Parnaso de além-túmulo

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CAPÍTULO 15

Augusto dos Anjos


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Paraibano. Nasceu em 1884 e desencarnou em 1914, na cidade de Leopoldina, Minas. Era professor no Colégio Pedro II. Inconfundível pela bizarria da técnica, bem como dos assuntos de sua predileção, deixou um só livro — Eu — que foi, aliás, suficiente para lhe dar personalidade original.


VOZ DO INFINITO

I

No excêntrico labor das minhas normas

Na Terra, muita vez me consumia

Perquirindo nas leis da Biologia

As expressões orgânicas das formas.


O fenômeno apenas, porque o fundo

Do número às eternas rutilâncias,

Eram partes do Todo nas Substâncias

Desde o estado prodrômico do mundo.


Com o espírito absconso em paroxismos,

No rubro incêndio de batalha acesa,

Via Deus adstrito à Natureza,

Deus era a lei de eternos transformismos.


Concepção panteística, englobando

As substâncias todas na Unidade,

Perpetuando-se em continuidade,

A essência onicriadora reformando.


O corpo, desde o embrião inicial,

Era um mero atavismo revivendo;

A alma era a molécula, sofrendo,

Afastada do Todo Universal;


Dominava-me todo o medo horrível,

Do meu viver, que eu via transtornado:

Eu era um átomo individuado

Em cerebralidade putrescível.


À luz dessa dourada ignorância,

E com certezas lógicas, numéricas,

Notava as pestilências cadavéricas

Iguais à carne angélica da infância;


A sutilez do arminho que se veste,

A coroa aromática das flores,

Irmanadas aos pútridos fedores

De emanações pestíferas da peste!


Extravagância e excesso jamais visto,

De ideia que esteriliza e desensina,

Loucura que igualava Messalina

À pureza lirial da Mãe do Cristo.


Assim vivi na presunção que via,

Dos cumes da Ciência e do saber,

Os princípios genéricos do ser,

No pantanal da lama em que eu vivia.


Vi, porém, a matéria apodrecer,

E na individualidade indivisível

Ouvi a voz esplêndida e terrível

Da luz, na luz etérica a dizer:


II

«Louco, que emerges de apodrecimentos,

Alma pobre, esquelético fantasma

Que gastaste a energia do teu plasma

Em combates estéreis, famulentos…


Em teus dias inúteis, foste apenas

Um corvo ou sanguessuga de defuntos,

Vendo somente a cárie dos conjuntos,

Entre as sombras das lágrimas terrenas.


Vias os teus iguais, iguais aos odres

Onde se guarda o fragmento imundo,

De todo o esterco que apavora o mundo

E os tóxicos letais dos corpos podres.


E tanto viste os corpos e as matérias

No esterquilínio generalizados,

E os instintos hidrófobos, danados,

Em meio de excrescências e misérias,


Que corrompeste a íntima saúde

Da tua alma cegada de amargores,

Que na Terra não viu os esplendores

E as ignívomas luzes da virtude.


Olhos cegos às chamas da bondade

De Deus e à divinal misericórdia,

Que espalha o bem e as auras da concórdia

No coração de toda a Humanidade.


Descansa, agora, vibrião das ruínas,

Esquece o verme, as carnes, os estrumes

Retempera-te em meio dos perfumes

Cantando a luz das amplidões divinas.»


III

Calou-se a voz. E sufocando gritos.

Filhos do pranto que me espedaçava,

Reconheci que a vida continuava

Infinita, em eternos infinitos!


VOZES DE UMA SOMBRA


Donde venho? Das eras remotíssimas,

Das substâncias elementaríssimas,

Emergindo das cósmicas matérias.

Venho dos invisíveis protozoários,

Da confusão dos seres embrionários,

Das células primevas, das bactérias.


Venho da fonte eterna das origens,

No turbilhão de todas as vertigens,

Em mil transmutações, fundas e enormes;

Do silêncio da mônada invisível,

Do tetro e fundo abismo, negro e horrível,

Vitalizando corpos multiformes.


