À Luz da Oração
Versão para cópiaEntre dois Planos
Esplendia o luar, revestindo os ângulos da paisagem de intensa luz. Maravilhosos cúmulos a Oeste, espraiados no horizonte, semelhavam-se a castelos de espuma láctea, perdidos no imenso azul; confinando com a amplidão, o quadro terrestre contrastava com o doce encantamento do alto, deixando entrever a vasta planície, recamada de arvoredo em pesado verde-escuro. Ao Sul, caprichosos cirros reclinavam-se do céu sobre a Terra, simbolizando adornos de gaze esvoaçante; evoquei, nesse momento, a juventude da Humanidade encarnada, perguntando a mim mesmo se aquelas bandas alvas do firmamento não seriam faixas celestiais a protegerem o repouso do educandário terrestre.
A solidão imponente do plenilúnio infundia-me quase terror pela melancolia de sua majestosa e indizível beleza.
A ideia de Deus envolvia-me o pensamento, arrancando-me notas de respeito e gratidão, que eu, entretanto, não chegava a emitir. Em plena casa da noite, rendia culto de amor ao Eterno, que lhe criara os fundamentos sublimes de silêncio e de paz, em refrigério das almas encarnadas na Crosta da Terra.
O luminoso disco lunar irradiava, destarte, maravilhosas sugestões. Aos seus reflexos, iniciara-se a evolução terrena, e numerosas civilizações haviam modificado o curso das experiências humanas. Aquela mesma lâmpada suspensa clareara o caminho dos seres primitivos, conduzira os passos dos conquistadores, norteara a jornada dos santos. Testemunha impassível, observara a fundação de cidades suntuosas, acompanhando-lhes a prosperidade e a decadência; contemplara as incessantes renovações da geografia política do mundo; brilhara sobre a testa coroada dos príncipes e sobre o cajado de misérrimos pastores; presenciava, todos os dias, há longos milênios, o nascimento e a morte de milhões de seres. Sua augusta serenidade refletia a paz divina. Cá em baixo, desencarnados e encarnados, possuidores de relativa inteligência, podíamos proceder a experimentos, reparar estradas, contrair compromissos ou edificar virtudes, entre a esperança e a inquietação, aprendendo e recapitulando sempre; mas a Lua, solitária e alvinitente, trazia-nos a ideia da tranquilidade inexpugnável da Divina Lei.
— A região do encontro está próxima.
A palavra do Assistente Calderaro interrompeu-me a meditação.
O aviso fazia-me sentir o trabalho, a responsabilidade; lembrava, sobretudo, que não me encontrava só.
Não viajávamos, ambos, sem objetivo.
Em breves minutos, partilharíamos os trabalhos do Instrutor Eusébio, abnegado paladino do amor cristão, em serviço de auxílio a companheiros necessitados.
Eusébio dedicara-se, de há muito, ao ministério do socorro espiritual, com vastíssimos créditos em nosso Plano. Renunciara a posições de realce e adiara sublimes realizações, consagrando-se inteiramente aos famintos de luz. Superintendia prestigiosa organização de assistência em zona intermediária, atendendo a estudantes relativamente espiritualizados, pois ainda jungidos ao Círculo carnal, e a discípulos recém-libertos do campo físico.
A enorme instituição, a que dedicava direção fulgurante, regurgitava de almas situadas entre as Esferas inferiores e as superiores, gente com imensidão de problemas e de indagações de toda a espécie, a requerer-lhe paciência e sabedoria; entretanto, o indefesso missionário, mau grado ao constante acúmulo de serviços complexos, encontrava tempo para descer semanalmente à Crosta Planetária, satisfazendo interesses imediatos de aprendizes que se candidatavam ao discipulado, sem recursos de elevação para vir ao encontro de seu verbo iluminado, na sede superior.
Não o conhecia pessoalmente. Calderaro, porém, recebia-lhe a orientação, de conformidade com o quadro hierárquico, e a ele se referira com o entusiasmo do subordinado que se liga ao chefe, guardando o amor acima da obediência.
O Assistente, a seu turno, prestava serviço ativo na própria Crosta da Terra, a atender, de modo direto, aos irmãos encarnados. Especializara-se na ciência do socorro espiritual, naquela que, entre os estudiosos do mundo, poderíamos chamar “psiquiatria iluminada”, setor de realizações que há muito tempo me seduzia.
