Capítulo III

Roma e a humanidade

Meus caros amigos, alguns de vós, que aqui vos achais, possuís dedicação e amor à causa da Luz e da Verdade; é lícito, portanto, procuremos corresponder aos vossos esforços e aspirações de conhecimento, ofertando-vos todas as coisas do espírito, dentro das nossas possibilidades, para que vos sirvam de auxílio na escalada difícil da verdade.

Numerosas são as falanges de seres que se entregam à difusão das teorias espiritualistas e que operam, na atualidade, o milagre do ressurgimento da filosofia cristã, em sua pureza de antanho. É que chegados são os dias das explicações racionais de todos os séculos que tendes atravessado com os olhos vendados para os domínios da espiritualidade, devido os preconceitos das posições sociais e sentimentos de utilitarismo de vários sistemas religiosos e filosóficos, desvirtuados em suas finalidades, em seus princípios.

Nossos desejos seriam os de que a nossa voz fosse ouvida, veiculando-se a palavra da imortalidade sobre toda a Terra; todavia, não serão feitos em vão os nossos apelos.

Por constituir tema de interesse geral para quantos mourejam nas fainas benditas do conhecimento da verdade, subordinei estas palavras à epígrafe “Roma e a Humanidade”, a fim de levar-vos a minha pequena parcela de instrução sobre o Catolicismo que, deturpando nos seus objetivos as lições do Evangelho, se tornou uma organização política em que preponderam as características essencialmente mundanas.



Fundada em tempos remotíssimos, por agrupamentos de homens que experimentavam a necessidade de recíproca defesa e proteção mútua, edificou-se Roma, sobre as lendas de Rômulo, do rapto das Sabinas e outras. Habitada por indivíduos acostumados à rudeza, tornou-se populosa com os reforços de habitantes que constantemente lhe vinham dos núcleos circunvizinhos, vindo a ser em breve a cidade que se transformaria na célebre república, depois império, e que tão fortemente predomina sobre os destinos humanos.

Como, porém, não é objeto da nossa palestra o estudo da história universal, sintetizemos, para alcançar o nosso desiderato.



Edificante é a investigação, o estudo acerca do Cristianismo nos primeiros tempos de sua história; edificante lembrarmos as apagadas figuras de pescadores humildes, grosseiros e quase analfabetos, a enfrentarem o extraordinário e secular edifício erguido pelos triunfos romanos, objetivando a sua reforma integral.

Afrontando a morte em todos os caminhos, reconheceram, em breve, que inúmeros Espíritos oprimidos os aguardavam e com eles se transformavam em anunciadores da causa do Divino Mestre.

A história da igreja cristã nos primitivos séculos está cheia de heroísmos santificantes e de redentoras abnegações. Nas dez principais perseguições aos cristãos, de Nero a Diocleciano, vemos, pelo testemunho da História, gestos de beleza moral dignos de monumentos imperecíveis. Foi assim que contando com a animadversão das autoridades da filosofia em voga na época, os seguidores do Cristo sentiram forte amparo na voz esclarecida de Tertuliano, Clemente de Alexandria, Orígenes e outras sumidades do tempo. A conversão de Saulo de Tarso, cidadão romano, também influiu poderosamente na difusão do novo ideal e todo o sangue dos mártires da fé transformou-se em sementeira bendita de crença e de esperança consoladora.



Nos primitivos movimentos de propaganda da nova fé, não possuíam nenhuma supremacia os bispos romanos entre os seus companheiros de episcopado e a igreja era pura e simples, como nos tempos que se seguiram ao regresso do seu divino fundador às regiões da Luz. As primeiras reformas surgiram no quarto século da vossa era, quando Basílio de Cesareia e Gregório Nazianzeno instituíram o culto aos santos.

Os bispos romanos sempre desejaram exercer injustificável primazia entre os seus co-irmãos, todavia, semelhantes pretensões foram sempre profligadas, destacando-se entre os vultos que as combateram a venerável figura de Agostinho, que se tornara adepto fervoroso do Crucificado à força de ouvir as prédicas de Ambrósio, bispo de Milão, a cujos pés se prosternou Teodósio, o Grande, penitenciando-se das crueldades perpetradas ao reprimir a revolta dos tessalonicenses.

