Quem era esse moço, na época, não se chega a saber pelas vias normais da história. Mateus e Marcos dizem "alguém", enquanto Lucas afirma tratar-se de "certo potentado" (archôn, principal, chefe, príncipe).
Passado o episódio, desaparece totalmente eclipsado.
Outro pormenor de Lucas é que o moço, embora muito rico, se apresenta humilde, pois se ajoelha para falar com Jesus.
Marcos e Lucas anotam o diálogo que parece ter sido o original: "Bom mestre, que farei para ter em partilha a vida imanente" (didáskale agathé, tí poiêsô hína zôên aiônion klêronomesô;) Mateus torce a frase "Mestre, que farei de bom"?
Jesus rejeita o título de "bom", que só deve ser atribuído a Deus, demonstrando mais uma vez (cfr. MT
vol. 26 col.
136) procura, com belo malabarismo, justificar o dogma da divindade de Jesus: quia magistrum vocaverat bonum et non Deum vel Dei Filium confessus erat, discit quamvis sanctum hominem comparatione Dei non esse bonum, isto é, "porque chamara bom o mestre, mas não confessara que era Deus, aprende que, embora sendo um homem santo, não era bom em comparação com Deus".
Lemos em Mateus: "se queres entrar na vida, segue os mandamentos". Ao que o moço indaga poiãs," de que modo"? As traduções correntes trazem "quais"; mas para essa indagação, teria que ser usado o interrogativo tiná.
Em Marcos e Lucas, Jesus responde logo: "segue os mandamentos" e os cita.
Marcos acrescenta: "não defraudarás", ou seja, não negarás a quem quer que seja o que lhe for devido, bastante sintomático para quem era rico e podia, portanto, explorar os semelhantes.
Dos positivos, os três citam: honrarás pai e mãe; mas Mateus aduz ainda: "ama teu próximo como a ti mesmo" (LV
Conforme vemos, regras práticas e eficientes para a vida diária. Nada de altos voos místicos e ascéticos: preceitos para o comum dos homens normais e ainda materializados e apegados às personagens terrenas.
Ao ouvir as condições, o jovem retruca com simplicidade: "tudo isso tenho feito ou observado (ephylaxa, perfeito de duração) desde minha mocidade". Essas últimas palavras faltam em alguns códices, mas possuem todas as características de autenticidade: é comum aos jovens falar de sua mocidade como de algo distante no passado.
Depois dessas palavras, Jesus olha para ele (emblépsas) e o ama (agapésen, de agapáô, que é o amor com predileção afetuosa, vol.
2) anotação privativa de Marcos, talvez por informação de Pedro que assistiu à cena. Voltando-se, então, para o jovem, Jesus convida-o a participar de Sua Escola, tornando-se Seu "discípulo".
Mas para isso era indispensável aspirar à perfeição e, portanto, renunciar a todos os bens terrenos: "vai, vende tudo o que tens e distribui entre os mendigos (diadós, "dar em todas as direções", bem mais forte que o simples dós, usado o primeiro por Lucas).
O choque foi violento demais e o rapaz ficou triste (LC perílypos), com o sobrecenho carregado (Marcos: stygnasas) e afastou-se. Nunca mais dele se fala no Novo Testamento, como se tivesse desencarnado.
A primeira observação a fazer é que, no episódio, narrado com simplicidade, o moço se afasta triste e macambúzio, e no entanto Jesus não manifestou tristeza: apenas aproveitou a cena para tecer comentários e dar ensinos aos discípulos com referência às riquezas, sobre que já falara (cfr. MT
A atitude do jovem foi normal e humana, e Jesus não o repreende. Apenas assinala que a perfeição requer renúncia efetiva e total. Isso denota que não existe perfeição no modo de agir do moço, embora não esteja, por isso, condenado: pode ter acesso à vida.
Nesse terreno, muitos exemplos encontramos de criaturas que se elevaram espiritualmente, isto é, que evoluíram, em tarefas outras, também indispensáveis à humanidade, ainda que não constituam "per feição" espiritual. Assim os grandes industriais, comerciantes, artistas de todos os matizes podem firmarse no bem, sendo fiéis aos preceitos básicos requeridos na citação de Jesus.