Sei que evolvi e sei que sou oriundo

Do trabalho telúrico do mundo,

Da Terra no vultoso e imenso abdômen;

Sofri, desde as intensas torpitudes

Das larvas microscópicas e rudes,

À infinita desgraça de ser homem.


Na Terra, apenas fui terrível presa,

Simbiose da dor e da tristeza,

Durante penosíssimos minutos;

A dor, essa tirânica incendiária,

Abatia-me a vida solitária

Como se eu fora bruto entre os mais brutos.


Depois, voltei desse laboratório,

Onde me revolvi como infusório,

Como animálculo medonho, obscuro,

Té atingir a evolução dos seres

Conscientes de todos os deveres,

Descortinando as luzes do futuro.


E vejo os meus incógnitos problemas

Iguais a horrendos e fatais dilemas,

Enigmas insolúveis e profundos;

Sombra egressa de lousa dura e fria,

Grito ao mundo o meu grito que se alia

A todos os anseios gemebundos: —


«Homem! por mais que gastes teus fosfatos

Não saberás, analisando os fatos,

Inda que desintegres energias,

A razão do completo e do incompleto,

Como é que em homem se transforma o feto

Entre os duzentos e setenta dias.


A flor da laranjeira, a asa do inseto,

Um estafermo e um Tales de Mileto,

Como existiram, não perceberás:

E nem compreenderás como se opera

A mutação do inverno em primavera,

E a transubstanciação da guerra em paz;


Como vivem o novo e o obsoleto,

O ângulo obtuso e o ângulo reto

Dentro das linhas da Geometria;

A luz de Miguel Ângelo nas artes,

E o espírito profundo de Descartes

No eterno estudo da Filosofia.


Porque existem as crianças e os macróbios

Nas coletividades dos macróbios

Que fazem a vida enferma e a vida sã;

Os antigos remédios alopatas

E as modernas dosagens homeopatas,

Produto da experiência de Hahnemann.


A psíquico-análise freudiana

Tentando aprofundar a alma humana

Com a mais requintadíssima vaidade,

E as teorias do Espiritualismo

Enchendo os homens todos de otimismo,

Mostrando as luzes da imortalidade.


Como vive o canário junto ao corvo,

O céu iluminado, o inferno torvo

Nos absconsos refolhos da consciência;

O laconismo e a prolixidade,

A atividade e a inatividade,

A noite da ignorância e o sol da Ciência.


As epidermes e as aponevroses,

As grandes atonias e as nevroses,

As atrações e as grandes repulsões,

Que reunindo os átomos no solo

Tecem a evolução de pólo a pólo,

Em prodigiosas manifestações;


Como os degenerados blastodermas

Criam a descendência dos palermas

No lupanar das pobres meretrizes,

Junto dos palacetes higiênicos,

Onde entre gozos fúlgidos e edênicos

Cresce a alegre progênie dos felizes.


Os lombricóides mínimos, os vermes,

Em contraposição com os paquidermes,

Assombrosas antíteses no mundo;

É o gigante e o germe originário,

Os milhões de corpúsculos do ovário,

Onde há somente um óvulo fecundo.


A alma pura do Cristo e a de Tibério,

Vaso de carne podre, o cemitério,

E o jardim recendendo de perfumes;

O doloroso e tetro cataclismo

Da beleza louca do organismo,

Repleto de dejetos e de estrumes.


As coisas substanciais e as coisas ocas,

As ideias conexas e as loucas,

A teoria cristã e Augusto Comte;

E desconhecido e o devassado.

E o que é ilimitado e o limitado

Na óptica ilusória do horizonte.


Os terrenos povoados e o deserto,

Aquilo que está longe e o que está perto;

O que não tem sinal e o que tem marca;

A funda simpatia e a antipatia,

As atrofias e a hipertrofia,

Como as tuberculoses e a anasarca.


Os fenômenos todos geológicos,

Psíquicos, científicos, sociológicos,

Que inspiram pavor e inspiram medo;

Homem! por mais que a ideia tua gastes,

Na solução de todos os contrastes,

Não saberás o cósmico segredo.


