A Vida Conta

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Capítulo XXXI

Certa criança


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Falávamos em torno da criança,

Numa reunião de cultura e amizade,

Na infância a flor da Humanidade

Que o Céu envia à Terra, em luzes de esperança,

Quando o Irmão Frederico nos contou

Por nota de serviço:


— Meus irmãos, quanto a isso,

Tenho um caso expressivo a relatar:

Sabem que fui pintor com grande clientela;

Certa feita, um garoto abordou-me no lar,

Seis janeiros de idade e presença singela,

Envergando um roupão imundo e roto…

Declarou residir num recanto de esgoto,

Perdera os pais na morte e pedia-me um pão.

Parei tocado de admiração.


Doía vê-lo assim, maltratado e sozinho,

Figurava-se um pássaro sem ninho,

Na manhã muito fria, a tremer e a tremer…

Enquanto se servia,

Qual se fosse num sonho de alegria

Da porção de merenda improvisada,

Fitei-lhe a cabeleira despenteada,

Os olhos luminosos de candura,

Os pés descalços com sinais de fama

E, abeirando-me dele, perguntei:

— Como se chama?

Ele me respondeu, como que a medo:

— Meu nome é Alfredo…


Uma ideia, de súbito, me veio:

Pintá-lo nuns momentos de recreio.

O pequeno aderiu.

Pousou à minha frente,

No grande ateliê a que levei-o.

Após algumas horas, tive o esboço e a base

Para a tela maior que, então, me vinha à mente…

Depois disso, o “até breve” numa frase

E alguns magros tostões na mão pequena.

No entanto, ele indagou

Num tom de voz de fazer pena:

— O senhor não me quer para morar consigo?

— Não, Alfredo, — aduzi, — tenho o meu próprio lar,

Procura um outro amigo,

Alguém há de surgir que te possa ajudar.


Olhos em pranto, entre magoado e aflito,

Postou-se à frente do meu cavalete,

Onde me vira trabalhar,

E disse: o meu retrato está bonito…

Em seguida, saiu para não mais voltar.


Surge a pausa do amigo. A emoção se lhe aviva,

Logo após, continua a narrativa:

— Dói-me rememorar, porém confesso:

O retrato de Alfredo fez sucesso…

Ganhei muito dinheiro

Em cópias e encomendas

Para festejos e oferendas…

Mas sempre: conservei o original;

Várias vezes, mudei de residência

No entanto, a grande tela

A que emprestei o nome de “Inocência”

Foi sempre, em minha sala de serviço,

O quadro principal.


Trinta e cinco janeiros transcorridos,

Com meus filhos casados… Eu doente,

Certa noite, a lembrar os tempos idos,

Observei que alguém, de passo leve,

Penetrara-me a casa, mansamente;

Colocando-me à espreita e firme à escuta,

Vi que esse alguém

Na sala de trabalho, quase à minha frente,

Manejava lanterna diminuta…

Sustentava, porém, junto ao meu leito,

Num disfarce perfeito,

O botão de uma forte campainha,

Cujo toque de alarme

Somente dava som em morada vizinha,

Onde, a qualquer instante de perigo,

Um devotado amigo

Estava pronto para auxiliar-me.

Esse amigo que amei qual se fosse meu filho,

Tinha uma chave de meu domicílio…

Fiquei, ansiosamente, a esperar e esperar,

Tremendamente mudo…

O assaltante, contudo,

Rebuscava a meu cofre, devagar…


Decorridos minutos,

Um grupo socorrista,

Ante a estranha ocorrência,

Penetrou-me, depressa, a residência,

E pôs-se logo à vista.

Fez-se luz e agitado companheiro

Atirou no infeliz

Que caiu, colocando as mãos no peito.

Ergui-me e vim para o recinto estreito…

O assaltante era um homem bem vestido

Que, a princípio, supus desconhecido;

O sangue a borbotar do peito aberto

Anunciava a morte, ali por perto…

Ele, porém, fitou-me longamente,

Depois de contemplar a tela em frente,

E, em seguida,

Falou-me em voz sumida:

— O senhor

Deve ser o pintor…

Vai lembrar-se de mim…

E como quem se via

No instante amargo e exato

Em que achava no piso o próprio fim,

Disse ainda mais quase que em segredo:

— Eu sou o Alfredo,

O Alfredo do retrato…


Sob forte emoção,

O amigo terminou a narração:

— Naquela mesma hora,

Debrucei-me chorando sobre o morto,

Atrelado a terrível desconforto…

E, ainda hoje, penso muitas vezes

Que, na Terra, por mais que se resguarde

A infância, como sendo a aurora da esperança,

O socorro à criança

Quase sempre é uma luz que brilha muito tarde…




Maria Dolores
Francisco Cândido Xavier


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