Observemos que a perfeição é de alguns poucos, no sentido religioso. Se todos os homens se dedicassem à perfeição religiosa e à espiritualidade, a evolução planetária ficaria paralisada. Há missionários que vêm com tarefas espirituais e missionários que vêm com tarefas materiais, cuidando da parte econômica e financeira; os que plantam, os que colhem, os que armazenam para a revenda; os que desenham, os que constróem, os que decoram os edifícios; os que fabricam, estocam e distribuem as mercadorias, em troca do dinheiro que lhes possibilite prosseguir na produção de benesses; os que estudam, pesquisam e aplicam o resultado de sua ciência para proveito das criaturas humanas e dos animais e plantas; os que captam a inspiração para compor, os que orquestram e os que executam para deleite dos homens; os que legislam, julgam e governam cidades e povos na manutenção da ordem; os que defendem acusados, os que curam doentes, os que assistem nos templos, todos sem exceção, todas as profissões e trabalhos que apresentam SERVIÇO, dos mais elevados aos mais humildes, podem ser levados à Vida, embora nem todos alcancem a perfeição.
A resposta estava no mesmo nível da pergunta: para entrar na vida, são indispensáveis, mas bastam, os preceitos citados.
Todavia, se alguém busca a PERFEIÇÃO, há que primeiro desvencilhar-se de toda carga externa, de tudo o que está agregado de fora, de todas as posses (grandes ou pequenas) que tragam apego e vontade de defendê-las contra assaltos e preocupações de que não sejam roubadas, e cuidados para que se não estraguem. Daí a necessidade de vender TUDO e de distribuí-lo aos mendigos, aos que ainda desejam posses materiais.
Para conseguir a perfeição, a caminhada é longa e árdua, e qualquer carga impede que se entre através do "buraco da agulha", a "porta estreita" de que fala o Mestre (cfr. MT
Entretanto, temos que buscar interpretação mais profunda do texto. Para entrar na Escola Iniciática, deve o candidato desfazer-se de tudo, não em benefício da própria Escola (costume adotado através dos séculos pelos que ingressam nas ordens religiosas masculinas e sobretudo femininas), mas para distribuir aos mendigos. Nos capítulos seguintes veremos algo mais a respeito desse tema.
Não se pode, mesmo, misturar espírito com matéria, e a Escola terá que prover, pelo trabalho, ao próprio sustento e ao sustento de seus membros.
O episódio do "moço rico" ensina-nos ainda a luta que se trava dentro de nós mesmos quando, chamados pelo Cristo Interno a maior perfeição, temos pena de atender, porque os benefícios materiais e o conforto que desfrutamos nos acenam com prazeres maiores e mais imediatos, que esse atendimento a Voz silenciosa nos forçaria a largá-los. Como deixar de gozar a comodidade de um apartamento novo, o deleite de ficar conversando, em poltrona anatômica, diante da televisão, à noite, para sacrificarnos a estudar, a frequentar uma reunião, a escrever um artigo? Desculpamo-nos com a "indispensável assistência à família", embora o motivo principal nós o empurremos para o porão do subconsciente e nem dele tomemos conhecimento. Deixar de ir a um cinema? Ora, trata-se de uma higiene mental necessária a quem luta a semana inteira. Estudar aos domingos? Ah! esses pertencem à família!
... Vem então a solução "sábia", que pensamos desculpar-nos integralmente: "Pessoalmente não posso, mas arranjo meios, dinheiro, vantagens... faço minha parte... quando me aposentar" ... Então, deixamos para o Cristo os ossos reumáticos da velhice, e isso mesmo, porque na velhice já não temos mais esperança de arranjar novos empregos que nos proporcionem lucros ainda maiores.
Bem tipicamente escolhido o exemplo do moço rico. Porque na mocidade é que realmente se torna difícil o abandono do que se tem e do que se sonha, se aspira e se espera ter, para mergulhar numa vida de renúncia. Ricos "velhos" são mais facilmente encontrados com disposição de sacrificar uma parte, embora mínima, de seus bens ("sabe, tenho meus filhos, não posso prejudicá-los: a própria lei me proíbe fazer doações com o dinheiro que lhes constituirá a herança"!). No entanto, procuram doar alguma coisa para "comprar" um post mortem menos angustiado, pois lhes dói a consciência, ao recordarse das maneiras pouco legítimas ou totalmente ilegítimas com que, por meia da exploração ignóbil dos semelhantes, conquistaram aqueles bens. Então, quando sentem o peso dos anos e, olhando para o chão, já recurvados sob o guante da tempo, vêem o retângulo da sepultura a lentamente abrir-se, amedrontam-se e se tornam generosos, a isso compelidos pelos gritos dissonantes do remorso.
É o que diz o velho adágio: "o diabo, depois de velho, fez-se ermitão".
Quem ama, procura doar-se o mais cedo possível. Qual o noivo que diz à noiva querida: "vou enriquecer primeiro; quando me aposentar, casarei contigo"? Assim, porém, fazem os jovens com o Cristo Interno que os convoca ao Amor.