Capítulo XII

Amor e renúncia


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O manto da noite caía de leve sobre a paisagem de Cafarnaum e Jesus, depois de uma das grandes assembleias populares do lago, se recolhia à casa de em companhia do apóstolo. Com a sua palavra divina havia tecido luminosos comentários em torno dos mandamentos de ; Simão, no entanto, ia pensativo como se guardasse uma dúvida no coração.

Inquirido com bondade pelo Mestre, o apóstolo esclareceu:

— Senhor, em face dos vossos ensinamentos, como deveremos interpretar a vossa primeira manifestação, transformando a água em vinho, nas bodas de Caná? (Jo 2:1) Não se tratava de uma festa mundana? O vinho não iria cooperar para o desenvolvimento da embriaguez e da gula?

Jesus compreendeu o alcance da interpelação e sorriu.

— Simão — disse ele —, conheces a alegria de servir a um amigo?

Pedro não respondeu, pelo que o Mestre continuou:

— As bodas de Caná foram um símbolo da nossa união na Terra. O vinho, ali, foi bem o da alegria com que desejo selar a existência do Reino de Deus nos corações. Estou com os meus amigos e amo-os a todos. Os afetos dalma, Simão, são laços misteriosos que nos conduzem a Deus. Saibamos santificar a nossa afeição, proporcionando aos nossos amigos o máximo da alegria; seja o nosso coração uma sala iluminada onde eles se sintam tranquilos e ditosos. Tenhamos sempre júbilos novos que os reconfortem, nunca contaminemos a fonte de sua simpatia com a sombra dos pesares! As mais belas horas da vida são as que empregamos em amá-los, enriquecendo-lhes as satisfações íntimas.

Contudo, Simão Pedro, manifestando a estranheza que aquelas advertências lhe causavam, interpelou ainda o Mestre, com certa timidez:

— E como deveremos proceder quando os amigos não nos entendam, ou quando nos retribuam com ingratidão?

Jesus pôs nele o olhar lúcido e respondeu:

— Pedro, o amor verdadeiro e sincero nunca espera recompensas. A renúncia é o seu ponto de apoio, como o ato de dar é a essência de sua vida. A capacidade de sentir grandes afeições já é em si mesma um tesouro. A compreensão de um amigo deve ser para nós a maior recompensa. Todavia, quando a luz do entendimento tardar no espírito daqueles a quem amamos, deveremos lembrar-nos de que temos a sagrada compreensão de Deus, que nos conhece os propósitos mais puros. Ainda que todos os nossos amigos do mundo se convertessem, um dia, em nossos adversários, ou mesmo em nossos algozes, jamais nos poderiam privar da alegria infinita de lhes haver dado alguma coisa!…

E com o olhar absorto na paisagem crepuscular, onde vibravam sutis harmonias, Jesus ponderou, profeticamente: — O vinho de Caná poderá, um dia, transformar-se no vinagre da amargura; (Jo 19:29) contudo, sentirei, mesmo assim, júbilo em sorvê-lo, por minha dedicação aos que vim buscar para o amor do Todo-Poderoso.

Simão Pedro, ante a argumentação consoladora e amiga do Mestre, dissipou as suas derradeiras dúvidas, enquanto a noite se apoderava do ambiente, ocultando o conjunto das coisas no seu leque imenso de sombras.




Muito tempo ainda não decorrera sobre essa conversação, quando o Mestre, em seus ensinos, deixou perceber que todos os homens, que não estivessem decididos a colocar o Reino de Deus acima de pais, mães e irmãos terrestres, (Mt 10:37) não podiam ser seus discípulos.

No dia desses novos ensinamentos, terminados os labores evangélicos, o mesmo apóstolo interpelou o Senhor, na penumbra de suas expressões indecisas:

— Mestre, como conciliar estas palavras tão duras com as vossas anteriores observações, relativamente aos laços sagrados entre os que se estimam?!

