Capítulo XVII

Jesus na Samaria


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Descendo Jesus, de Jerusalém para Cafarnaum, seguido de alguns dos discípulos, nas suas habituais jornadas a pé, (Jo 4:1) alcançou a Samaria, quando o crepúsculo já se fazia mais sombrio.

, e , estando com muita fome, deixaram o Mestre a repousar junto de uma pequena herdade e demandaram o lugarejo mais próximo, em busca de alimentos.

O Messias, olhando em torno de si, reconheceu que se encontrava ao lado da fonte de Jacó. Envolvida nos revérberos do Sol que ia ceder lugar às sombras da noite que se aproximavam, uma mulher acercou-se do antigo poço e observou que o Mestre lhe ia ao encontro, com a bela e costumeira placidez do seu semblante, e lhe pedia de beber.

— Como, sendo tu judeu, me pedes um favor a mim, que sou samaritana? — interrogou, surpreendida.

Jesus descansou na interlocutora o olhar tranquilo e redarguiu:

— Os judeus e samaritanos terão, porventura, necessidades diversas entre si? Bem se vê que não conheces os dons de Deus, porquanto, se houvesses guardado os mandamentos divinos, compreenderias que te posso dar da água viva.

— Que vem a ser essa água viva? — inquiriu a samaritana, impressionada. — Onde a tens, se a água aqui existente é apenas a deste poço?! Acaso serias maior do que o nosso pai Jacó que no-lo deu desde o princípio?

— Mulher, a água viva é aquela que sacia toda sede; vem do amor infinito de Deus e santifica as criaturas. E, envolvendo a samaritana no doce magnetismo de seu olhar, continuou:

— Este poço de Jacó secará um dia. No leito de terra, onde agora repousam suas águas claras, a serpente poderá fazer seu ninho. Não sentes a verdade de minhas afirmativas, ante a tua sede de todos os dias? Não obstante levares cheio o cântaro, voltarás logo mais ao poço, com uma nova sede. Entretanto, os que beberem da água viva estarão eternamente saciados. Para esses não mais haverá a necessidade material que se renova a cada instante da vida. Perene conforto lhes refrescará os corações, através dos caminhos mais acidentados, sob o Sol ardente dos desertos do mundo!…

A mulher escutava, presa de funda impressão, aquelas palavras que lhe chegavam ao santuário do espírito, com a solenidade de uma nova revelação.

— Senhor, dá-me dessa água! — exclamou interessada.

— Mas, ouve! — disse-lhe Jesus. E o Mestre passou a esclarecê-la sobre fatos e circunstâncias íntimas de sua vida particular, explicando-lhe o que se fazia necessário para que a sagrada emoção do amor divino lhe iluminasse a alma, afastando-a de todas as necessidades penosas da existência material.

Observando que não havia segredos para Jesus, a samaritana chorou e respondeu:

— Senhor, agora vejo que és de fato um profeta de Deus. Meu espírito está cheio de boa vontade e, desde muito, penso na melhor maneira de purificar minha vida e santificar os meus atos. Entretanto, é tal a confusão que observo em torno de mim, que não sei como adorar a Deus. Os meus familiares e vizinhos afirmam que é indispensável celebrar o culto ao Todo-Poderoso neste monte; os judeus nos combatem e asseveram que nenhuma cerimônia terá valor fora dos muros de Jerusalém. As discórdias nesta região têm chegado ao cúmulo. Ainda há pouco tempo, um judeu feriu um dos nossos, por causa das suas opiniões acerca da comida impura. Já que tenho a felicidade de ouvir as tuas palavras, ensina-me o melhor caminho.

O Mestre observou-a, compadecido, e exclamou:

— Tens razão. As divergências religiosas têm implantado a maior desunião entre os membros da grande família humana. Entretanto, o Pastor vem ao redil para reunir as ovelhas que os lobos dispersaram. Em verdade, afirmo-te que virá um tempo em que não se adorará a Deus nem neste monte, nem no templo suntuoso de Jerusalém, porque o Pai é Espírito e só em espírito deve ser adorado. Por isso, venho abrir o templo dos corações sinceros para que todo culto a Deus se converta em íntima comunhão entre o homem e o seu Criador!

Suave silêncio se fez entre ambos. Enquanto Jesus parecia sondar o invisível com o seu luminoso olhar, a samaritana meditava.




Daí a alguns instantes, acompanhados de grande número de populares, chegavam os discípulos, admirando-se todos de encontrarem o Messias em conversação íntima com uma mulher. Nenhum deles, todavia, aventurou qualquer observação menos digna ou imprudente. Observando que o Messias se preparava para retirar-se em busca da aldeia mais próxima, a samaritana, eminentemente impressionada com as suas revelações, solicitou a presença de todos os seus familiares e vizinhos, a fim de que o conhecessem e lhe ouvissem a palavra.