E apesar da teoria mais abstrusa

Dessa ciência inicial, confusa,

A que se acolhem míseros ateus,

Caminharás lutando além da cova,

Para a Vida que eterna se renova,

Buscando as perfeições do Amor em Deus.»


VOZ HUMANA

Uma voz. Duas vozes. Outras vozes.

Milhões de vozes. Cosmopolitismos.

Gritos de feras em paroxismos,

Uivando subjugadas e ferozes.


É a voz humana em intérminas nevroses,

Seja nas concepções dos ateísmos,

Ou mesmo vinculada a gnosticismos

Nos singultos preagônicos, atrozes.


É nessa eterna súplica angustiada

Que eu vejo a dor em gozos, insaciada,

Nutrir-se de famélicos prazeres.


A dor, que gargalhando em nossas dores,

É a obreira que tece os esplendores

Da evolução onímoda dos seres.


ALMA

Nos combates ciclópicos, titânicos,

Que eu às vezes na Terra empreendia,

Nos vastos campos da Psicologia,

Buscava as almas, seres inorgânicos;


Nas lágrimas, nos risos e nos pânicos,

Nos distúrbios sutis da hipocondria,

Nas defectividades da estesia,

Nos instintos soezes e tirânicos,


Somente achava corpos na existência,

E o sangue em continuada efervescência

Com impulsos terríficos e tredos.


Enceguecido e louco então que eu era,

Que não via, dos astros à monera,

As luzes dalma em trágicos segredos.


ANÁLISE

Oh! que desdita estranha a de nascermos

Nas sombras melancólicas dos ermos,

Nos recantos dos mundos inferiores,

Onde a luz é penumbra tênue e vaga,

Que, sem vigor, fraquíssima, se apaga

Ao furacão indômito das dores.


Voracidade onde a alma se mergulha,

Apoucado Narciso que se orgulha

Na profundeza ignota dos abismos

Da carne, que, estrambótica, apodrece;

Que atrofiada, hipertrófica, parece

Cataclismo dos grandes cataclismos.


Prendermo-nos ao fogo dos instintos,

Serpentes entre escrófulas e helmintos,

Multiplicando as lágrimas e os trismos,

Tendo a alma — centelha, luz e chama —

Amalgamada em pântanos de lama,

Em sexualidades e histerismos.


Misturarmos clarões de sentimentos

Entre vísceras, nervos, tegumentos,

Na agregação da carne e dos humores,

Atrocidade das atrocidades;

Enegrecermos luminosidades

Na macabra esterqueira dos tumores.


E nisto achar fantásticos prazeres,

Ilusão hiperbólica dos seres

Bestializados, materializados;

Espíritos em ânsias retroativas,

No transcorrer das vidas sucessivas,

Nas ferezas do instinto, atassalhados…


Mas a análise crua do que eu via,

Hedionda lição de anatomia,

É mais que uma atrevida aberração;

Que se quebre o escalpelo de meus versos:

Entreguemos a Deus seus universos

Que elaboram a eterna evolução.


EVOLUÇÃO

Se devassássemos os labirintos

Dos eternos princípios embrionários.

A cadeia de impulsos e de instintos,

Rudimentos dos seres planetários;


Tudo o que a poeira cósmica elabora

Em sua atividade interminável,

O anseio da vida, a onda sonora,

Que percorrem o espaço imensurável;


Veríamos o evolver dos elementos,

Das origens às súbitas asceses,

Transformando-se em luz, em sentimentos,

No assombroso prodígio das esteses;


No profundo silêncio dos inermes,

Inferiores e rudimentares,

Nos rochedos, nas plantas e nos vermes,

A mesma luz dos corpos estelares!


É que, dos invisíveis microcosmos,

Ao monólito enorme das idades,

Tudo é clarão da evolução do cosmos,

Imensidade nas imensidades!


Nós já fomos os germes doutras eras,

Enjaulados no cárcere das lutas;

Viemos do princípio das moneras,

Buscando as perfeições absolutas.


