Filosofia cósmica do evangelho
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"MUITOS PECADOS LHE SÃO PERDOADOS, PORQUE MUITO AMOU"
A atitude de Jesus em face do sexo feminino é algo inteiramente inédito na história da Humanidade, revelando, mais que outra coisa qualquer, a grandeza cósmica do Nazareno.
Para o homem comum, há três atitudes possíveis em face da mulher:
1) adoração;
2) desprezo;
3) indiferença.
Nenhuma dessas três atitudes caracteriza a pessoa de Jesus.
O homem que adora a mulher, o "eterno feminino", considera-a como uma espécie de divindade, e a si mesmo como um humilde escravo dessa deusa.
O homem que despreza a mulher serve-se dela, geralmente como de um instrumento para satisfazer os seus instintos masculinos, e esse desprezo é, comumente, chamado "amor". Quase tudo que, no domínio da nossa literatura romântica, nas películas de cinema e na vida social passa por "amor", é simples sexualismo, mais ou menos bem disfarçado em afeição. Servir-se duma pessoa para satisfazer o seu egoísmo sexual é desprezar essa pessoa, porque ela nos serve apenas como um meio para um fim alheio ao valor humano dela.
À margem dos adoradores e desprezadores da mulher, vivem os homens que professam atitude de indiferença em face do sexo feminino, espécie de neutralidade psíquica, que tanto pode provir de uma natural deficiência do homem não plenamente masculino, como também pode ser uma "virtude" ascética laboriosamente adquirida. E, neste último caso, a "frieza" sexual do homem ascético é o resultado de um secreto medo e duma inconfessada fraqueza que ele sente em face da mulher, o secreto receio de sucumbir aos encantos de alguma Beatriz ou às seduções de uma Circe, receio quiçá inconsciente, que leva esses homens a se revestirem duma couraça de gelo, a fim de manterem distante o fogo de algum vulcão feminino.
Não encontramos em Jesus nenhuma dessas três atitudes em face de Eva: nem adoração, nem desprezo, nem indiferença. E, o estranho é que quase todas as figuras femininas do Evangelho que cruzam os caminhos do Nazareno têm fama de impuras: a Madalena, pecadora pública possessa de sete demônios; a samaritana, que casara cinco vezes e vivia, nesse tempo, com um homem que nem era seu marido; a mulher adúltera apanhada em flagrante.
A mais famosa dessas mulheres pecadoras é, sem dúvida, a formosa estrela de Magdala, que adquiriu excepcional celebridade, como qualquer miss dos nossos tempos, não só nas páginas do Evangelho e na história do Cristianismo, como também na literatura mundial e na arte.
Pouco sabemos da vida ulterior da samaritana e da mulher adúltera absolvida por Jesus. Muita coisa, a coisa gloriosa, sabemos daquela que, após a sua "conversão", se tornou a mais ardente discípula do Nazareno.
A teologia eclesiástica de Roma popularizou o conceito, hoje quase proverbial, de que a maior das virtudes seja a castidade, ou, mais especificamente, a virgindade duma pessoa. Desde que, no século XI, o celibato clerical se tornou obrigatório nessa igreja, era lógico que à virgindade fosse conferida primazia entre todas as virtudes, uma vez que era (ou pelo menos devia ser) a virtude clássica do sacerdote celibatário; e como o sacerdote é apontado ao leigo como a quintessência da espiritualidade e do Cristianismo, era evidente que tanto mais espiritual e cristã era uma pessoa quanto mais virginal.
Entretanto, Jesus nada sabe dessa primazia da virgindade. Para ele, o amor é a maior das virtudes, a quintessência do Cristianismo, a perfeição máxima do homem e da mulher, o amor puro e universal que ele recomenda a seus discípulos como supremo distintivo do seu Evangelho. Não mandou a seus apóstolos que fossem celibatários, mas que se amassem uns aos outros.
Quando o doutor da lei quis saber qual era o mandamento maior da lei, não cantou o Nazareno as excelências da virgindade, mas sim a apoteose do amor.
A mais gloriosa página escrita por São Paulo – aliás considerado antifeminista e advogado do celibato – é o capítulo 13 da primeira Epístola aos Coríntios, e essa página não enaltece a virgindade, mas o amor.
A Madalena era tudo, menos virgem. Disto sabia Jesus. E, no entanto, ele a aceita publicamente como sua genuína discípula e a defende contra as impiedosas invectivas do ascético fariseu Simão e até contra as críticas dos seus próprios discípulos. Mais tarde, concede-lhe o privilégio único da sua primeira visita na madrugada da primeira Páscoa, e incumbe-a explicitamente de servir de primeira mensageira oficial da ressurreição perante os discípulos.
