois", sem fazermos conta do dia inicial. Assim, Jesus desencarnou na sexta-feira. e ressuscitou "no terceiro dia" isto é. "dois dias depois", no domingo.
Estamos, pois, no sétimo dia, a contar do primeiro episódio.
O casamento realizou-se na, cidade de Caná "de Galileia" (para distingui-la de Caná "de Aser"), a cidade natal do discípulo recém-chegado Natanael.
De quem teria sido o casamento? Nenhuma indicação. Qualquer suposição jamais poderia passar além de mera hipótese. Entretanto, Maria ali se achava como pessoa independente, como amiga da família, e não na qualidade de mãe de Jesus. Este é que parece ter sido convidado pelo único motivo de ser seu filho, e ali aparece com seus discípulos, como "convidados".
As festas das "bodas" (mishtitha, em aramaico) duravam uma semana e os convites eram amplos. Daí, por vezes, as previsões das quantidades de comida e bebidas poderem falhar. Pelo que transparece da narrativa, Maria observou essa dificuldade em relação ao vinho.com sua sensibilidade feminina de dona de casa.
Com a autoridade oriunda de amiga da família, toma as providências indispensáveis para contornar a dificuldade, recorrendo a alguém que ela sabia poder remediar a situação: avisa a Jesus que o vinho acabara e, de imediato, dirige-se aos serviçais ordenando-lhes que obedeçam a Jesus. Pelo que se percebe, parece mesmo tratar-se de pessoa da família, com a autoridade reconhecida pelos serviçais que lhe obedecem.
Consideremos a resposta de Jesus, analisando-a em seus pormenores:
1) Que nos importa isso a mim e a ti"?
As traduções correntes dão: "que tenho eu contigo"? Como se Jesus afirmasse nada haver entre ele e sua mãe, o que redundaria num desaforo ou, pelo menos, numa indelicadeza. Ora, o sentido do grego (e do latim, que traduziu muito bem o original) não é esse.
Comecemos pelo latim, mais acessível. A tradução "quid mihi et tibi" corresponde literalmente ao original grego. Trata-se de dois dativos de interesse, ou dativos "éticos", construídos em paralelo. Encontramos um exemplo dessa construção em Plauto (Rudens, 1307): "Sed quid tibi est"? (mas que te importa?).
Se o sentido fosse o das traduções vulgares, o latim teria uma construção diferente (quid mihi tecum est), como vemos ainda em Plauto (Men 323: "quid tibi mecum est rei"? (que é que tens comigo?) e em Ovidio (Tristes, 2, 1, 1): "quid mihi vobiscum est"? (que é que eu tenho convosco?). Então, se a expressão fosse esta, o latim teria um elemento em dativo e o outro em ablativo com cum, e jamais dois dativos em paralelo.
Essa mesma construção aparece ainda no Antigo e em o Novo Testamento várias vezes. Em todos os passos, é mais natural e conforme ao contexto a interpretação "que importa a mim e a ti"? (conforme traduz sistematicamente F. Vigouroux, "La Sainte Bible Polyglote, in locis). Uma vez, apenas, é pedido o sentido "que há entre ti e mim", quando em juízes
A palavra "mulher" nada tinha de ofensivo nem de menos respeitoso entre os orientais, os gregos e os romanos, tanto quanto nada tinha de desrespeitoso a palavra "homem". Se a semântica variou com o tempo, emprestando ao termo sentido depreciativo, culpa disso não cabe aos que o empregavam com todo o respeito naqueles idos. Hoje diríamos "senhora" (termo desconhecido naquela época). A palavra" mulher" era usada como tratamento de mulher casada, em oposição a "parthenos" (virgem), e denotava mesmo carinho e consideração (cfr Teócrito, 15:12 "olha, mulher, como ele te observa"!).
3) "minha hora ainda não chegou".
A terceira consideração referente a essa expressão visa a salientar, segundo os intérpretes, que não havia soado o momento de Jesus iniciar sua missão carismática na Judeia.
Maria, na realidade, não interpretou assim a resposta de Jesus (que teria sido uma recusa), tanto que dá ordens aos serviçais, e ordem taxativa: obedeçam ao que ele mandar. E a própria atuação de Jesus contradiz esse sentido, pois ele assume o comando da situação e manda encher de água seis (atenção ao número!) talhas de pedra, que serviam habitualmente para as abluções rituais dos israelitas. Nem eram vasilhas próprias para vinho: eram "tinas" ou "tonéis" em que os judeus se lavavam as mãos, os pés, os pratos, etc. Cada talha continha duas a três "metretas".
A "metreta" correspondia a um pé cúbico; dependia, então, do comprimento do pé (nas ilhas do Egeu valia 35,3 litros, mas em Esparta 74 litros). As medidas gregas principais eram o cotile (0,2047 lt, pouco menos de um copo); o xeste (2 cotiles, 0,4094 lt); o hemicoos (8 cotiles, 1,6376 lt), o coos (16 cotiles, 3. 275 lt) e a metreta (192 cotiles, 39,294 lt). As talhas tinham, pois, de 75 a 120 litros (de duas a três metretas). Notem que João está sempre a citar números: de duas a três metretas.
Uma vez cheias as talhas até a borda, Jesus manda que levem o novo vinho ao presidente do banquete, para que seja provado. Vem a cena da admiração, por causa da qualidade do produto. O texto é bastante claro, devendo notar-se apenas que vinho "recente" era considerado inferior, já que o bom vinho era o velho.
