Da Manjedoura A Emaús

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CAPÍTULO 2

Séforis

A principal e mais forte de todas as praças da Galileia. (Josefo, 2005, -828)
De ordinário, uma grande cidade aglomera, em seu redor, outros grupos populacionais — cidades menores que são cercadas por vilas, por sua vez rodeadas por aldeias ou arraiais. Nessa teia de relações urbanas, as cidades servem às vilas e as vilas às aldeias.
A grande cidade nas proximidades da Baixa Galileia chamava-se Citópolis. Séforis e Tiberíades eram cidades menores. Cafarnaum e Magdala eram vilas.
Séforis (Zippori, em hebraico) quer dizer pássaro, devido à forma da colina sobre a qual foi construída. Essa colina ficava em meio a um vale muito fértil, com pequenas lagoas, a cerca de seis quilômetros de Nazaré.
Das aldeias que cercavam Séforis, Nazaré estava entre as mais simples.
Séforis não é mencionada nos evangelhos, apesar de sua importância governamental, mas Jesus a visitou algumas vezes, certamente.
Depois de sua anexação a Roma, a Palestina foi dividida em cinco distritos administrativos — Judeia, Galileia, Samaria, Pereia e Decápole.
A Judeia era uma ilha hebraica, cercada pela diversidade populacional das demais províncias, dirigida por um Estado-Templo, em Jerusalém, sob patrocínio imperial romano.

Séforis, por esse tempo, era a capital da Galileia.
Com a morte de Herodes, o Grande, em 4 a.C., eclodiram revoltas por todo o país — heranças de insatisfação, por seu reinado cruel.
Flávio Josefo (2005, p.
813) narrou, entre as insurreições, a liderada por Judas, filho de Ezequias, entre 6 e 7 d.C. O pai havia sido chefe de um movimento partidarista na Galileia, que lutou contra Herodes, até ser eliminado, com dificuldade. Judas reuniu significativo contingente de homens perto de Séforis, invadiu-a, apoderou-se do seu arsenal e saqueou o que encontrou. A fama de seus atos se alastrou pela Palestina, fazendo-o temível, e a notoriedade o levou a cobiçar a coroa.
Quintilius Varus, procônsul da Síria na ocasião, liderava legiões em socorro aos soldados romanos sitiados em Jerusalém, que vivia outra insurreição. No caminho, Varus cedeu parte do exército para seu filho entrar na Galileia e subjugar Judas. Séforis foi retomada e reduzida a cinzas, e seus habitantes foram vendidos como escravos. (JOSEFO, 2005, p. 815.)
Essa destruição e escravização em massa deixaram cicatrizes profundas nas comunidades galileias por muitas gerações. (HORSLEY, 2000, p. 104.) E Jesus, com 12 anos, acompanhou esses acontecimentos.
O movimento de Judas será a inspiração para a formação do movimento Zelota, fundamental na primeira guerra judaico-romana, em 66 d.C., quando um filho de Judas, Menaém, atuará como um dos principais chefes dessa rebelião, que culminará com a destruição do Templo de Jerusalém, em 70.
Depois de 70, Séforis se transformará num centro intelectual do Judaísmo, onde irá residir a maioria dos sacerdotes saduceus expulsos de Jerusalém, sendo, inclusive, pelos séculos 2 e III, a sede do Sinédrio.
Um ano após a derrota de Judas (8 d.C.), Herodes Antipas recebeu por herança a Galileia e a Pereia para governar, e iniciou a reconstrução de Séforis, com esmero, para torná-la a joia da Galileia.