Segundo certas teologias ascéticas de hoje, é tudo isto estranho; mas para Jesus o amor é tudo menos aquilo que os homens mundanos costumam chamar amor, é um amor puro e dinâmico que destrói tudo que o pseudo-amor impuro construiu na vida humana, assim como um violento incêndio reduz a cinzas e fumaças qualquer quantidade de combustível.
E, o que é sumamente fascinante, a própria Madalena compreende intuitivamente esse espírito de Jesus e sua nova atitude em face dele. Apesar da sua vida passada, não se julga indigna de ser a discípula número um do profeta de Nazaré; não se esquiva da presença do Mestre com alegações de pretensa "humildade"; presta-lhe o mais apaixonado serviço que uma alma feminina pode prestar a um homem que ela, ao mesmo tempo, ama e respeita.
Deixara o fariseu de oferecer água e toalha para lavar e enxugar os pés do hóspede, Madalena supre essa falta; não manda buscar uma bacia d’água, mas substitui a água, impessoal e fria, com o calor tão pessoal e quente das lágrimas de seus olhos. Nem manda vir uma toalha inerte para enxugar os pés do querido Mestre, mas lança mão da suave maciez da sua linda cabeleira para prestar a Jesus uma prova de afeição eminentemente pessoal, não menos de discípula que de mulher. Depois, abre um frasco de essência perfumosa e de tão elevado preço que Judas, perito no assunto, se revoltou contra semelhante "desperdício"; o amor, porém, não sabe nada de "desperdício", porque quem se "perdeu" em outra pessoa está disposto a "perder" tudo por amor ao ente amado, na certeza de que toda a perda é lucro. E a Madalena deita o conteúdo do frasco sobre os pés e a cabeça do Mestre querido e completa essa homenagem espalhando o precioso unguento com os beijos dos seus lábios.
O "escândalo" era completo, de maneira que até os discípulos de Jesus se revoltaram. O Nazareno, porém, aceita em silêncio essa homenagem da parte duma mulher que, na opinião pública, continuava a passar por uma pecadora.
Como é tão diferente a filosofia cósmica do Nazareno das teologias espiritualistas dos mestres humanos!
Jesus.
Não adora a mulher.
Não despreza a mulher.
Não é indiferente à mulher.
Não receia a mulher.
Não foge da mulher.
Aceita o amor puro de uma chamada "impura".
Não se escandaliza, como o fariseu.
Não se revolta, como Judas e os demais discípulos.
Defende o "desperdício" que uma ardente discípula faz com seu querido Mestre.
Permite que a Madalena desabafe, finalmente, em público, a plenitude do seu coração de fogo na ardente homenagem ao único homem plenamente humano e totalmente divino que encontrou nos caminhos tortuosos da sua vida, finalmente retificada. De fato, o que os machos humanos haviam dado a essa mulher era apenas aquilo que toda fêmea humana deseja – mas nenhum deles lhe dera aquilo por que todo o seu ser humano anseia: compreensão, reverência, delicadeza, simpatia, estima, amor.
A Madalena, nada virgem de corpo, era perfeitamente virgem de alma;
acasalada com muitos, não casara com ninguém; as núpcias do seu verdadeiro Eu, humano e feminino, nunca haviam sido celebradas. E foi por isto que ela, a ardente virgem de Mágdala, pôde celebrar, finalmente, as suas verdadeiras e eternas núpcias com o divino Lógos, o Verbo que se fizera homem em Jesus, cheio de graça e de verdade.
Simão, o fariseu, nada compreendeu desse mistério que se passava em sua casa; só sabia, ou julgava saber, que essa mulher era uma pecadora; mas não sabia que ela era a virgem pura do livro dos Cantares; que ela, mesmo sem o conhecer, passara a vida toda suspirando pelo Esposo, em longas noites de agonia anônima, e dele era noiva ignota – até, finalmente, se lhe prostrar aos pés e reconhecê-lo pelo grande e único Amor de sua vida.
Apesar desse impetuoso amor de Madalena, ela, guiada por uma intuição infalível, sempre se mantém a reverente distância de Jesus; sempre se sente "discípula" do grande "Mestre"; sente-se bem aos pés dele, não reclama lugar ao lado dele. Sente-se qual humilde violeta a florir, feliz, à sombra do Himalaia;
não pretende ser um edelweiss no cume da montanha. Em casa do fariseu, jaz aos pés do Mestre; no horto do Getsêmani, na alvorada da Páscoa, abraça-se com os pés do Mestre – ela, a feliz discípula, ela, a ditosa violeta à sombra do gigantesco Himalaia do seu místico Esposo. . .