Desde o primeiro concílio ecumênico de Niceia, convocado para condenação do cisma de Ario, continuaram as reuniões desses parlamentos eclesiásticos, onde eram debatidos todos os problemas que interessavam ao movimento cristão. Datam dessas famosas reuniões as inovações desfiguradoras da beleza simples do Evangelho; ainda aí, contudo, nesses primeiros séculos que sucederam à implantação da doutrina de Jesus, destinada a exercer tão acentuada influência na legislação de todos os povos não se conhecia, em absoluto, a hegemonia da Igreja de Roma entre as outras congêneres. Somente no princípio do século VII, a presunção dos prelados romanos encontrou guarida no famigerado imperador Focas, que outorgou a Bonifácio a primazia injustificável de bispo universal. Consumada essa medida, que facilitava ao orgulho e ao egoísmo toda sua nociva expansibilidade, têm-se levado a efeito, até hoje, os maiores atentados, que culminaram, em 1870, na declaração da infalibilidade papal.



A doutrina de Jesus, concentrando-se à força na cidade dos césares, aí permaneceu como encarcerada pelo poder humano e passando por consecutivas reformas, perdeu a simplicidade encantadora das suas origens, transformando-se num edifício de pomposas exterioridades. Após a instituição do culto dos santos, surgiram imediatamente os primeiros ensaios de altares e paramentos para as cerimônias eclesiásticas, medidas aventadas pelos pagãos convertidos, os quais, constantemente, foram adaptando a Igreja a todos os sistemas religiosos do passado. O dogma da trindade é uma adaptação da trimúrti da Antiguidade oriental que reunia nas doutrinas do bramanismo os três deuses — Brama, Vichnu e Siva. É verdade que as coisas inacessíveis ainda a vossa compreensão e que constituem os mistérios celestes, só vos podem ser transmitidas em suas expressões simbólicas; mas, o Catolicismo não pode aproveitar-se desse argumento para impor-se como única doutrina infalível e soberana. Ele era uma escola religiosa, como qualquer outra que busque nortear os homens para o bem e para Deus, mas que perdeu esse objetivo, pecando constantemente por orgulho dos seus dirigentes, os quais raras vezes sabem exemplificar a piedade cristã.

A história do papado é a do desvirtuamento dos princípios do Cristianismo, porque, pouco a pouco, o Evangelho quase desapareceu sob as suas despóticas inovações. Criaram os pontífices o latim nos rituais, o culto das imagens, a canonização, a confissão auricular, a adoração da hóstia, o celibato sacerdotal e, atualmente, noventa por cento das instituições são de origem humaníssima, fora de quaisquer características divinas.



Perdido o cetro da sua hegemonia na Antiguidade, o espírito de supremacia perdurou, entretanto, na grande cidade, outrora teatro de todos os aviltamentos e corrupções da humanidade. Foi dessa ânsia, de operar um retrospecto da História, que nasceu provavelmente o desejo de o bispo romano arvorar-se em chefe do Cristianismo; o que Roma perdera, com o progresso e com a expansão dos povos, reaveria nos domínios das coisas espirituais.

E assim aconteceu.

O Vaticano, porém, não soube senão produzir obras de caráter exclusivamente material, tornando-se potência de poder e autoridade temporais. Afogou-se na vaidade, obtendo o que procurava, porquanto tem o seu império na Terra, que ainda não é o reino de Jesus. O seu fastígio, as suas suntuosas basílicas, as suas pomposas solenidades recordam o politeísmo e as dissipações da sociedade romana e, quando o sumo pontífice aparece em vossos dias na sédia gestatória, é o retrato dos cônsules do antigo senado quando saíam a público, precedidos de litores. O símile é perfeito.

Meu objetivo foi mostrar-vos a inexistência do selo divino nas instituições católicas. Toda a força da igreja, na atualidade, vem da sua organização política, que busca contemporizar com a ignorância. O milagre que se operou nalguns espíritos de eleição, como o divino inspirado da Umbria, gerou-se da beleza do Evangelho e dos tempos apostólicos, unicamente, porque, entre Jesus e o papa, entre os apóstolos e os clérigos, há uma distância imensurável.

O Vaticano conservará seu poderio, enquanto puder adaptar-se a todos os costumes políticos das nacionalidades; mas, quando o Evangelho for integralmente restabelecido, quando a onda de uma reforma visceral purificar o ambiente das democracias com a luminosa mensagem da fraternidade humana, desaparecerá, não podendo ser absolvido na balança da História, porque ao lado dos poucos bens que espalhou está o peso esmagador das suas muitas iniquidades.




Emmanuel
Francisco Cândido Xavier


Acima, está sendo listado apenas o item do capítulo 3.
Para visualizar o capítulo 3 completo, clique no botão abaixo:

Ver 3 Capítulo Completo
Este texto está incorreto?