HOMO

I

Ao meu tétrico olhar abominável,

O homem é fruto insólito da ânsia,

Heterogeneidades da Substância,

Argamassando um Todo miserável.


Psique dolorosa e inexpressável

Na mais remota epíspase da infância,

Desde a mais abscôndita reentrância

Da sua embriogenia detestável.


Do intravascular princípio informe,

Larva repugnante e vermiforme,

Nos íntimos recôncavos da placenta.


À quietação dos túmulos inermes,

Era um feixe de mônadas de vermes,

Dissolvidos na terra famulenta.


II

Após a introspecção do Além da Morte.

Vendo a terra que os próprios ossos come,

Horrente a devorar com sede e fome

Minhas carnes em lúbrico transporte,


Vi que o «ego» era o alento flâmeo e forte

Da luz mental que a morte não consome.

Não há luta mavórtica que o dome,

Ou venenada lâmina que o corte.


Depois da estercorária microbiana,

De que o planeta triste se engalana

Nas grilhetas do Infinitesimal,


Volve o Espírito ao páramo celeste,

Onde a divina essência se reveste

Da substância fluida, universal.


INCÓGNITA

Por que misterioso incompreensível

Vomito ainda em náuseas para o mundo

Todo o fel, toda a bílis do iracundo,

Se eu já não tenho a bílis putrescível?


Insondável arcano! porque inundo

Meu exótico ser ultra-sensível

Em plena luz e atendo ao gosto horrível

De apostrofar o pobre corpo imundo?


Fluidos teledinâmicos me servem,

Transmitindo as ideias que me fervem

No cérebro candente, ígneo, em brasa…


De que concavidade do Universo

Vem-me o açoite flamívomo do verso

Chama da mesma chama que me abrasa?


“EGO SUM”

Eu sou quem sou. Extremamente injusto

Seria, então, se não vos declarasse,

Se vos mentisse, se mistificasse

No anonimato, sendo eu o Augusto.


Sou eu que, com intelecto de arbusto,

Jamais cri, e por mais que o procurasse.

Quer com Darwin, com Haeckel, com Laplace,

Levantar-me do leito de Procusto.


Sou eu, que a rota etérica transponho

Com a rapidez fantástica do sonho,

Inexprimível nas termologias,


O mesmo triste e estrábico produto,

Atramente a gemer a mágoa e o luto,

Nas mais contrárias idiossincrasias.


DENTRO DA NOITE

É noite. À Terra volvo. E, lúcido, entro

Em relação com o mundo onde concentro

O espírito na queixa atordoadora

Da prisioneira, da perpétua grade,

— A misérrima e pobre Humanidade,

Aterradoramente sofredora!


Ausculto a humana dor, que hórrida sinto,

Dalma quebrando o cárcere do instinto,

Buscando ávida a luz. Por mais que sonde,

Mais o enigma do mundo se lhe aviva,

Em diferenciação definitiva,

Mais a luz desejada se lhe esconde!


É o quadro mesológico, tremendo,

De tudo o que ficou no abismo horrendo

Da tenebrosa noite dos gemidos;

São uivos dos instintos jamais hartos,

As dores espasmódicas dos partos,

A desgraça dos úteros falidos.


É a ânsia afrodisíaca das bocas,

Que nas bestialidades se unem loucas,

As bactérias mais vis ambas trocando;

As dolorosas mágoas dos enfermos,

Sentindo-se em seus leitos como em ermos,

Deplorando o destino miserando.


São os ais dos leprosos desprezados,

Tendo os seus organismos devastados

Pela fome insaciável dos micróbios,

Sentindo os próprios membros carcomidos,

Verminados, cruéis, apodrecidos,

Plantando a dor no chão dos seus cenóbios…


É o grito, o anseio, a lágrima do homem

Agrilhoado aos prantos que o consomem,

Preso às dores que se lhe agrilhoaram;

É a imprecação de todos os lamentos

Dentro do mundo de padecimentos,

Dos desejos que não se realizaram.


