Reportagens de além-túmulo

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Capítulo IX

Desapontamento de um suicida


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O generoso Rogério, excelente amigo do plano espiritual, que, desde muitos anos, vem consagrando as melhores energias ao serviço das entidades sofredoras, procurou-me para um convite.

— Queres acompanhar-me no trabalho de socorrer um desventurado suicida que sofre nas regiões inferiores, há trinta anos?

— Trinta anos? — interroguei, admirado.

— Outros existem, nos círculos de padecimentos atrozes, com mais dilatado tempo que esse — respondeu serenamente.

Por minha parte, não conseguia dissimular o assombro justo.

— Semelhantes angústias — retorqui — devem ser consequências de romance bem doloroso.

— Não tanto. No presente caso, ao lado do infortúnio, não podemos esquecer a irreflexão e a rebeldia.

A observação de Rogério espicaça-me a curiosidade.

— Gostaria de acompanhar-te, mas não me posso furtar ao desejo de conhecer alguma coisa da história dessa personagem que iremos visitar.

— É interessante — replicou-me —, entretanto, não é incomum. Homens numerosos se encontram, atualmente, em suas antigas condições.

E, depois de tomar posição como narrador engraçado e otimista, começou atencioso:

— Há cerca de trinta anos, Tomasino Pereira era empregado de uma tipografia no Rio de Janeiro. Temperamento singular e atrabiliário, jamais pudera evadir-se do círculo das lamentações estéreis. Não se fazia ouvir senão para comover os interlocutores com queixas acerbas. Lastimava-se incessantemente. Acusava o mundo, o país, o trabalho, os amigos. Em vão procuravam os companheiros injetar-lhe coragem e otimismo. O mísero estava sempre excessivamente nervoso ou irremediavelmente desalentado. A família numerosa, os deveres cotidianos, as contas mensais do armazém, açougueiro e padeiro, amedrontavam-lhe o espírito. Entretanto, a maior tragédia de Tomasino, na apreciação de si próprio, era o problema conjugal. A esposa ignorante não o compreendia. E em vez de melhorar-lhe as condições espirituais com carinho e paciência, levantando-lhe as concepções em busca dos horizontes superiores da vida, o infeliz gastava o tempo em promessas de pancada, ameaças de separação, gestos violentos e rudes. A situação enchia os filhinhos do casal de espanto e amargura, pois o chefe da casa, em desespero, dava a impressão de um louco, sem esperança de cura. Quando não esmurrava as mesas, em fúria doentia, mantinha-se em atitude de extrema desolação, apático, em prantos angustiosos. No quadro de seus afeiçoados, estava o Oscar Fraga, amigo de infância e de luta diária, que se valia das fases de desânimo do amigo para mais aproximar-se, tentando arrancar-lhe a alma das tempestades da incompreensão. O caso, porém, tornava-se mais complicado, dia a dia. Tomasino andava possuído de ideia sinistra. Alimentava o propósito de suicídio com preocupação crescente. No íntimo, sempre considerara os que fogem às tormentas da vida humana como criaturas privilegiadas e corajosas. Não era a melhor maneira de protestar contra o destino, retirar-se do mundo, em silêncio? Não lhe parecia a existência terrestre enorme banquete, onde alguns se serviam dos manjares, reservando-se a outros as ervas amargosas? Depor o fardo a meio do caminho, em seu modo de ver, constituía a atitude mais consentânea com a dignidade pessoal. No fundo, acreditava na existência de Deus, mas a cegueira de espírito não lhe deixava entrever o menor vislumbre das verdades essenciais, que o induziriam à coragem indispensável no combate comum. À medida que lhe crescia nalma a intenção de escapar à luta, mais se sentia herói.

Percebendo-lhe tão perigosas disposições, o Fraga, que era espiritista convicto, aproximou-se com mais vigor, trazendo-lhe a cooperação fraternal de que dispunha. Eram mensagens de suicidas desventurados, exortações evangélicas, páginas de consolação e reerguimento moral.

— Tudo isso é fumo de ilusão — exclamava Tomasino, desalentado —, ninguém pode regressar da poeira do túmulo. Creio em Deus e estou certo de que Ele, mais que ninguém, compreende minha dor.

