Reportagens de além-túmulo

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Capítulo I

Amarguras de um santo


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Falava-se numa roda espiritual da melhor maneira de cultivar a prece, quando um amigo sentenciou:

— Uma herança perigosa dos espiritistas é a de transformar a memória de um companheiro desencarnado numa espécie de culto de falsa santidade. O bom trabalhador do Cristo não faz mais que cumprir um dever, e não é justo se lhe perturbe a serenidade espiritual com a repetição de cenas mundanas, perfeitamente idênticas às cerimônias canônicas. Não raro, a morte arrebata do convívio terrestre um irmão consciencioso, dedicado, e imediatamente os amigos da Doutrina o transformam num tabu de fictícia inexpugnabilidade.

— É verdade — exclamou um dos presentes —, em todas as questões é justo perguntarmos qual foi o procedimento de Jesus, e, no caso da prece, não se vê, nos Evangelhos, um culto particular, a não ser a contínua comunhão entre o Cristo e o Pai que está nos Céus.

Um ex-padre católico, com o sorriso da bonança que sempre surge depois das grandes desilusões, acrescentou em tom amistoso:

— É razoável que os homens do mundo não interrompam as tradições afetuosas com aqueles que os precedem na jornada silenciosa do túmulo, conservando nas almas a mesma disposição de ternura e de agradecimento, na recordação dos que partiram. Entretanto, no capítulo das rogativas, das solicitações, dos empenhos, convém que toda criatura se dirija a Deus, ciente de que a sua vontade soberana é sempre justa e de que a sua inesgotável bondade se manifestará, de um ou de outro modo, através dos mensageiros que julgue conveniente aos fins colimados. Em minhas experiências nas esferas mais próximas do Planeta, sempre reconheci que os Espíritos mais homenageados na Terra são os que mais sofrem, em virtude da pouca prudência dos seus amigos. Aliás, neste particular, temos o exemplo doloroso dos “santos”. Sabemos que raros homens canonizados pela igreja humana chegaram, de fato, à montanha alcantilada e luminosa da Virtude. E essas pobres criaturas pagam caro, na Espiritualidade, o incenso perfumoso das gloríolas de um altar terrestre.

A palestra tomava um caráter dos mais interessantes, quando o mesmo amigo perguntou de repente, depois de uma pausa:

— Vocês conhecem a história de São Domingos González?

E enquanto os presentes se entreolhavam mudos, em íntima interrogação, continuou:

— Domingos González era um padre insinuante, dotado de poderosa e aguçada inteligência. Sua carreira sacerdotal, dado o seu caráter flexível, foi um grande voo para as posições mais importantes e elevadas. Dominava todos os companheiros pelo poder de sua palavra quente e persuasiva, cativava a atenção de todos os seus superiores pela humildade exterior de que dava testemunho, embora a sua vida íntima estivesse cheia de penosos deslizes.

A verdade é que, lá pelos fins do século XV, era ele o Inquisidor-Geral de Aragão; mas, tal foi o seu método condenável de ação no elevado cargo que lhe fora conferido, que, por volta de 1485, os israelitas o assassinaram na catedral de Saragoça, em momento de sagradas celebrações.

O nosso biografado acordou, no além-túmulo, com as suas chagas dolorosas, dentro das terríveis realidades que lhe aguardavam o Espírito imprevidente; mas, os eclesiásticos concordaram em pleitear-lhe um lugar de destaque nos altares humanos e venceram a causa.

Em breve tempo, a memória de Domingos transformava-se no culto de um santo. Mas, aí, agravaram-se, no plano invisível, os tormentos daquela alma desventurada. Envergonhado e oprimido, o ex-padre influente do mundo sentia-se qual mendigo faminto e coberto de pústulas. Nós, porém, sabemos que as recordações pesadas do Planeta são como forças invencíveis que nos prendem à superfície da Terra, e o infeliz companheiro foi obrigado a comparecer, embora invisível aos olhos mortais, a todas as cerimônias religiosas que se verificaram na instituição de seu culto. Domingos González, assombrado com as acusações da própria consciência, assistiu a todas as solenidades da sua canonização, sentindo-se o mais desgraçado dos seres. As pompas do acontecimento eram como espadas intangíveis que lhe atravessassem, de lado a lado, o coração vencido e sofredor. Os cânticos de glorificação terrena ecoavam-lhe no íntimo como soluços da sombra e da amargura.