Sem deixar transparecer nenhuma surpresa, Jesus esclareceu:

— Simão, a minha palavra não determina que o homem quebre os elos santos de sua vida; antes exalta os que tiverem a verdadeira fé para colocar o poder de Deus acima de todas as coisas e de todos os seres da criação infinita. Não constitui o amor dos pais uma lembrança da bondade permanente de Deus? Não representa o afeto dos filhos um suave perfume do coração?! Tenho dado aos meus discípulos o título de amigos, por ser o maior de todos.

O Evangelho — continuou o Mestre, estando o apóstolo a ouvi-lo atentamente — não pode condenar os laços de família, mas coloca acima deles o laço indestrutível da paternidade de Deus. O Reino do Céu no coração deve ser o tema central de nossa vida. Tudo mais é acessório. A família, no mundo, está igualmente subordinada aos imperativos dessa edificação. Já pensaste, Pedro, no supremo sacrifício de renunciar? Todos os homens sabem conservar, são raros os que sabem privar-se. Na construção do Reino de Deus, chega um instante de separação, que é necessário se saiba suportar com sincero desprendimento. E essa separação não é apenas a que se verifica pela morte do corpo, muitas vezes proveitosa e providencial, mas também a das posições estimáveis no mundo, a da família terrestre, a do viver nas paisagens queridas, ou, então, a de uma alma bem-amada que preferiu ficar, a distância, entre as flores venenosas de um dia!…

Ah! Simão, quão poucos sabem partir, por algum tempo, do lar tranquilo, ou dos braços adorados de uma afeição, por amor ao Reino que é o tabernáculo da vida eterna! Quão poucos saberão suportar a calúnia, o apodo, a indiferença, por desejarem permanecer dentro de suas criações individuais, cerrando ouvidos à advertência do Céu para que se afastem tranquilamente!… Como são raros os que sabem ceder e partir em silêncio, por amor ao Reino, esperando o instante em que Deus se pronuncia! Entretanto, Pedro, ninguém se edificará, sem conhecer essa virtude de saber renunciar com alegria, em obediência à vontade de Deus, no momento oportuno, compreendendo a sublimidade de seus desígnios. Por essa razão, os discípulos necessitam aprender a partir e a esperar onde as determinações de Deus os conduzam, porque a edificação do Reino do Céu no coração dos homens deve constituir a preocupação primeira, a aspiração mais nobre da alma, as esperanças centrais do Espírito!…

Ainda não havia anoitecido. Jesus, porém, deu por concluídas as suas explicações, enquanto as mãos calosas do apóstolo passavam, de leve, sobre os olhos úmidos.




Dando o testemunho real de seus ensinamentos, o Cristo soube ser, em todas as circunstâncias, o amigo fiel e dedicado. Nas elucidações de João, vemo-lo a exclamar: — “Já não vos chamo servos, porque o servo não sabe o que faz o seu senhor; tenho-vos chamado amigos, porque vos revelei tudo quanto ouvi de meu Pai!” (Jo 15:15) E, na narrativa de Lucas, ouvimo-lo dizer, antes da hora extrema: — “Tenho desejado ansiosamente comer convosco esta Páscoa, antes da minha paixão.” (Lc 22:15)

Ninguém no mundo já conseguiu elevar, à altura em que o Senhor as colocou, a beleza e a amplitude dos elos afetivos, mesmo porque a sua obra inteira é a de reunir, pelo amor, todas as nações e todos os homens, no círculo divino da família universal. Mas, também, por demonstrar que o Reino de Deus deve constituir a preocupação primeira das almas, ninguém como ele soube retirar-se das posições, no instante oportuno, em obediência aos desígnios divinos. Depois da magnífica vitória da entrada em Jerusalém, (Mt 21:1) é traído por um dos discípulos amados; negam-no os seus seguidores e companheiros; suas ideias são tidas como perversoras e revolucionárias; é acusado como bandido e feiticeiro; sua morte passa por ser a de um ladrão.