Tiago e André haviam trazido pão e algumas frutas e insistiam com Jesus para que se alimentasse. O Mestre, porém, aproveitou o instante para mais uma vez ensinar o caminho do Reino, com as suas palavras amigas, compondo parábolas singelas. Muita gente se aglomerara para ouvi-lo. Eram viajantes que demandavam regiões diferentes, a par de grande grupo de samaritanos de opiniões exaltadas. A enorme assembleia se pôs a caminho, mas o Messias continuou espalhando as suas promessas de esperança e de consolação.

Nesse ínterim, Filipe consultou os companheiros e, aproximando-se de Jesus, rogou-lhe carinhosamente:

— Mestre, por favor, aceitai um pouco de pão! É indispensável cuidardes do sustento! Descansai e comei!…

— Não te preocupes, Filipe — disse o Messias, com reconhecimento —, não tenho fome. Aliás, recebo um alimento que talvez os meus próprios discípulos ainda não puderam conhecer.

— Qual? — atalhou o apóstolo, com interesse.

— Antes de tudo, meu alimento é fazer a vontade daquele Pai misericordioso e justo que a este mundo me enviou, a fim de ensinar o seu amor e a sua verdade. Meu sustento é realizar a sua obra.

— É verdade — observou o discípulo, olhando a multidão que os acompanhava —, vedes melhor os corações e não podemos perder esta oportunidade de divulgação da Boa Nova. Levaremos para Cafarnaum mais este triunfo, porque é incontestável que obtivestes aqui, entre os samaritanos, um dos nossos maiores êxitos!…

Tiago e André ouviam, silenciosos, o diálogo.

Às palavras entusiásticas do apóstolo, o Mestre sorriu e acrescentou:

— Não é isso propriamente o que me interessa. O êxito mundano pode ser uma ondulação de superfície. O de que necessitamos, em todas as situações, é entender o que o Pai deseja de nós. Como todo o seu anelo é o do bem, eu trabalho, mas sem me prender ao anseio das vitórias imediatas.

E, dirigindo o olhar para a turba compacta de seus seguidores, exclamou para os companheiros:

— Acaso poderemos admitir que já somos compreendidos? Calemo-nos por alguns instantes, a fim de ouvirmos a opinião dos que nos seguem os passos.

Fez-se silêncio entre ele e os três discípulos, de modo que podiam ouvir distintamente os diálogos travados entre os que os acompanhavam.

— Acreditas que seja este homem o Cristo prometido? — perguntava um samaritano de boa figura aos seus amigos. — De minha parte, não aceito semelhante impostura. Este nazareno é um explorador da piedade popular.

— É certo — concordava o interpelado —, mesmo porque, em sua terra, não chega a valer um denário. Pelos próprios parentes é tido como inimigo do trabalho e há quem duvide da sua preguiçosa cabeça.

— É um louco de boa aparência — dizia uma mulher idosa para a filha —, pelo menos essa é a opinião que já ouvi de habitantes de Cafarnaum; entretanto, cá para mim, acredito seja um grande velhaco. Por que se meteu com pescadores, quando alega ser tão sábio? Por que não se transfere para Jerusalém, ou mesmo para o Tiberíades? Bem sabe a razão disso. Lá encontraria homens cultos que lhe confundiriam a presunção.

Mais próximo de Jesus, um rapaz sentenciava em voz discreta:

— Quando chegamos, foi ele achado sozinho com uma mulher. Que te parece esta circunstância? — perguntava a um companheiro de caminhada. — Certamente desejava salvá-la a seu modo… — replicou com malicioso riso o inquirido.

Num grupo vizinho, falava-se acaloradamente:

— Este homem é um espertalhão orgulhoso — dizia, convicto, um velhote —, só faz milagres junto das grandes multidões, para que sintam virtudes sobrenaturais nas suas mágicas.

— E não tem caridade — acrescentou outro —, pois ainda há pouco tempo, quando o procuraram em Cafarnaum para um sinal do Céu, fugiu para o monte, sob o pretexto de fazer orações.

A noite começava a cair de todo. No alto já brilhavam as primeiras estrelas. Jesus sentou-se com os discípulos, à margem do caminho, para um momento de repouso.




André, Tiago e Filipe estavam espantados com o que tinham visto e ouvido. Aparentemente o Mestre fora aureolado de imenso êxito; entretanto, verificaram a profunda incompreensão do povo. Foi então que Jesus, com a serenidade de todos os instantes, os esclareceu cheio da sua bondade imperturbável:

— Não vos admireis da lição deste dia. Quando veio, procurou o deserto, nutrindo-se de mel selvagem. Os homens alegaram que em sua companhia estava o espírito de Satanás. A mim, pelo motivo de participar das alegrias do Evangelho, chamam-me glutão e beberrão. Esta é a imagem do campo onde temos de operar. Por toda parte encontraremos samaritanos discutidores, atentos aos êxitos e referências do mundo. Observai a estrada para não cairdes, porque o discípulo do Evangelho não se pode preocupar senão com a vontade de Deus, com o seu trabalho sob as vistas do Pai e com a aprovação da sua consciência.


(.Irmão X)


Humberto de Campos
Francisco Cândido Xavier


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