Não parece que a Madalena fugiu das páginas do Cântico dos Cânticos?
Poderia repetir tudo que, nesse poema erótico-místico, disse a Esposa ao Esposo tão longínquo – e tão propínquo. . .
Entretanto, para se sentir o que ela sentiu, deve-se ser o que ela era.
Muitas são o que Madalena foi – poucas se tornam o que ela se tornou. "Os seus muitos pecados lhe são perdoados, porque muito amou. " De muitas são os muitos pecados – de poucas é o grande amor.
Todas as águas turvas da vida libidinosa da pecadora abismaram-se, finalmente, na imensa limpidez do divino oceano de Lógos que se fez homem em Jesus e habita entre nós. . .
E houve hosanas e aleluias na alma da Madalena. "GRAÇAS TE DOU, PORQUE NÃO SOU COMO O RESTO DOS HOMENS"
A mais funesta das doenças morais se chama "complexo de virtuosidade". É relativamente fácil curar uma pessoa que sofre da consciência do seu pecado – mas é quase impossivel curar alguém que sofre do complexo de virtude, heroísmo ou santidade.
O pior dos doentes é aquele que considera saúde a sua doença.
Jesus fotografou magistralmente um desses tipos irremediavelmente virtuoso " – o fariseu do templo. Coloca-se ele, afoitamente, ao pé do altar e lá das excelsas alturas do Himalaia do seu vertiginoso orgulho espiritual, declama perante Deus a estatística dos pecados alheios e o catálogo das virtudes próprias: "Graças te dou, meu Deus, porque não sou como o resto dos homens: ladrões, injustos, adúlteros, nem como esse publicano aí. Eu jejuo duas vezes por semana e dou o dízimo de todos os meus haveres. " Essa "oração" é uma obra-prima de psicologia. Em primeiro lugar, o fariseu apaga todas as luzes ao redor de si, estabelecendo completa escuridão: todos os outros homens do mundo são maus. E, no meio desse black-out total, acende ele o farol – ou antes faz esse vagalume luzir as lanternas fosfóreas das suas luzes pessoais: ele é um homem austero, com dois jejuns semanais, e um homem desapegado dos bens terrenos, tanto assim que dá 10% dos seus haveres para fins de beneficência ou religião. E, como vigoroso ponto final dessa obra-prima de orgulho, dá o fariseu um pontapé moral a seu colega de culto, o publicano.
É praxe de todos os intoxicados de autocomplacência e narcisismo moral pintarem primeiro um fundo bem escuro, negando aos outros homens toda e qualquer perfeição, a fim de fazerem ressaltar sobre essa tela noturna os vivos esplendores da sua pretensa perfeição. Fazem como o vagalume, que só voa de noite, porque, em plena luz do dia, não seriam assaz visíveis as suas lanternas fosforescentes, que ele – pelo menos o vagalume humano – considera um par de sóis deslumbrantes, os únicos luzeiros do universo. "E voltou este para casa não ajustado. " Quem se considera justo não pode ser ajustado, porque não é ajustável. O pecador que nega o seu pecado não pode ser perdoado. Não possui a necessária "pobreza pelo espírito" e "pureza de coração" para ver a Deus e entrar no reino dos céus; não tem "fome e sede da justiça"; quem está cheio do ego não pode ser enchido de Deus. O ego desse homem enche todos os espaços internos da sua personalidade, de tão inchado que está. Ao lado desse eu, inflado de autocomplacência e ego-satisfação não há lugar para o Tu divino.
Para que o homem possa ser remido, é condição indispensável que primeiro sinta dolorosamente a sua vacuidade e miséria; que seja torturado de pungente inquietude metafísica; que sofra o naufrágio do próprio ego e se afogue no mar de uma profunda humildade e desconfiança de suas forças individuais; que desça ao ínfimo nadir da consciência da sua nulidade pessoal, e de lá erga os olhos e as mãos para o supremo zênite da onipotência divina. Só assim poderão as ondas bravias dos oceanos de Deus lançar esse náufrago de si mesmo às praias redentoras de algum Cosmorama, a alguma ilha em pleno mar.
A humana miséria clamando pela divina misericórdia.
Grandes coisas pode Deus fazer pelo homem – suposto que o homem lhe abra as portas.