Jesus, entretanto, ensina às criaturas, nessa hora suprema, a excelsa virtude de retirar-se com a solidão dos homens, mas com a proteção de Deus. Ele, que transformara toda a Galileia numa fonte divina; que se levantara com desassombro contra as hipocrisias do farisaísmo do tempo; que desapontara os cambistas, no próprio templo de Jerusalém, (Mt 21:12) como advogado enérgico e superior de todas as grandes causas da verdade e do bem, passa, no dia do Calvário, (Mt 27:1) em espetáculo para o povo, com a alma num maravilhoso e profundo silêncio. Sem proferir a mais leve acusação, caminha humilde, coroado de espinhos, sustendo nas mãos uma cana imunda à guisa de cetro, vestindo a túnica da ironia, sob as cusparadas dos populares exaltados, de faces sangrentas e passos vacilantes, sob o peso da cruz, vilipendiado, submisso.

No momento do Calvário, Jesus atravessa as ruas de Jerusalém, como se estivesse diante da humanidade inteira, sem queixar-se, ensinando a virtude da renúncia por amor do Reino de Deus, revelando por essa a sua derradeira lição.


(.Irmão X)


Humberto de Campos
Francisco Cândido Xavier


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João 2:1

E, AO terceiro dia, fizeram-se umas bodas em Caná da Galileia: e estava ali a mãe de Jesus.

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João 19:29

Estava pois ali um vaso cheio de vinagre. E encheram de vinagre uma esponja, e, pondo-a num hissope, lha chegaram à boca.

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Mateus 10:37

Quem ama o pai ou a mãe mais do que a mim não é digno de mim; e quem ama o filho ou a filha mais do que a mim não é digno de mim.

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João 15:15

Já vos não chamarei servos, porque o servo não sabe o que faz o seu senhor, mas tenho-vos chamado amigos, porque tudo quanto ouvi de meu Pai vos tenho feito conhecer.

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Lucas 22:15

E disse-lhes: Desejei muito comer convosco esta páscoa, antes que padeça;

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Mateus 21:1

E QUANDO se aproximaram de Jerusalém, e chegaram a Betfagé, ao monte das Oliveiras, enviou então Jesus dois discípulos, dizendo-lhes:

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Mateus 21:12

E entrou Jesus no templo de Deus, e expulsou todos os que vendiam e compravam no templo, e derribou as mesas dos cambistas e as cadeiras dos que vendiam pombas.

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Mateus 27:1

E, CHEGANDO a manhã, todos os príncipes dos sacerdotes, e os anciãos do povo, formavam juntamente conselho contra Jesus, para o matarem;

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João 2:2

E foi também convidado Jesus e os seus discípulos para as bodas.

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João 2:3

E, faltando o vinho, a mãe de Jesus lhe disse: Não têm vinho.

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João 2:4

Disse-lhe Jesus: Mulher, que tenho eu contigo? ainda não é chegada a minha hora.

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João 2:5

Sua mãe disse aos serventes: Fazei tudo quanto ele vos disser.

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João 2:6

E estavam ali postas seis talhas de pedra, para as purificações dos judeus, e em cada uma cabiam dois ou três almudes.

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João 2:7

Disse-lhes Jesus: Enchei d?água essas talhas. E encheram-nas até em cima.

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João 2:8

E disse-lhes: Tirai agora, e levai ao mestre-sala. E levaram.

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João 2:9

E, logo que o mestre-sala provou a água feita vinho (não sabendo donde viera, se bem que o sabiam os serventes que tinham tirado a água), chamou o mestre-sala ao esposo.

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João 2:10

E disse-lhe: Todo o homem põe primeiro o vinho bom, e, quando já têm bebido bem, então o inferior; mas tu guardaste até agora o bom vinho.

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João 2:11

Jesus principiou assim os seus sinais em Caná da Galileia, e manifestou a sua glória; e os seus discípulos creram nele.

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Mateus 10:38

E quem não toma a sua cruz, e não segue após mim, não é digno de mim.

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Mateus 10:39

Quem achar a sua vida perdê-la-á; e quem perder a sua vida por amor de mim achá-la-á.

mt 10:39
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