Contos Desta e Doutra Vida
Versão para cópiaReligiões irmanadas
Comentávamos a conveniência de se irmanarem as religiões, em favor da concórdia no mundo, quando meu amigo Tertuliano da Cunha, desencarnado no Pará, falou entre brejeiro e sentencioso:
— Gente, é necessário pensar nisso com precaução. Ideia religiosa é degrau da verdade e o discernimento varia de cabeça para cabeça. Exaltam vocês a excelência de larga iniciativa, em que os múltiplos templos sejam convocados à integração num plano único de atividade; entretanto, não será muito cedo para semelhante cometimento?
Porque a pergunta vagueasse no ar, o experiente sertanista piscou os olhos, sorriu malicioso e aduziu:
— Isso me faz lembrar curiosa fábula que me foi relatada por velho índio, numa de minhas excursões no Xingu.
E contou:
— Reza uma lenda amazônica que, certa feita, a onça, muito bem posta, surgiu na selva, imensamente transformada. Ela, que estimava a astúcia e a violência, nas correrias contra animais indefesos, escondia as garras tintas de sangue e dizia acalentar o propósito de reunir todos os bichos no caminho da paz. Declarava haver entendido, enfim, que Deus é o Pai de todas as criaturas e que seria aconselhável que todas o adorassem num só verbo de amor. Confessava os próprios erros. Reconhecia haver abusado da inteligência e da força. Despertara o terror e a desconfiança de todos os companheiros, quando era seu justo desejo granjear-lhes a simpatia e a veneração. Convertera-se, porém, a princípios mais elevados. Queria reverenciar o Supremo Senhor, que acendera o Sol, distribuíra a água e criara o arvoredo, animada de intenções diferentes. Para isso, convidava os irmãos à unidade. Poderiam, agora, viver todos em perpétua harmonia, porquanto, arrependida dos crimes que cometera, aspirava somente a prestigiar a fé única. Renunciaria ao programa de guerra e dominação. Não mais perseguiria ou injuriaria a quem quer que fosse. Pretendia simplesmente estabelecer na floresta uma nova ordem, que a todos levasse a se prosternarem perante Deus, honrando a fraternidade. Solenizando o acontecimento, congraçar-se-ia a família do labirinto verde em grande furna, para manifestações de louvor à Providência Divina. Macacos e cervos, lebres e pacas, tucanos e garças, patos e rãs, que oravam, em liberdade, a seu modo, escutaram o nobre apelo, mas duvidaram da sinceridade de tão alto discurso. Todavia, apareceram serpentes e raposas, aranhas e abutres, amigos incondicionais do ardiloso felídeo, aderindo-lhe ao brilhante projeto. E tamanhos foram os argumentos, que a bicharada mais humilde se comoveu, assentando, por fim, que era justo aceitar-se a proposta feita em nome do Pai Altíssimo. Marcado o dia para a importante assembleia, todos se dirigiram para a loca escolhida, repentinamente transfigurada em santuário de flores. Quando a cerimônia ia a meio caminho, com as raposas servindo de locutoras para entreter os ouvintes, as serpentes deitaram silvos estranhos sobre os crentes pacatos as aranhas teceram escura teia nos orifícios do antro, embaçando o ambiente, os abutres entupiram a porta de saída, e a onça, cruel, avançou sobre as presas desprevenidas, transformando a reunião em pavoroso repasto… E os bichos que sobraram foram escravizados na sombra, para banquete oportuno…
Nosso amigo fez longa pausa e ajuntou:
— A união de todos os credos é meta divina para o divino futuro, mas, por enquanto, a Terra ainda está fascinada pelo critério da maioria. Como vemos, é possível trabalhar pela conciliação dos religiosos de todas as procedências; no entanto, segundo anotamos, será preciso enfrentar a onça e os amigos da onça… Onde o melhor caminho para a melhor solução?…
Sorrimos todos, desapontados, mas não houve quem quisesse continuar o exame do assunto, após a palavra do engraçado e judicioso comentarista.
(.Humberto de Campos)
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