Crônicas de Além-Túmulo
Versão para cópiaCarta aberta ao Sr. Prefeito do Rio de Janeiro
Sr. Prefeito do Distrito Federal. Dirijo-me a V. Ex.a para ponderar um dos últimos atos de sua administração na velha cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro, não obstante as minhas condições de jornalista desencarnado, e apesar do estado de guerra vigente no país.
Todavia, declinando essas circunstâncias, devo confessar, em defesa do meu gesto, que minha palavra humilde não visa a nenhum instituto político ou social do Brasil, para fixar-se somente na questão de humanidade.
É uma verdade inconteste que V. Ex.a se torna duplamente respeitável, não só pela sua condição de autoridade suprema de uma cidade em que palpitam seguramente dois milhões de corações humanos, senão também pela sua qualidade de sacerdote, e é talvez por isso que a minha ponderação se faz um tanto mais grave.
Não lhe venho falar dos inquéritos administrativos nos departamentos públicos afetos à sua autoridade, e sim dizer-lhe do seu ato pessoal, opondo o veto à subvenção de cinquenta contos, concedida pelos seus antecessores ao Abrigo Teresa de Jesus, instituição venerável que um punhado de espiritistas abnegados fundou no Rio, há alguns anos, e que todos os cariocas se habituaram a admirar, com o seu apoio e com o seu respeito.
A atitude de V. Ex.a é estranhável, não só em face da sua condição de ministro da Igreja Católica, como pelo seu conhecimento acerca das misérias da nossa urbe, que os apaixonados do samba brasileiro apelidaram de cidade maravilhosa.
Cinquenta contos, Sr. Prefeito, como subvenção a uma instituição dessa natureza, que já conseguiu afastar dos antros viciosos algumas centenas de criaturas, infundindo-lhes noção do dever social, cívico e humano, modelando heróis para os combates com as adversidades terrenas, representa uma percentagem muito mesquinha, em face das verbas despendidas com as obras suntuárias dos serviços públicos.
Antes de regressar desse mundo, onde perdi todas as ilusões e todas as esperanças, com respeito à objetivação de uma sociedade organizada na base dos verdadeiros interesses cristãos, muitas vezes deixei escapar do peito dilacerado o meu grito de dor pela nossa infância desvalida. Enquanto os governos instituíam as mais grossas subvenções para as festas carnavalescas e para a propaganda turística do Brasil no estrangeiro, via eu as nossas crianças desamparadas, doentes e esqueléticas, estendendo a mão mirrada à piedade das praças públicas. Se as dores não me viessem sufocar tão cedo os sagrados entusiasmos do coração, teria objetivado um largo movimento intelectual, em favor da instituição do livro e do pão para o menino dos nossos morros, onde com as vozes inocentes do samba se misturam os gemidos de todas as misérias.
Veja pois, Excelência, a necessidade de se subvencionarem, e largamente, todas as iniciativas sociais que se organizem para proteger a criança desamparada, que virá a ser o homem de amanhã. Nestes tempos de negro materialismo, que parece invadir todos os institutos criados com o rótulo da civilização cristã, as autoridades legalmente constituídas têm de colocar os interesses humanos acima de todos os preconceitos sociais e religiosos. Seu coração de administrador e de cristão possui vasta experiência desses assuntos, sendo desnecessário que a minha palavra lhe encareça a inoportunidade do seu veto pessoal a esse auxilio financeiro à instituição referida, que é um admirável núcleo cultural do Rio de Janeiro, onde se criam as células sadias do organismo coletivo de amanhã.
V. Ex.a não ignora que todas as questões transcendentes, apresentadas como insolúveis às vistas dos sociólogos modernos, complicando o mecanismo da vida dos povos, são de natureza educativa. Os problemas brasileiros são quase todos dessa ordem. Bem sabe que, mesmo em nossa história, existem páginas que implicam em si a veracidade do que afirmamos. Não se lembra da luta armada de Canudos, onde pereceram tantas energias da mocidade brasileira? O resultado dessa campanha seria outro, se, em vez da primeira expedição militar, mandássemos para ali uma dúzia de professores. As armas a serem detonadas naquele ambiente sertanejo deveriam ser as do alfabeto, como asseverava o nosso Euclides. O banditismo do Nordeste, as falanges de Lampião, as multidões místicas e delinquentes que, de vez em quando, surgem no quadro mesológico da nossa evolução coletiva, são problemas do livro e nada mais.