Grandes e profundos ensinamentos.
Observemos, de início, a sequência da manifestação dos ensinos relacionados pelo evangelista. 1. º dia (l. ª época) - a resposta de João Batista aos emissários do Sinédrio, exprimindo a personalidade pura, com todas as exigências "burocráticas" de uma sindicância. 2. º dia (2. ª época) - A apresentação de Jesus (a individualidade) aos discípulos, pelo Batista (a personalidade). 3. º dia (3. ª época) - Os discípulos de João seguem Jesus: abandono da personalidade para confiar-se à individualidade. 4. º dia (4. ª época) - Agrega-se à entrega a emoção (Simão) que tem o nome mudado para "pedra" ou" rocha", porque aí se baseará o desenvolvimento da era de "Pisces" (raio devocional), que é o emotivo, dirigido por Jesus. 5. º dia (5. ª época) - Interiorização no "Jardim fechado" (Galileia), levando consigo o intelecto (Natanael) e a intuição (Filipe). 6. º dia (6. ª época) - Meditação do ser unido a todos os seus veículos. 7. º dia (7. ª época) - As bodas ou o casamento do "espírito" reencarnado com o Espírito Eterno, em união mística, profunda e perene.
É deste último passo que trata o presente trecho evangélico, narrando-nos os pormenores que cercaram esse "casamento" entre os dois, essa Unificação perfeita.
As bodas realizam-se em Caná. "Qanáh" significa "cana" ou "caniço", a planta que nasce reta para o alto, como uma flecha que está para disparar verticalmente. É a flecha da oração que elevará as vibrações, partindo do "Jardim fechado".
Aproximando-se a hora do esponsalício, da união total, íntima e profunda, em que "os dois serão uma só carne" (GN
Compreendendo a advertência, a intuição volta-se para os veículos interiores (os serviçais), que são o corpo físico e o duplo etérico (sensações), as emoções e o intelecto, que servem ao Espírito, à individualidade.
O Espírito, então, observa que ali se encontram seis talhas de PEDRA.
Esclareçamos o sentido dos termos.
PEDRA exprime a interpretação literal das Escrituras: Moisés recebeu os mandamentos gravados em pedras (EX
ÁGUA simboliza a interpretação alegórica dessas mesmas Escrituras, o sentido extraído da letra: Moisés feriu a pedra e dela saiu água (EX
VINHO é a Sabedoria profunda, o sentido simbólico (místico) e espiritual, que inebria os sedentos da Verdade, e que alegra o coração (Mente) da criatura (Salmo
Quando a doutrina não é pura, Isaías o revela com estas palavras: o teu vinho está misturado com água" (IS
A narrativa evangélica é bastante clara: tomando as Escrituras Sagradas (talhas de pedra), Jesus manda que os serviçais (a personalidade) as encham de "água (de interpretações alegóricas). Eles o fazem. E o fazem bem, enchendo "até a borda". Esgotam os assuntos e as interpretações de que são capazes. Nesse momento, quando a personalidade está preparada, chega a individualidade (Jesus) e transforma a água em vinho, ou seja, transforma os ensinos alegóricos, em ensinos simbólicos, místicos, espirituais, cheios de sabedoria. Revela-lhes o que há de oculto na Palavra Sagrada.
Depois de fazê-lo, manda que levem essa Sabedoria (que proveio do coração), ao intelecto (o presidente do banquete), a fim de ser por este examinada, provada, saboreada e julgada racionalmente.
O intelecto maravilha-se diante daquela Sabedoria e mostra ao candidato à união (o noivo) que normalmente os homens não agem assim: o comum é dar-se aos convivas (às criaturas) uma boa doutrina, até que eles se embriaguem com ela (se fanatizem), e depois, então, quando querem aprofundar mais, colocam-lhe entre as mãos o vinho ordinário (ensinamentos medíocres) que são aceitos sem discernimento nem critério da razão, porque eles já estão embriagados e fanatizados.
Neste caso, porém, houve o inverso: foram sendo distribuídos vinhos mais ordinários (doutrinas simples e ingênuas) e só no final lhes é dada a Sabedoria profunda. O evangelista nota que o intelecto (o presidente do banquete) não sabia de onde provinha aquela sabedoria, mas sabiam-no os serviçais (a personalidade), que haviam colhido apenas a água da interpretação alegórica.
E realmente, ainda até hoje, o intelecto não se deu conta de que a Sabedoria Profunda vem do coração; e quando se diz isso, ele reluta em aceitar, porque, diz. "o coração é apenas um aglomerado de células musculares, propulsoras de sangue" ... Como se o cérebro, intermediário do intelecto que raciocina, não fosse apenas um conglomerado de células nervosas... O intelecto ainda ignora que "cérebro" e "coração" são apenas pontes, e que, na realidade, o intelecto pertence ao "espírito" (personalidade) e a Mente pertence ao Espírito (individualidade).
O bom vinho que os convivas beberam, foi bebido exatamente na união mística, quando os segredos da amada são revelados ao amante, numa união total, em que o vinho permeia todas as células, levado pelo sangue: assim a Sabedoria penetra e impregna todos os escaninhos do ser, quando a criatura atinge a Consciência Cósmica.
E o evangelista salienta em conclusão: esta foi a primeira demonstração da individualidade à personalidade (aos discípulos) revelando-lhes a Doutrina profunda. E os discípulos acreditaram. Depois da união do Espírito com o "espírito", este se convence e se entrega incondicionalmente à evidência dos acontecimentos.