Pábulo sou dessa hórrida agonia

E nos abismos de hiperestesia

Experimento, além das catacumbas,

Essa angústia indomável, atrocíssima,

Junto da emanação requintadíssima

Do ácido sulfídrico das tumbas,


Trazendo dentro dalma, envoltos na ânsia,

Asco e dó, piedade e repugnância

Pelo espírito e o corpo nauseabundo;

E com os meus pensamentos desconexos,

Vejo a guerra pestífera dos sexos,

Abominando as coisas deste mundo.


Terra!… e chegam-me fortes cheiros acres,

Como o cheiro de sangue dos massacres,

Fétido, coagulado, decomposto,

Escorrendo num campo de batalhas

Onde as almas se vestem de mortalhas,

Desde o sol-posto, ao próximo sol-posto.


Apavora-me o horror dessa miséria

E fujo da imundície da matéria,

Onde traguei meus grandes amargores;

Fujo… E ainda transpondo o Azul sereno,

Sinto em minhalma o tóxico, o veneno

E a desdita dos seres sofredores.


HOMEM-CÉLULA

Homem! célula ainda escravizada

Nos turbilhões das lutas cognitivas,

Egressa do arsenal de forças vivas

Que chamamos — estática do Nada.


Sob transformações consecutivas,

Vem dessa Origem indeterminada,

Onde se oculta a luz indecifrada

Dos princípios das luzes coletivas.


Vem através do Todo de elementos,

Em sucessivos aperfeiçoamentos,

Objetivando a Personalidade,


Até achar a Perfeição profunda

E indivisível, pura, e se confunda,

No transcendentalismo da Unidade.


NA 1MENSIDADE

Alma humana, alma humana, tu que dormes

Entre os grandes colossos desconformes

Da carne, essa voraz liberticida,

Desse teu escafandro de albuminas,

Em tua mesquinhez não imaginas

A intensidade esplêndida da Vida!


Inda não vês e eu vejo panoramas

De luz em gigantescos amalgamas

De sóis, nas regiões imensuráveis,

Auscultando os espaços mais profundos

Na sinfonia harmônica dos mundos,

Singrando a luz de céus incomparáveis.


Do teu laboratório de arterites,

De gangliomas, úlceras, nevrites

Ao lado de humaníssimas vaidades,

Não podes perceber as ressonâncias,

Quinta-essências de todas as substâncias

Na fluidez das eletricidades.


Aqui não há vertigens de nevróticos,

Nem bisonhos aspectos de cloróticos

Nas estradas de eternos otimismos!

A vida imensa é coro de grandezas,

Submersão nas fluídicas belezas,

Envergando os etéreos organismos.


Ante a minhalma fulgem ideogramas,

Pensamentos radiosos como chamas,

Combinações no Mundo das Imagens;

São vibrações das almas evolvidas

E que, concretizadas e reunidas,

Formam luminosíssimas paisagens…


Em pleno espaço — Imensidade de ânsias,

Sem aritmologias das distâncias,

Sem limites, sem número, sem fim!

Deus e Pai, ó Artista Inimitável,

Deixai meu ser esdrúxulo, execrável,

No prolongado e edênico festim!


“ALTER EGO”

Da morte estranha que devora as vidas,

Eis-me longe dos rudes estertores,

Sem guardar os micróbios homicidas

De eternos atavismos destruidores.


Tenho outro ser talhado pelas dores

De minhas pobres células falidas,

Que se putrefizeram consumidas

Com os seus instintos atordoadores.


Não sou o homúnculo da hominal espécie,

Da terrígena raça que padece

Das mais pungentes heteromorfias.


Mas contérmino à carne, que me aterra,

Envolvo-me nos fluidos maus da Terra,

E sou o espectro das anomalias.


AOS FRACOS DA VONTADE

Homem, levanta o véu do teu futuro,

Troca o prazer sensualista e obscuro

Pelo conhecimento da Verdade.

Fogo do escuro ergástulo do mundo

E abandona o Desejo moribundo

Pelo poder da tua divindade.


Teu corpo é todo um orbe grande e vasto.