Dispondo de uma semana sem obrigações definidas, dentre os encargos que me diziam respeito, solicitei ingresso na turma de adestramento, da qual se fizera Calderaro eminente orientador, tendo-me ele aceito com a gentileza característica dos legítimos missionários do bem e propondo-se conduzir-me carinhosamente. Encontrava-se em oportunidade favorável aos meus propósitos de aprender, pois a equipe de preparação, que lhe recebia ensinamentos, excursionava em outra região, a labutar em atividades edificantes; à vista disso, poderia dispensar-me toda a atenção, auxiliando-me os desejos.
Os casos que lhe eram atinentes, explicou-me solícito, não apresentavam continuidade substancial: desdobravam-se; constituíam obra de improviso, obedeciam ao inopinado das ordens de serviço ou das situações. Noutros campos de ação, fazia-se imprescindível o roteiro, previstas as condições e as circunstâncias. No quadro de responsabilidades, porém, que lhe estavam afetas, diferiam as normas; importava acompanhar os problemas, quais imprevistas manifestações da própria vida. Em virtude de tais flutuações, não traçava, a rigor, programas quanto a particularidades. Executava os deveres que lhe competiam, onde, como e quando determinassem os desígnios superiores. O escopo fundamental da tarefa circunscrevia-se ao socorro imediato aos infelizes, evitando-se, quanto possível, a loucura, o suicídio e os extremos desastres morais. Para isto, o missionário atuante era compelido a conhecer profundamente o jogo das forças psíquicas, com acendrado devotamento ao bem do próximo. Calderaro, neste particular, não deixava perceber qualquer dúvida. A bondade espontânea lhe era indício da virtude, e a inquebrantável serenidade revelava-lhe a sabedoria.
Não lhe gozava o convívio desde muitos dias. Abraçara-o na véspera pela primeira vez; bastou, no entanto, um minuto de sintonia, para que se estabelecesse entre nós sadia intimidade. Embora lhe reconhecesse a sobriedade verbal, desde o momento do nosso encontro permutávamos impressões como velhos amigos.
Seguindo-lhe, pois, os passos, afetuosamente, de alma edificada na fraternidade e na confiança, vi-me a reduzida distância de extenso parque, em plena natureza terrestre.
Em torno, árvores robustas, de copas farfalhantes, alinhavam-se, à maneira de sentinelas adrede postadas para velar-nos pelos serviços.
O vento passava cantando, em surdina; no recinto iluminado de claridades inacessíveis à faculdade receptiva do olhar humano, aglomeravam-se algumas centenas de companheiros, temporariamente afastados do corpo físico pela força liberativa do sono.
Amigos de nossa Esfera atendiam-nos com desvelo, mostrando interesse afetivo, prazer de servir e santa paciência. Reparei que muitos se mantinham de pé; outros, contudo, se acomodavam nas protuberâncias do solo alcatifado de relva macia, em palestra grave e respeitosa.
Ambientando-me para aquela hora de extrema beleza espiritual, Calderaro avisou-me:
— Na reunião de hoje o Instrutor Eusébio receberá estudantes do espiritualismo, em suas correntes diversas, que se candidatam aos serviços de vanguarda.
— Oh! — Exclamei, curioso, — não se trata, pois, de assembleia, que agrupe indivíduos filiados indiscriminadamente às escolas da fé?
O Assistente esclareceu, de pronto:
— A medida não seria aconselhável no círculo de nossa especialidade. O Instrutor afeiçoou-se ao apostolado de assistência a criaturas encarnadas e a recém-libertas da zona física, em particular, precisando aproveitar o tempo com as horas de preleção, para o máximo de aproveitamento. A heterogeneidade de princípios em centenas de indivíduos, cada qual com sua opinião, obrigaria a digressões difusas, acarretando condenáveis desperdícios de oportunidades. [No , André Luiz descreve outra reunião como esta direcionada a católicos e evangélicos.]