Entre 17 e 20 d.C., estando Jesus adulto, Antipas construiu Tiberíades, em homenagem ao novo César, Tibério, dando-lhe uma população judia e uma arquitetura grega. A nova capital fez Séforis descer a um segundo plano na Galileia, pelo menos por algumas décadas, até que Félix (procurador romano) invertesse outra vez esses papéis, reconduzindo Séforis à condição de capital e acirrando a rivalidade entre as duas cidades.
Séforis era o ponto de convergência de duas estradas que lhe atraíam influências contraditórias.
A primeira, a estrada romana entre Ptolomaida, na costa do Mediterrâneo, e Tiberíades. Ptolomaida estava ligada a Via Maris (caminho do mar), estrada que contornava a costa, porta do comércio internacional na Palestina. Logo, isso colocava Séforis e seus arredores em contato com certa influência cosmopolita. (CROSSAN, 1994, p. 53.)
A segunda estrada saía de Jerusalém e terminava seu curso montanhoso em Séforis, trazendo-lhe marcantes influências do centro pensante do Judaísmo.
Por sua condição política e geográfica no século I, Séforis (hoje sítio arqueológico preservado como Parque Nacional de Israel) tem sido objeto de grande interesse entre especialistas das origens do Cristianismo. O móvel aparente desse interesse seria reconstruir o mundo de Jesus.
Diversos pesquisadores se esforçam por salientar a qualidade e a quantidade dos edifícios de Séforis, para elevá-la, junto com a vizinha Tiberíades, a verdadeiro monumento de urbanização, com ruas enfeitadas de colunatas, acrópole, palácio, tribunais, arquivos, banco, arsenal e população estimada em 30 mil habitantes. (CROSSAN, 1994, p. 53.) Eles destacam o teatro, a parte alta e baixa da cidade, as residências luxuosas, os mosaicos encontrados, ilustrando cenas de caça à beira do Nilo, imagens de deusas mães, de Orfeu, o poeta e músico mitológico, e de cultos a Dionísio. Ressaltam, ainda, o uso do grego como língua administrativa. E tudo isso para concluir que a vida nessa região era profundamente greco-romana.

Alguns desses pesquisadores chegam a propor que havia um número espantoso de centros urbanos e aldeias espalhado pela Baixa Galileia, o que fazia da região uma das mais densamente povoadas do Império Romano. Desse modo, seria impossível viver numa aldeia da Baixa Galileia e escapar dos efeitos e ramificações da urbanização: a “vida na Baixa Galileia do século I era tão urbanizada e citadina quanto em qualquer outro lugar do império”. (CROSSAN, 1994, p. 54.)
As aldeias da Alta Galileia ter-se-iam conservado tradicionalmente israelitas, mas a Baixa Galileia — onde estavam Séforis, Tiberíades, Nazaré, Magdala e Cafarnaum — ter-se-ia transformado em verdadeira encruzilhada de impérios.
Logo, seguindo essa linha de raciocínio, Nazaré, por ser vizinha a Séforis, integraria uma rede de relações variadas e sedutoras, sobretudo gregas e romanas, evidenciando-se, com isso, que os conterrâneos de Jesus não seriam habitantes de uma região sem desenvolvimento nem seus discípulos seriam camponeses simplórios. Outro Jesus se revelaria: não mais um carpinteiro de uma singela aldeia esquecida no interior da Galileia, mas um cosmopolita, um cidadão do mundo, envolvido no sofisticado processo de urbanização greco-romano.
Essa é uma tentativa de retratar Jesus como alguém semelhante a um filósofo grego urbano, cuja mensagem se identificaria com a filosofia cínica.
Em verdade, o estudo das ruínas de Séforis demonstra que sua reconstrução se verificou em longas etapas, e que suas grandes construções foram erigidas em períodos posteriores a Jesus, entre o final do século I e o século V.
Para justificar a grandeza das ideias e atitudes de Jesus, alguns estudiosos superestimam a influência grega e romana em sua vida.
Mas, caso houvesse tal influência, Séforis teria sido mencionada pelos evangelhos. Entretanto, devido a suas tendências greco-romanas e pagãs e, ao mesmo tempo, por ser a sede de um governo que extorquia impiedosamente o povo, cobrando três tributos (a bem de Roma, do Templo e de Antipas), recebia a indiferença dos galileus, senão o desprezo.
Além do mais, um abismo separava as classes sociais no Império Romano. Estar próximo da riqueza não significava gozá-la. A grande maioria da população era composta por artesãos e camponeses que viviam no nível da subsistência. Cerca de 97% dos habitantes da palestina eram analfabetos. (CROSSAN, 1995a, p. 41.)
Jesus é admirável demais para ter sido o simples filho de um carpinteiro, vivendo numa aldeia sem qualquer importância, numa cultura campesina. Aqueles que não o aceitam como enviado de Deus sentem a necessidade de conformá-lo ao mundo de seu tempo, para fazê-lo um produto mais correspondente a seu meio e, assim, menos extraordinário.
Enquanto Jesus crescia, Séforis se reconstruía e experimentava novo surto de progresso, e é até possível que Ele e seu pai tenham trabalhado nela, como carpinteiros, como sugerem vários especialistas desde o começo do século XX. Todavia, a Galileia que Ele mais amou foi a dos pequenos vilarejos e aldeias, ao contato com as almas simples e fecundas.



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