Livra-o do mal onífero, nefasto,

Com a espada resplendente da virtude;

Que o sol da tua mente, eterno, esplenda,

Dando a teu mundo a mágica oferenda

Da alegria em divina plenitude.


Deixa o conjunto de ancestralidades

Da carne — o eterno símbolo do Hades —

Onde o espírito clama, sofre e chora:

Deixa que as tuas glândulas do pranto

Te salvem do cadinho sacrossanto

Da lágrima pungente e redentora.


Mas, sobretudo, observa o pensamento

Fonte da força e altíssimo elemento

Em que toda molécula se cria:

Da existência ele faz sepulcro abjeto

Ou jardim luminoso e predileto,

De arcangélicas flores de Harmonia.


Ouve-te sempre a ronda do mistério,

Mas faze de tua alma um grande império

De beleza, de paz e de saúde:

Que as tuas agregações moleculares

Vivam livres de todos os pesares,

Com os tônicos sagrados da Virtude.


Tua vontade esclarecida e forte

Triunfará das angústias e da morte

Além dos planos tristes da matéria,

Mas a tua vontade enfraquecida

É a meretriz no báratro da vida,

Amarrada no catre da miséria!


AO HOMEM

Tu não és força nêurica somente,

Movimentando células de argila,

Lama de sangue e cal que se aniquila

Nos abismos do Nada eternamente;


És mais, és muito mais, és a cintila

Do Céu, a alma da luz resplandecente,

Que um mistério implacável e inclemente

Amortalhou na carne atra e intranquila.


Apesar das verdades fisiológicas,

Reflexas das ações psicológicas,

Nas células primevas da existência,


És um ser imortal e responsável,

Que tens a liberdade incontestável

E as lições da verdade na consciência.


MATÉRIA CÓSMICA

Glória à matéria cósmica, a energia

Potencial que dá vida aos elementos,

Base de portentosos movimentos

Onde a Forma se acaba e principia.


Sistematização dos argumentos

Que elucidam a Teleologia:

Dentro da força cósmica se cria

A fonte-máter dos conhecimentos.


É do mundo o Od ignoto, o éter divino,

Onde Deus grava a história do destino

Dos seus feitos de Amor no Amor imersos.


Livro onde o Criador Inimitável

Grava, com o pensamento almo e insondável,

Seus poemas de seres e universos.


RAÇA ADÂMICA

A Civilização traz o gravame

Da origem remotíssima dos Árias,

Estirpe das escórias planetárias,

Segregadas num mundo amargo e infame


Árvore genealógica de párias,

Faz-se mister que o cárcere a conclame,

Para a reparação e para o exame

Dos seus crimes nas quedas milenárias.


Foi essa raça podre de miséria

Que fez nascer na carne deletéria

A esperança nos Céus inesquecidos;


Glorificando o Instinto e a Inteligência,

Fez da Terra o brilhante gral da Ciência,

Mas um mundo de deuses decaídos.


A SUBCONSCIÊNCIA

Há, sim, a inconsciência prodigiosa

Que guarda pequeninas ocorrências

De todas as vividas existências

Do Espírito que sofre, luta e goza.


Ela é a registradora misteriosa

Do subjetivismo das essências,

Consciência de todas as consciências,

Fora de toda a sensação nervosa.


Câmara da memória independente,

Arquiva tudo rigorosamente

Sem massas cerebrais organizadas,


Que o neurônio oblitera por momentos,

Mas que é o conjunto dos conhecimentos

Das nossas vidas estratificadas.


ESPÍRITO

Busca a Ciência o Ser pelos ossuários,

No órgão morto, impassível, atro e mudo;

No labor anatômico, no estudo

Do germe, em seus impulsos embrionários;


Mas só encontra os vermes-funcionários

No seu trabalho infame, horrendo e rudo,

De consumir as podridões de tudo,

Nos seus medonhos ágapes mortuários.


No meio triste de cadaverinas

Acha-se apenas ruína sobre ruínas,

Como o bolor e o mofo sob as heras;


A alma que é Vibração, Vida e Essência,

Está nas luzes da sobrevivência,

No transcendentalismo das esferas.