E, desde essa hora, intensificaram-se-lhe os padecimentos.

Sua angústia agravou-se, primeiramente, em virtude da nova posição do círculo familiar. Os que lhe eram afins pelo sangue entenderam que não mais deviam o tributo comum de trabalho e realização ao mundo. Como parentes de um santo, não mais quiseram trabalhar. E essa atitude se estendeu aos seus mais antigos companheiros de comunidade. Os poucos valores da agremiação religiosa, a que pertencera, desapareceram. Seus colegas de esforço estacionaram voluntariamente na preguiça criminosa e no hábito das homenagens sucessivas. O grupo havia produzido um santo: devia ser o bastante para garantia de uma posição definitiva no Céu.

O Espírito infeliz contemplava semelhante situação, banhado em lágrimas expiatórias. E o seu martírio continuou.

Sabemos que um apelo da Terra é recebido em nosso meio, tão logo seja expedido por um coração que se debata nas lutas redentoras do mundo. Se o serviço postal do orbe pode estar sujeito aos erros de administração, ou à má-vontade de um estafeta, desviando do seu destino uma mensagem, no plano espiritual não se verificam semelhantes perturbações. A solicitação justa ou injusta dos homens vem ter conosco pelos fios do pensamento, na divina claridade do magnetismo universal. E Domingos começou a receber os pedidos mais imprudentes dos seus numerosos devotos.

A alma desventurada ficou absolutamente presa à Terra e, de instante a instante, era obrigada a atender aos apelos mais extravagantes e mais absurdos.

Se um criminoso desejava fugir à ação da justiça no mundo, valia-se de Domingos, invocando-lhe a memória, entre receios e rogativas. As mães desassisadas, que não cogitaram da educação dos filhos, em pequeninos, lhe rogavam de joelhos a correção tardia desses filhos transviados em maus caminhos. Os velhacos lhe faziam promessas, a fim de realizarem um bom negócio. As moças casadouras lhe imploravam a aliança do noivo rebelde e arredio. Os sacerdotes pediam-lhe a atenção dos superiores. E, finalmente, todos os sofredores sem consciência lhe suplicavam o afastamento da cruz de provações que lhes era indispensável.

Chumbado ao mundo, Domingos, durante mais de um século, perambulou pelas casas dos devotos, pelas estradas desertas, pelos círculos de negócios, pelos covis dos bandidos.

Seu aspecto fazia pena.

Foi quando, então, dirigiu a Jesus a súplica mais fervorosa de sua vida espiritual, implorando que lhe permitisse voltar à Terra, a fim de esconder no esquecimento da carne as suas enormes desditas. Queria fugir do plano invisível, detestava o título de santo, aborrecia todas as homenagens, atormentava-o o altar do mundo. Suas lágrimas eram amargas e comovedoras, e o Senhor, como sempre, não lhe faltou com a bondade infinita.

Assim como um grupo de amigos influentes procura colocação para o homem desempregado e aflito no mundo, alguns companheiros dedicados vieram oferecer ao pobre Espírito sofredor uma reencarnação como escravo, no Brasil.

Domingos González ficou radiante. Chorou de júbilo, de agradecimento a Jesus e, em breve tempo, tomava a vestimenta escura dos cativos, sentindo-se ditoso e confortado, cheio de alegria e reconhecimento.

O nosso amigo fizera uma pausa na sua narrativa. Estávamos, porém, altamente interessados e eu perguntei:

— E o santo está hoje nos planos mais elevados da Espiritualidade? Seria extremamente curiosa a palavra direta de sua desilusão e de sua experiência valiosa…

— Não, ainda não — replicou o narrador, com ar discreto. — Domingos tem vivido sucessivamente no Brasil e; ainda hoje, continua, aí, a esforçar-se pela sua redenção espiritual, guardando instintivamente o mais terrível receio de chegar às esferas invisíveis com o título de santidade.

Mas, as obrigações comuns dispersaram o grupo em palestra e, dentro de pouco tempo, estava eu novamente só, com o meu trabalho e com a minha meditação. E nesse dia, impressionado com a história daquela amarga experiência, não pude retirar da imaginação aquele santo que trocara os incensos do altar pela atmosfera nauseante de uma senzala do cativeiro.


(.Irmão X)


Humberto de Campos
Francisco Cândido Xavier


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