Enquanto o Lúcifer do homem mental crê em ego-redenção não pode o divino Lógos redimi-lo, porquanto Deus "sacia de bens os famintos e despede vazios os fartos", "exalta os humildes e derriba do trono os soberbos".
Há uma auto-redenção, é verdade; mas não a ego-redenção que o fariseu pretendia. Não é o ego físico dos sentidos, nem o ego mental do intelecto que pode redimir o homem, porque esses pseudo-eus são essencialmente egoístas, e egoísmo é irredenção. De fato, o ego físico, o corpo, não se arvora em redentor, porque não possui suficiente consciência para isto; o que se arroga esse privilégio é invariavelmente o ego mental, a "velha serpente", o Lúcifer do intelecto, quando, qual Narciso ególatra, se mira complacentemente no espelho do seu próprio esplendor, dificilmente se convence de que a posse dessas grandezas não seja redenção. Chega ao ponto de exigir que o divino Lógos, o Cristo, lhe caia aos pés e o adore como suprema divindade do universo. Abaixo do Cristo, é Lúcifer o mais deslumbrante dos Seres – e que admira que não se queira converter e aceitar a soberania do Lógos? Através de todos os tempos, tem o intelecto luciférico procurado convencer o homem de que redenção consiste em "converter pedras em pão", creando abundância de fartura material; ou então, em se jogar de altos pináculos e conservar-se ileso por forças mágicas, ou, finalmente, em ser ditador de "todos os reinos do mundo". Não atende ao convite do Cristo de lhe ir na retaguarda ("vade retro!"), segui-lo como servo obediente e dócil. Lúcifer quer ser servido, não quer servir.
Todo homem empolgado por essa mentalidade é irredimível; o funesto complexo de sua virtuosidade e perfeição lhe fecha todas as portas para a redenção.
Quem o poderá redimir seria o Cristo, ele, que está com cada um de nós, todos os dias até à consumação dos séculos; ele, que "ilumina a todo homem que vem a este mundo"; ele, que vive em cada um de nós como nosso Eu divino e eterno. É o Cristo eterno do grande Além-de-fora – é o Cristo interno do grande Além-de-dentro. Todo homem pode ser redimido por esse seu Cristo, o seu verdadeiro Eu divino – e neste sentido há uma auto-redenção, porque esse Cristo interno de cada homem é o mesmo Cristo que estava e está em Jesus de Nazaré. E o meu Cristo pode fazer por mim as mesmas obras que fez por meio de Jesus – suposto que eu renasça pelo espírito e assim receba o poder de me tornar filho de Deus.
O fariseu no templo, porém, não apelou para o seu Cristo; fez valer o seu Lúcifer satanizado, que o levou a desprezar seus semelhantes como pecadores e atribuir a si mesmo santidade através de complacentes jejuns e obras de beneficência. Vivia na ilusão de que algo que ele fizesse o pudesse fazer bom, quando não é o nosso fazer, mas sim o nosso ser que nos faz bons ou maus.
Mas o nosso verdadeiro ser é Deus mesmo, o Cristo em nós. Eu sou a minha alma, o meu Eu divino – mas eu tenho um ego humano. Não me redime nem me faz bom o que apenas tenho – só me redime e me faz bom o que eu sou.
O que é meu é quantidade externa – o meu Eu é qualidade interna.
A Verdade nos liberta – a inverdade nos escraviza.
A Verdade é que eu sou a minha alma divina – a inverdade é que eu seja o meu corpo ou meu intelecto humanos, e esta inverdade me mantém preso no cárcere da minha escravidão. E ainda que eu pinte de ouro as grades férreas do meu cárcere e lhe chame "meu palácio", não deixa de ser prisão, dourada ou não.
Uma vez que eu sou divino no meu íntimo ser, devo viver divinamente no meu externo agir. Devo sintonizar o meu viver com o meu ser.
Deus é amor e Deus age como amor.
Eu sou amor como Deus – mas ainda não ajo com amor como Deus.
E nessa discrepância entre o que eu sou e o que eu faço, entre a metafísica do meu ser e a física do meu agir – é que está o meu pecado. O meu agir desmente o meu ser!
Mas se eu, como o publicano clarividente e humilde, conhecer e reconhecer que o que me redime não é o meu pequeno pseudo-eu humano, mas sim o grande Tu divino – que é também o meu verdadeiro Eu humano – então voltarei para casa "ajustado", devidamente ajustado à Norma Absoluta de toda a retitude do universo.
E o fariseu, apesar de tão virtuoso, estava desajustado de Deus, porque não era um Eu sapiente. Não estava liberto pela consciência da Verdade libertadora.
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