Desejaria, pois, o Sr. Prefeito do Distrito Federal absorver-se no partido político, nas intrigas de gabinete, nas homenagens dos louvaminheiros da autoridade pública, esquecendo-se da parte mais importante de suas atribuições, junto às coletividades do seu país?
Não acreditamos, igualmente, que o seu ato seja o fruto de uma represália à atitude desassombrada de criaturas estudiosas, que tentam elucidar as questões da Igreja Católica, da qual é um dedicado servidor. A luta é de princípios e não de personalidades; e esse combate ideológico é indispensável, nos bastidores em que se processa a evolução das consciências e das doutrinas. E para todos os combatentes, irmanados no mesmo idealismo do Evangelho, deverá existir, indubitavelmente, um traço de união acima de todas as polêmicas e de todas as controvérsias, que é o da fraternidade do Cristo. Um homem ou uma instituição podem crescer no conceito das coletividades pelas suas conquistas, pelos seus poderes transitórios, pela sua fortuna, mas serão sempre assinalados pela ilusão, se lhes faltarem os princípios humanos da caridade.
Conta-se aqui, Sr. Prefeito, que um dia quis o Senhor reunir sob os seus olhos todos os sábios que chegavam da Terra. Teólogos eminentes, filósofos, artistas do pensamento e da ação, matemáticos, geômetras e literatos ilustres.
— “Senhor, dizia um deles, eu ampliei a técnica dos homens, no problema das ciências…”
— “Eu, repetia outro, procurei imprimir uma fase nova às letras do mundo…”
— “Minha vida, Senhor, exclamava ainda outro, foi toda empregada no laboratório, em favor da Humanidade…”
Mas o Senhor replicou-lhes na sua misericórdia:
— “Todas as vossas ciências são respeitáveis, mas valerão muito pouco se não tivestes caridade. Toda sabedoria, sem a bondade, é como luz que não aquece, ou como flor que não perfuma… A questão da felicidade humana está claramente resolvida na prática do meu Evangelho, como a solução algébrica define os vossos problemas de matemática. O Reino do Céu ainda é a mansão prometida aos simples e pobres da Terra, que vêm a mim isentos de soberba e de vaidade!…”
Aqui, Sr. Prefeito, não se mede o Espírito pela posição que haja ocupado no mundo. A indumentária nada representa para as leis sábias e justas da Espiritualidade. Não obstante os seus conhecimentos teológicos, não se esqueça de que os manuais dos santos são compêndios de teorias da Terra. A prática é bem outra e é desta que voltamos para lhe falar dos argumentos mais firmes.
Aproveite a oportunidade que Jesus lhe colocou em mãos e reconsidere o seu ato, reparando-o. Sua memória será então abençoada pela infância brasileira, votada ao desamparo pelos nossos políticos, que cuidam durante a vida inteira dos seus interesses e dos seus eleitorados. E um dia, quando não for mais o Sr. Prefeito Municipal e sim o nosso irmão Olímpio, seu coração há-de sentir, nos mais recônditos refolhos, a suavidade das mãos veludosas do Jardineiro Divino, plantando os lírios perfumados da paz nas profundezas do seu mundo íntimo. E, quando essas flores destilarem nos seus olhos o aroma bendito das lágrimas de gratidão e reconhecimento, uma voz branda e suave murmurará aos seus ouvidos: — “Guarda, meu filho, a minha recompensa. Regozija-te no Senhor, pois que foste meu servo e tiveste caridade!…”
(.Irmão X)
18 de dezembro de 1936.
Acima, está sendo listado apenas o item do capítulo 23.
Para visualizar o capítulo 23 completo, clique no botão abaixo:
Ver 23 Capítulo Completo
Este texto está incorreto?