Nas Pegadas do Mestre

Versão para cópia
CAPÍTULO 120

Horrores da guerra

O pungente e doloroso caso, que abaixo transcrevemos, foi laconicamente noticiado pelos jornais de São Paulo, desacompanhado de comentários, para não arrefecer talvez essa belicoso fogo-fátuo que andam por ai acendendo as autoridades militares, civis e eclesiásticas: Cena de sangue. — Sexagenário assassino por causa de uma crianç "Há 14 anos, o italiano Aurélio Dendi, de vinte anos, apaixonou-se pela rapariga Olga Bracher, de origem holandesa, e com ela contraiu matrimônio. Deste consórcio nasceu uma menina, Derna, que atualmente conta quase três anos. Quando rebentou a guerra, Aurélio seguiu para a Europa, a fim de servir no exército italiano, deixando a mulher e a filhinha junto de seu pai, Ângelo Dendi, de sessenta anos, residente à Avenida Tamanduateí, n. 17. Morrendo gloriosamente no campo de ação o marido de Olga, esta se entregou a uma vida desregrada, abandonando o sogro e a filhinha. Em seguida, Olga casa-se com Mário Gali, artista de maus precedentes, com o qual já antes convivera.

Após o casamento, Olga exigiu que o velho entregasse a filha. O velho, com profunda mágoa, entregou-lha; mas, sabendo que o casal ia retirar-se para Curitiba, levando sua neta, Ângelo Dendi foi, às 8 horas, procurar a nora, e pedir que deixasse em sua companhia a pequena Derna.

Olga recusou-se, e o velho exasperado sacou dum revólver, desfechando contra ela três tiros, que lhe produziram a morte.


Ângelo foi preso, iniciando-se o respectivo inquérito. "

Esta notícia traz como subtítulo: "Sexagenário assassino por causa de uma criança"; o que, a nosso ver, não exprime a verdade. Esse pobre velho tornou-se criminoso por causa da guerra.

Guerra que lhe arrebatou o filho no verdor dos anos; guerra que dissolveu uma família, até então feliz, em cujo seio o sexagenário encontrava o conforto e o carinho que a velhice reclama; guerra que atirou à prostituição uma desventurada mulher que, ao lado de seu marido, não se teria certamente desviado da senda do dever; guerra que estendeu sobre a cabeça inocente de uma criança de três anos o negro véu da orfandade; guerra, finalmente, que fêz assassino um ancião bondoso, tingindo-lhe de sangue as cãs respeitáveis, depois de lhe haver roubado filho, nora, neta, sossego e lar!

Eis aí uma pequena amostra do que é a guerra. Imagine-se por este triste episódio que se deu aqui em nosso meio, longe, muito longe do teatro das hostilidades, dos horrores indescritíveis que por lá sucedem.

Venha, depois, o articulista dizer que Aurélio Dendi morreu gloriosamente no campo de batalha. Que espécie de glória foi a dele, e por que preço a comprou?

Glória que lhe custou a morte física e moral de sua esposa, a liberdade de seu pai valetudinário, e o abandono de sua filha aos azares da sorte, em tenra idade, em tudo ainda dependendo dos bafejos e cuidados paternos.

Sublime altruísmo, dirão os medalhões dourados. Retrucaremos nós: altruísmo que por egoísmo (pois outra coisa não é a falsa ideia da pátria) sacrifica pai, mulher e filha, não é virtude, é, antes, um crime.

Guerra só às paixões humanas, porque elas são a causa da guerra.




Acima, está sendo listado apenas o item do capítulo 120.
Para visualizar o capítulo 120 completo, clique no botão abaixo:

Ver 120 Capítulo Completo
Este texto está incorreto?