Crônicas de Além-Túmulo

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Capítulo XX

Pedro, o Apóstolo

Enquanto a Capital dos mineiros, dirigida pelos seus elementos eclesiásticos, se prepara, esperando as grandes manifestações de fé do segundo congresso Eucarístico Nacional, chegam os turistas elegantes e os peregrinos invisíveis. Também eu quis conhecer de perto as atividades religiosas dos conterrâneos de Augusto de Lima.

Na praça Raul Soares, espaçosa e ornamentada, vi o monumento dos congressistas, elevando-se em forma de altar, onde os atos religiosos serão celebrados. No topo, a custódia, rodeada de arcanjos petrificados, guardando o símbolo suave e branco da eucaristia, e, cá em baixo, nas linhas irregulares da terra, as acomodações largas e fartas, de onde o povo assistirá, comovido, às manifestações de Minas católica.

Foi nesse ambiente que a figura de um homem trajado à israelita, lembrando alguns tipos que em Jerusalém se dirigem, frequentemente, para o lugar sagrado das lamentações, aguçou a minha curiosidade incorrigível de jornalista.

— Um judeu?! — exclamei, aguardando as novidades de uma entrevista.

— Sim, fui judeu, há algumas centenas de anos — respondeu laconicamente o interpelado.

Sua réplica exaltou a minha bisbilhotice e procurei atrair a atenção da singular personagem.

— Vosso nome? — continuei.

— Simão Pedro.

— O Apóstolo?

E a veneranda figura respondeu afirmativamente, colando ao peito os cabelos respeitáveis da barba encanecida.

Surpreso e sedento da sua palavra, contemplei aquela figura hebraica, cheia de simplicidade e simpatia. Ao meu cérebro afluíam dezenas de perguntas, sem que pudesse coordená-las devidamente.

— Mestre — disse-lhe, por fim —, vossa palavra tem para o mundo um valor inestimável. A cristandade nunca vos julgou acessível na face da Terra, acreditando que vos conserváveis no Céu, de cujas portas resplandecentes guardáveis a chave maravilhosa. Não teríeis algumas mensagens do Senhor para transmitir à Humanidade, neste momento angustioso que as criaturas estão vivendo?

E o Apóstolo venerável, dentro da sua expressão resignada e humilde, começou a falar:

— Ignoro a razão por que revestiram a minha figura, na Terra, de semelhantes honrarias. Como homem, não fui mais que um obscuro pescador da Galileia e, como discípulo do Divino Mestre, não tive a fé necessária nos momentos oportunos. O Senhor não poderia portanto, conferir-me privilégios, quando amava todos os seus apóstolos com igual amor.

— É conhecida, na história das origens do Cristianismo, a vossa desinteligência com Paulo de Tarso. Tudo isso é verdadeiro?

— De alguma forma, tudo isso é verdade — declarou bondosamente o Apóstolo. — Mas, Paulo tinha razão. Sua palavra enérgica evitou que se criasse uma aristocracia injustificável, que, sem ele, teria de desenvolver-se fatalmente entre os amigos de Jesus, que se haviam retirado de Jerusalém para as regiões da Bataneia.

— Nada desejais dizer ao mundo sobre a autenticidade dos Evangelhos?

— Expressão autêntica da biografia e dos atos do Divino Mestre, não seria possível acrescentar qualquer coisa a esse livro sagrado. Muita iniquidade se tem verificado no mundo em nome do estatuto divino, quando todas as hipocrisias e injustiças estão nele sumariamente condenadas.

— E no capítulo dos milagres?

— Não é propriamente milagre o que caracterizou as ações práticas do Senhor. Todos os seus atos foram resultantes do seu imenso poder espiritual. Todas as obras a que se referem os Evangelistas são profundamente verdadeiras.

E, como quem retrocede no tempo, o apóstolo monologou:

— Em Cafarnaum, perto de Genesaré, e em Betsaida, muitas vezes acompanhei o Senhor nas suas abençoadas peregrinações. Na Samaria, ao lado de Cesareia de Filipe, vi suas mãos carinhosas dar vista aos cegos e consolação aos desesperados. Aquele sol claro e ardente da Galileia ainda hoje ilumina toda a minha alma e, decorridos tantos séculos depois de minhas lutas no mundo, ao lado de alguns companheiros procuro reivindicar para os homens a vida perfeita do Cristianismo, com o advento do Reino de Deus, que Jesus desejou fundar, com o seu exemplo, em cada coração.

— Os filósofos terrenos são quase unânimes em afirmar que o Cristo não conhecia a evolução da ciência grega, naquela época, e que as suas parábolas fazem supor a sua ignorância acerca da organização política do Império Romano; seus apóstolos falam de reis e príncipes que não poderiam ter existido.

— A ação do Cristo — retrucou o apóstolo — vai mais longe que todas as atividades e investigações das filosofias humanas. Cada século que passa imprime um brilho novo à sua figura e um novo fulgor ao seu ensinamento. Ele não foi alheio aos trabalhos do pensamento dos seus contemporâneos. Naquele tempo, as teorias de Lucrécio, expendidas alguns anos antes da obra do Senhor, e as lições de Filon em Alexandria eram muito inferiores às verdades celestes que ele vinha trazer à Humanidade atormentada e sofredora…

E, quando a figura veneranda de Simão parecia prestes a prosseguir na sua jornada, inquiri, abruptamente:

— Qual o vosso objetivo, atualmente, no Brasil?

— Venho visitar a obra do Evangelho aqui instituída por Ismael, filho de Abraão e de Agar e dirigida dos Espaços por abnegados apóstolos da fraternidade cristã.

— E estais igualmente associado às festas do segundo Congresso Eucarístico Nacional? — perguntei.

Mas, o bondoso Apóstolo expressou uma atitude de profunda incompreensão, ao ouvir as minhas derradeiras palavras.

Foi quando, então, lhe mostrei o rico monumento festivo, as igrejas enfeitadas de ouro, os movimentos de recepção aos prelados, exclamando ele, afinal:

— Não, meu filho!… Esperam-me longe destas ostentações mentirosas os humildes e os desconsolados. O Reino de Deus ainda é a promessa para todos os pobres e para todos os aflitos da Terra. A Igreja romana, cujo chefe se diz possuidor de um trono que me pertence, está condenada no próprio Evangelho, com todas as suas grandezas bem tristes e bem miseráveis. A cadeira de São Pedro é para mim uma ironia muito amarga… Nestes templos faustosos não há lugares para Jesus, nem para os seus continuadores…

— E que sugeris, Mestre, para esclarecer a verdade?

Mas, nesse momento, o Apóstolo venerando enviou-me um gesto compassivo e piedoso, continuando o seu caminho, depois de amarrar, resignadamente, o cordão das sandálias.


(.Irmão X)


25 de agosto de 1936.



Humberto de Campos
Francisco Cândido Xavier


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