VIDA E MORTE

A morte é como um fato resultante

Das ações de um fenômeno vulgar,

Desorganização molecular,

Fim das forças do plasma agonizante.


Mas a vida a si mesma se garante

Na sua eternidade singular,

E em sua transcendência vai buscar

A luz do espaço, fúlgida e distante!


Vida e Morte — fenômenos divinos,

Na ascendência de todos os destinos,

Do portentoso amor de Deus oriundos…


Vida e Morte — Presente eterno da Ânsia,

Ou condição diversa da substância,

Que manifesta o espírito nos mundos.


NOS 5ÉUS DA CARNE

Na ilusão material da carne espúria,

Sob o acervo das células taradas,

Choram de dor as almas condenadas

Ao cárcere de lágrima e penúria.


Entre as sombras das míseras estradas,

Vê-se a guerra da inveja e da luxúria,

Esfacelando com medonha fúria

O coração das almas bem formadas.


É nesse turbilhão de dor e de ânsia

Que o homem procura a eterna substância

Da verdade suprema, alta, imortal.


Deixando corpos pelos cemitérios,

A alma decifra o livro dos mistérios

De luz e amor da vida universal.



HOMEM DA TERRA

Na sombra abjeta e espessa das estradas,

Vive o homem da Terra adormecido,

No horrendo pesadelo de um vencido

Entre milhões de células cansadas.


Prantos sinistros! Loucas gargalhadas,

Pavorosos esgares de gemido,

E lá vai o fantasma embrutecido

Pelas sombras de lôbregas jornadas.


Homem da Terra! trágico segredo

De Miséria, de Horror, de Ânsia e de Medo,

Feito à noite de enigma profundo!…


Anjo da Sombra, mísero e perverso

És o sentenciado do Universo

Na grade organogênica do mundo.


NAS SOMBRAS

Bombardeios. Canhões. Trevas. Muralhas.

E rasteja o dragão horrendo e informe,

Espalhando a miséria e o luto enorme

Em miserabilíssimas batalhas.


Visões apocalípticas do mal,

Desenhadas por corvos vagabundos,

Gritam a dor de povos moribundos

Na sinistra hecatombe universal.


A civilização do desconforto,

De mentira e veneno cerebrais,

Vai carpindo nos tristes funerais

Do seu fausto de sombra, amargo e morto.


Quadros de sangue, lágrimas e horrores

Avassalam de dor o mundo inteiro,

É o triunfo terrível do coveiro,

Ossuários tremendos sob as flores.


Enquanto a desventura chora inerme,

O homem, filosófico ou sem nome,

Morre de frio e fel, de sede e fome,

Nas vitórias fantásticas do verme.


Ai de vós nos abismos da aflição,

Sem o raio de luz da crença amiga:

Desventurado aquele que prossiga

Sem o Cristo de Amor no coração.


CONFISSÃO

Também eu, mísero espectro das dores

No escafandro das células cativas,

Não encontrei a luz das forças vivas,

Apesar de ingentíssimos labores.


Bem distante das causas positivas,

Na visão dos micróbios destruidores,

Senti somente angústias e estertores,

No turbilhão das sombras negativas.


Foi preciso «morrer» no campo inglório,

Para encontrar esse laboratório

De beleza, verdade e transformismo!


A Ciência sincera é grande e augusta,

Mas só a Fé, na estrada eterna e justa,

Tem a chave do Céu, vencendo o abismo!…


HOMEM-VERME

Desolação. Terror e morticínio.

O homem sôfrego e bruto, de ânsia em ânsia,

Sofre agora a sinistra ressonância

De sua inclinação para o extermínio.


É o doloroso e trágico domínio

Do «homo homini lupus» da ignorância.

Exaltando a vaidade sem substância,

Ídolo podre sobre o esterquilínio.


Por toda a parte, escorre o sangue horrível,

Ao crepitar de rúbidos incêndios,

Sobre a ideia cristã medrando em germe.


