Caminhos do Amor, Os

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Capítulo IX

Transformação


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Desencantado, quanto à própria vida,

Resolvera, agitado,

Colocar todo escrúpulo de lado

E fazer-se suicida.


Caíra a noite muito fria

E ele pensava:

De que lhe valeria

Tanta posse que, há muito, desfrutava?

De que lhe serviria

A bela moradia,

Tocada de supremo reconforto,

Se trazia no peito

O coração cansado e semi-morto?


Vivia desgostoso e insatisfeito…

A esposa o abandonara

Com sinais evidentes de loucura

E arrancara-lhe a filha

Que lhe era tão cara

Para o campo de sombra e de aventura…


Dizendo adeus aos mimos familiares,

Deixou o próprio carro e demandou a rua,

Queria caminhar com os seus próprios pesares

E seguiu, sob a noite f ria e escura,

No intuito de alcançar antiga ponte,

De seu conhecimento,

Que se lhe erguia agora, em desafio

Para a liquidação de todo sofrimento

Ante a morte no rio…


Não havia avançado muitos metros,

Quando ouviu na calçada

A voz de pobre mãe agoniada:

— Senhor, salve meu filho,

Por amor a Jesus, e lhe rogo socorro…

Parou, vendo a mulher e a criança doente,

Tendo a pedra por leito e a marquise por forro…

Tateou o pequeno

Que lhe enviava o olhar quase sem brilho

E entendeu num instante

Que o menino lutava contra a morte,

Sob a pneumonia fulminante.


Cedeu farta moeda à mãe aflita

E depois de chamar por táxi vizinho,

Instalou mãe e filho com carinho

No carro que os levasse ao próximo hospital.


Que lhe importava agora o ouro da carteira,

Se admitia estar na hora derradeira?


Não dera muitos passos

E encontrou um ancião deitado a um canto,

A lhe pedir em voz recortada de pranto:

— Uma esmola, senhor! Um café que me aqueça!

Deus lhe dará em dobro o bem que me fizer…


Entregou ao pedinte uma certa quantia

E ao notar-lhe a alegria,

Indagou espontâneo: — O senhor tem família?

E o velhinho falou, de olhar vago e incomum:

— Esse luxo, hoje em dia, não me cabe,

Não sei se o senhor sabe

Que um mendigo não tem parente algum.

E pondo-se de pé,

A erguer-se devagar,

Arrastou-se, pensando no café,

À procura de um bar…


O nosso companheiro

Continuou a caminhar;

Surgia a ponte à vista,

Mas na parte de cima havia muita gente

Dedicada ao lazer.

Ele surpreendido e descontente,

Ágil, pôs-se a descer

Buscando a solidão das grandes águas

Para a extinção de suas próprias mágoas…


Mas nisso, foi detido,

Por um colega conhecido

Que lhe informou com gentileza:

Amigo, mais prudência,

Há sob a ponte enorme delinquência,

Dizem que aí por baixo há cenas revoltantes

De foragidos e assaltantes…

E sei que sob a guarda de uma bruxa

Moram juntos aí, dois terríveis bandidos,

Claramente escondidos…


O interpelado agradeceu

E disfarçou dizendo estar ali somente

À busca de um parente.


Atingindo, porém, o local que buscava

Viu tristes mãos ao seio aconchegando

Criancinhas em bando

A chorarem com frio…

Já não mais contemplou a vastidão do rio

E passou a estudar

O apoio que lhes era necessário.


Examinando o ambiente

Divisou de repente

Um pequeno recanto solitário

Qual barraca formada de improviso…

Avançou para lá, mas tristonha senhora

Disse-lhe em alta voz: — Senhor, não se aproxime!…

Ele obtemperou:

— Corre-se aqui o risco de algum crime?

A velhinha, no entanto, respondeu:

— Não, senhor!… É que eu

Tenho comigo aqui meus dois filhos leprosos,

Quis somente avisá-lo…

O senhor, entretanto, pode vê-los.


Ele fitou os jovens deformados,

As feridas em sangue entre os cabelos,

A pele em chaga, as magras mãos

A sorrirem na prova que sem dedos os feria

Demonstrando, decerto,

A valorização da própria luta,

No fel do dia a dia.


“Ah!…” — refletiu — “seriam eles

Os estranhos segredos

Que se ocultavam sob a ponte antiga,

Ante os cuidados da mendiga…”


Ao sentir, de tão perto, o sofrimento,

Mudou-se-lhe, de chofre, o pensamento…

Medita, sob a angústia que o invade:

“Por que morrer, chorando a esposa e a filha,

Se elas duas

Apenas lhe pediam a liberdade?

Por que aniquilar-se, inutilmente,

Se podia amparar a tanta gente?

Por que menosprezar a vida alheia?”


Então, ajoelhou-se sobre a areia,

Orando a soluçar…

O rio parecia acompanhar

Os gemidos que o homem desferia…

E, como a expulsar de si, em tremenda agonia,

A própria dor que atingira apogeus,

Relegou o suicídio às sombras do passado

E gritou, renovado:

— Obrigado, meu Deus!…




Maria Dolores
Francisco Cândido Xavier


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