— Também eu — murmurava o companheiro, pacientemente — não ponho em dúvida o interesse amoroso do Altíssimo em nosso favor. Naturalmente entenderá nossas mágoas, mas não poderá tolerar nossas rebeldias.

— É isso! — gritava mais fortemente o infeliz — estou abandonado, tudo para mim está. perdido! a desgraça colheu minha sorte, é preciso morrer. Tudo apodreceu, tudo caiu!…

E, enquanto o desventurado enxugava os olhos com o lenço, o companheiro retrucava com larga dose de bom humor:

— O nervosismo costuma também fugir à verdade. Não estás sendo reto.

— E ainda me acusas? — perguntava Tomasino, desgrenhado.

— Nem todas as coisas permanecem derrubadas esclarecia o Fraga, calmamente —, pelo menos esta casa, que Deus transformou em ninho de teus filhos e onde encontramos refúgio para a conversação afetuosa, ainda está de pé.

A resposta parecia suavizar os abafamentos do interlocutor, pela nota de humorismo. Depois de alguns minutos pesados de meditação, Tomasino voltava em desalento:

— Mas… e Olinda?! se minha mulher compreendesse as necessidades justas, talvez que a vida se equilibrasse…

— Por que não lhe auxilias a alma inculta, empenhando nisso as melhores forças do coração? — inquiria o companheiro sensatamente. — Olinda não é má. Como sabes, a ignorância tem arestas que é necessário desgastar. Além disso, nunca deverias esquecer que se trata da mãe de teus filhinhos. Deus não vos teria unido sem razões fortes, na estrada da vida imortal. Vejo, em tudo isso, a representação de teus débitos espirituais no passado e que se torna imprescindível resgatar.

Tomasino atalhava em tom irado:

— Não tens outro argumento senão esta história de reencarnações?

— Tenho, sim… — murmurava o Fraga, sem se perturbar.

E enquanto o outro o contemplava espantado:

— E indispensável que cada um saiba carregar a sua cruz redentora.

— És sempre fecundo nos conselhos! — clamava o mísero, desesperado.

O amigo, porém, sem qualquer irritação, prosseguia de bom humor:

— Estás enganado. Este conselho não é meu, é de Jesus-Cristo. Não me sinto devidamente iluminado para orientar a quem quer que seja; no entanto, creio que concordarás comigo quanto à competência do Salvador.

A verdade, contudo, é que o Fraga sempre se retirava sem obter nenhum resultado satisfatório. Irascível, teimoso, impermeável aos benefícios da fé religiosa, Tomasino Pereira manteve-se inacessível a todos os processos de socorro espiritual. E na ideia orgulhosa de que poderia enfrentar o próprio Deus, a fim de inquirir o Criador, quanto aos enigmas do destino, uma noite tranquila, sem que ninguém esperasse, estourou os miolos irrefletidamente.

A narração movimentada levou-me a recordar alguns companheiros das tarefas humanas, impressionando-me, vivamente.

— Esse é o Espírito que encontraremos daqui a alguns instantes — concluiu Rogério com um sorriso generoso.

De fato, sem despender maior esforço, descemos a uma região de sombras muito espessas. Assemelhava-se, antes de tudo, a uma grande caverna pestilenta e úmida, como deveriam ser os calabouços da Idade Média. Viam-se ali criaturas estiradas, em gemidos lancinantes.

Conservando-se a distância, Rogério exortou-me a permanecer em sua companhia e enviou alguns auxiliares em busca do desventurado Tomasino.

O infeliz aproximou-se, de rastros. Parecia um monstro, tal a desfiguração pelo sofrimento. Observando os fluidos luminosos que envolviam Rogério a esperá-lo, o mísero supôs que defrontava um dos mais altos emissários de Deus. Enganado ainda pelas falsas concepções da Terra, começou a chorar, convulsivamente, acreditando que o Altíssimo lhe dispensava honrosas deferências, como se fora um herói esquecido, em revisão de processo.