Fixou a multidão demoradamente, e acrescentou:
— Temos aqui, em cálculo aproximado, mil e duzentas pessoas. Deste número oitenta por cento se constituem de aprendizes dos templos espiritualistas, em seus ramos diversos, ainda inaptos aos grandes voos do conhecimento, conquanto nutram fervorosas aspirações de colaboração no Plano Divino. São companheiros de elevado potencial de virtudes. Exemplificam a boa vontade, exercitam-se na iluminação interior através de esforço louvável; contudo, ainda não criaram o cerne da confiança para uso próprio. Tremem ante as tempestades naturais do caminho e hesitam no círculo das provas necessárias ao enriquecimento da alma, exigindo de nós particular cuidado, pois que, pelos seus testemunhos de diligência na obra espiritualizante, são os futuros instrumentos para os serviços da frente. Apesar da claridade que lhes assinala as diretrizes, ainda padecem desarmonias e angústias, que lhes ameaçam o equilíbrio incipiente. Não lhes falece, porém, a assistência precisa. Instituições de restauração de forças abrem-lhes as portas acolhedoras em nossas Esferas de ação. A libertação pelo sono é o recurso imediato de nossas manifestações de amparo fraterno. A princípio, recebem-nos a influência inconscientemente; em seguida, porém, fortalecem a mente, devagarinho, gravando-nos o concurso na memória, apresentando ideias, alvitres, sugestões, pareceres e inspirações beneficentes e salvadoras, através de recordações imprecisas.
Fez breve pausa e concluiu:
— Os demais são colaboradores de nosso Plano em tarefa de auxílio.
A organização dos trabalhos era digna de sincera admiração. Estávamos num campo substancialmente terrestre. A atmosfera, impregnada de aromas que o vento espargia em torno, recordava-me o lar na Terra, contornado de seu jardim, em noite cálida.
Que teria eu realizado no mundo físico se recebesse, em outro tempo, aquela bendita oportunidade de iluminação? Aquele punhado de mortais, sob os raios da Lua, afigurou-se-me assembleia de privilegiados, favorecidos por celestes numes. Milhões de homens e mulheres a dormir em cidades próximas, algemados aos interesses imediatos e ansiando a permuta das mais vis sensações, nem de longe suspeitariam a existência daquela original aglomeração de candidatos à luz íntima, convocados à preparação intensiva para incursões mais longas e eficientes na espiritualidade superior. Teriam a noção do sublime ensejo que lhes aprazia? Aproveitariam a dádiva com suficiente compreensão dos valores eternos? Marchariam desassombrados para a frente, ou estacionariam ao contato dos primeiros óbices, no esforço iluminativo?
Calderaro percebeu-me as silenciosas perquirições e acrescentou:
— Nossa comunidade de trabalho se dedica, essencialmente, à manutenção do equilíbrio. Não ignoras que a modificação do plano mental das criaturas ninguém jamais a impõe: é fruto de tempo, de esforço, de evolução; e o edifício da sociedade humana, em o atual momento do mundo, vem sendo abalado nos próprios alicerces, compelindo imenso número de pessoas a imprevistas renovações. Certo, não te surpreenderás se eu disser que, em face do surto da inteligência moderna, que embate na paralisia do sentimento, periclita a razão. O progresso material atordoa a alma do homem desatento. Grandes massas, há séculos, permanecem distanciadas da luz espiritual. A civilização puramente científica é um Saturno devorador, e a humanidade de agora se defronta com implacáveis exigências de acelerado crescer mental. Daí o agravo de nossas obrigações no setor da assistência. As necessidades de preparação do espírito intensificam-se em ritmo assustador.
Nesse instante, alcançamos a multidão pacífica.
Meu interlocutor sorriu, frisando:
— O acaso não opera prodígios. Qualquer realização há que planejar, atacar, pôr a termo. Para que o homem físico se converta em homem espiritual, o milagre exige muita colaboração de nossa parte.
Lançou-me olhar significativo e concluiu:
— As asas sublimes da alma eterna não se expandem nos acanhados escaninhos de uma chocadeira. Há que trabalhar, brunir, sofrer.
Nesse momento, aproximou-se alguém dirigindo-nos a palavra: era um solícito companheiro, informando-nos que Eusébio penetrara o recinto. Efetivamente, em saliência próxima, comparecia o missionário, ladeado por seis assessores, todos envoltos em halos de intensa luz.
O abnegado orientador não exibia os traços de venerável senectude com que em geral imaginamos os apóstolos das revelações divinas; mostrava-se-nos com a figura dos homens robustos, em plena madureza espiritual; os olhos escuros e tranquilos pareciam fontes de imenso poder magnético. Contemplava-nos sorridente, qual simples colega.