Em quase tudo, o pântano terrível,

De lodo e lama, em sombra e vilipêndios,

Atestando as vitórias do homem-verme!


GRATIDÃO A LEOPOLDINA

Sem o vulcão de dor de hórridas lavas,

Beija, Augusto, este solo generoso,

Que te guardou no seio carinhoso

O escafandro das células escravas.


Aqui, buscaste o campo de repouso,

Depois das vagas ríspidas e bravas

No mundo áspero e vão, que detestavas.

E onde sorveste o cálice amargoso.


Volta, Augusto, do pó que envolve as tumbas,

Proclama a vida além das catacumbas,

Nas maravilhas de seus resplendores.


Ajoelha-te e lembra o último abrigo,

Esquece o travo do tormento antigo

E oscula a destra de teus benfeitores.


CIVILIZAÇÃO EM RUÍNAS

Todo o mundo moderno horrendo, em ruínas,

Deixa agora escapar o horrendo fruto

De miséria e de dor de pranto e luto,

Feito de sânie e de cadaverinas.


Em vão, sobre o Calvário áspero e bruto,

Sangrou Jesus em lágrimas divinas,

Sob as ofensas torpes e tigrinas

A tentarem-lhe o espírito incorruto.


Saturada de treva, angústia e pena,

A Civilização que se condena

Suicida-se num báratro profundo…


Porque na luz dos círculos da Terra,

Nos turbilhões fatídicos da guerra,

Ainda é Caim que impera sobre o mundo.


A LEI

Em reflexões misérrimas, absorto,

Raciocinava: — «O último tormento

É regressar à carne e ao sofrimento

Sem o triste fenômeno do aborto!…


Toda a amargura dalma é o desconforto

De retornar ao corpo famulento,

E apagar toda a luz do pensamento

Nas células de um mundo amargo e morto!…»


Mas, uma voz da luz dos grandes mundos,

Em conceitos sublimes e profundos,

Respondeu-me em acentos colossais:


— «Verme que volves dos esterquilínios,

Cessa a miséria de teus raciocínios,

Não insultes as leis universais.»


A UM OBSERVADOR MATERIALISTA

Busca o talão dos velhos calendários.

Desde o instante infeliz de Adão e Eva,

Encontrarás teus gritos solitários,

Enfrentando o pavor da mesma treva.


Sempre a dúvida estranha que se ceva

De terríveis problemas multifários,

O mistério da célula primeva,

Os impulsos dos sonhos embrionários.


Pára, amigo… Não sigas na consulta:

O detalhe anatômico te insulta,

A molécula morta desafia.


Se não tens coração que aceite a crença,

Espera a mão da morte excelsa, e pensa,

Que a carne volve ao pó, exangue e fria.


ANTE O CALVÁRIO

Da terra do Calvário ardente e adusta,

Entre prantos pungentes, o Cordeiro

Da Verdade e da Luz do mundo inteiro

Vive o martírio de sua alma augusta.


Sobre a cruz infamérrima se ajusta

A crueldade do espírito rasteiro

Do homem que é sempre o tigre carniceiro,

Enquanto grita a turba ignara e injusta.


Depois de vinte séculos ingratos,

Multiplicando Herodes e Pilatos,

Correm de novo as lágrimas divinas;


Pois, embora o Direito, o Livro e a Toga,

A Humanidade triste inda se afoga

No sangue escuro das carnificinas.


ATUALIDADE

Torna Caim ao fausto do proscênio.

A Civilização regressa à taba.

A força primitiva menoscaba

A evolução onímoda do Gênio


Trevas. Canhões. Apaga-se o milênio.

A construção dos séculos desaba.

Ressurge o crânio do morubixaba

Na cultura da bomba de hidrogênio.


Mas, acima do império amargo e exangue

Do homem perdido em pântanos de sangue,

Novo sol banha o pélago profundo.


É Jesus que, através da tempestade,

Traz ao berço da Nova Humanidade

A consciência cósmica do mundo.


Augusto dos Anjos






Augusto dos Anjos


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