— Anjo celeste — murmurou prostrando-se ante Rogério —, eu sabia que Deus me faria justiça. Fui um infortunado na Terra, vaguei como cão sem dono entre aqueles que desfrutavam o banquete da vida humana; atravessei a existência incompreendido e aqui estou, em abandono, em pavorosa caverna de martírios, aguardando a Providência Divina…

As lágrimas caíam-lhe em suprema desesperação. O interpelado, porém, mantinha-se em serenidade impassível e disse-lhe com firmeza:

— Tomasino, esquece o vício da queixa. Não sou um anjo celestial, sou teu irmão no mesmo caminho evolutivo. Não vim até aqui para arquivar as tuas lamentações, mas para sugerir-te calma e boa vontade, atendendo a muitas rogativas dos que se interessam por ti. Não consta, no plano espiritual mais elevado, que hajas sido tão infeliz e sim que sempre foste rebelde aos alvitres divinos, quanto preguiçoso nas realizações para a vida eterna.

O suicida experimentou indisfarçável surpresa. Esperava que todos os emissários do mundo superior fossem portadores de uma doçura de mel. Viciado como criança caprichosa e exigente, não entendia a bondade fora dos prismas da ternura. Assustado, Tomasino assumiu atitude diversa.

— Venho para ser útil às tuas necessidades presentes — continuou Rogério sem emoção —, prestando-te este ou aquele informe que julgues necessário ao soerguimento do teu espírito.

Via-se que o choque fora benéfico a Tomasino. Começando a compreender que a responsabilidade não dispensa a energia, fazia esforços para esquecer as velhas lamúrias e enveredar por expressões sérias, condizentes com a sua posição espiritual.

— Desejaria receber notícias de meus filhos! — disse num gesto mais digno.

— Todos realizam as suas tarefas satisfatoriamente — esclareceu Rogério, delicado. — Como deves saber, as obras de Deus não sofrem solução de continuidade, porque este ou aquele dos trabalhadores delibere escapar aos compromissos assumidos. Teus filhos são homens de bem, úteis à sociedade de que são parte integrante e ativa; tuas filhas, nos dias que correm, são mães devotadas e generosas. Eles confiavam em ti, quando não possuías nenhuma parcela de confiança em ti mesmo. E porque hajas fugido ao lar, desamparando-os, nunca te esqueceram nas intercessões amorosas.

— Infeliz que fui! — exclamou o suicida com acento amarguroso.

— Devias afirmar, antes de tudo, que foste tolo! Extremamente desapontado, Tomasino quis desviar o assunto e interrogou:

— Creio que tendes poder para auxiliar-me. Que devo fazer para melhorar esta situação? Sinto a cabeça tonta, sem direção… Desejaria, pelo menos, alcançar um tantinho de saúde..

— Perguntaste bem — disse-lhe o meu amigo —, esse desejo evidencia as tuas melhoras espirituais. O que te poderá restaurar a saúde e o equilíbrio é a nova aplicação de terra.

— Aplicação de terra? — revidou Tomasino assombrado.

— Sim, terás de ser revestido, novamente, de um corpo terrestre. No Planeta encontrarás o remédio para teus males. Despedaçaste o crânio e voltarás a exibir, no mundo, o crânio despedaçado. Não te faltará a medicação…

— Medicação?

— Perfeitamente — esclareceu Rogério —, o idiotismo, a loucura, o desequilíbrio nervoso…

— São doenças — atalhou o suicida prontamente.

— É verdade, Tomasino, os seres terrenos ainda não compreenderam; mas, enquanto curam as enfermidades, acabam curados por elas. Aceitas, pois, o remédio do porvir?

Reconhecia-se o pavor do infeliz, em face da indicação, mas, ao cabo de longos minutos de meditação, murmurou humilhado:

— Aceito… Quando deverei voltar?

— Quando nossa irmã Olinda estiver em condições de te receber nos braços maternos.

O suicida compreendeu e entrou em profundo silêncio.

Daí a instantes, era novamente recolhido ao seu cárcere de dor. Acerquei-me, então, de Rogério, admirado. Meu amigo trazia agora os olhos úmidos, revelando enorme piedade e comoção.

Antes que lhe fizesse qualquer pergunta, tomou-me delicadamente o braço e murmurou compungido:

— Imensa é a tragédia dos Espíritos sofredores. Mas, no auxílio efetivo, é indispensável considerar que cada doente reclama o seu remédio. A maioria dos suicidas requisita a dureza e a ironia para que possa entender a verdade. Até que se verifique a próxima experiência terrestre, Tomasino Pereira estudará sinceramente a própria situação e não se queixará mais…


(.Irmão X)


Humberto de Campos
Francisco Cândido Xavier


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