A presença dele impusera, porém, respeitoso silêncio. Cessaram todas as conversações que aqui e ali se entretinham, e ante os fios de luz que os trabalhadores de nosso Plano teciam em derredor, isolando-nos de qualquer assédio eventual das forças inferiores, apenas o vento calmo erguia a voz, sussurrando algo de belo e misterioso à folhagem.
Sentamo-nos todos, à escuta, enquanto o Instrutor se mantinha de pé; observando-o, quase frente a frente, eu podia agora apreciar-lhe a figura majestosa, respirando segurança e beleza. Do rosto imperturbável, a bondade e a compreensão, a tolerância e a doçura irradiavam simpatia inexcedível. A túnica ampla, de tom verde-claro, emitia esmeraldinas cintilações. Aquela vigorosa personalidade infundia veneração e carinho, confiança e paz.
Consolidada a quietude no ambiente, elevou a destra para o Alto e orou com inflexão comovedora:
Senhor da vida, Abençoa-nos o propósito De penetrar o caminho da Luz!… Somos Teus filhos, Ainda escravos de círculos restritos, Mas a sede do Infinito Dilacera-nos os véus do ser. Herdeiros da imortalidade, Buscamos-Te as fontes eternas, Esperando, confiantes, em Tua misericórdia. De nós mesmos, Senhor, nada podemos. Sem Ti, somos frondes decepadas Que o fogo da experiência Tortura ou transforma… Unidos, no entanto, ao Teu Amor, Somos continuadores gloriosos De Tua Criação Interminável. Somos alguns milhares Neste campo terrestre; E, antes de tudo, Louvamos-Te a grandeza Que não nos oprime a pequenez… Dilata-nos a percepção diante da vida, Abre-nos os olhos Enevoados pelo sono da ilusão, Para que divisemos Tua glória sem fim!… Desperta-nos docemente o ouvido, A fim de percebermos o cântico De tua sublime eternidade. Abençoa as sementes de sabedoria Que os teus mensageiros esparziram No campo de nossas almas; Fecunda-nos o solo interior, Para que os divinos germens não pereçam. Sabemos, Pai, Que o suor do trabalho E a lágrima da redenção Constituem adubo generoso À floração de nossas sementeiras; Todavia, Sem Tua bênção, O suor enlanguesce E a lágrima desespera… Sem Tua mão compassiva, Os vermes das paixões E as tempestades de nossos vícios Podem arruinar-nos a lavoura incipiente… Acorda-nos, Senhor da Vida, Para a luz das oportunidades presentes, Para que os atritos da luta não as inutilizem. Guia-nos os pés para o supremo bem; Reveste-nos o coração Com a Tua serenidade paternal, Robustecendo-nos a resistência! Poderoso Senhor, Ampara-nos a fragilidade, Corrige-nos os erros, Esclarece-nos a ignorância, Acolhe-nos em Teu amoroso regaço. Cumpram-se, Pai Amado, Os Teus desígnios soberanos, Agora e sempre. Assim seja. |
Finda a comovente rogativa, o orientador baixou os olhos nevoados de pranto, e então vi, dominado de júbilo, que da incognoscível altura uma claridade diferente caía sobre nós, em jorros cristalinos.
Partículas semelhantes a prata eterizada choviam no recinto, infiltrando-se nas raízes das árvores mais próximas, lá fora.
Ignoto encantamento fizera-se em minhalma. Ao contato dos eflúvios divinos, reparei que minhas forças gradualmente serenavam, em receptividade maravilhosa. Em torno, pairavam as mesmas notas de alegria e de beleza, pois a calma e a ventura transpareciam de todos os rostos voltados, extáticos, para o Instrutor, em redor do qual se mostravam mais intensas as ondas de luz celeste.
Sublime felicidade inundava-me todo o ser, mergulhara-me em indefinível banho de energias renovadoras.
Meus olhos foram impotentes para conter as lágrimas felizes que as formosas cintilações me destilavam das fontes ocultas do espírito. E, antes que o nobre mentor retomasse a palavra, agradeci em silêncio a resposta do Céu, reconhecendo na prece, mais uma vez, não só a manifestação da reverência religiosa, senão também o recurso de acesso aos inesgotáveis mananciais do Divino Poder.
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