Falando a Terra

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Capítulo XXXIII

O juiz compassivo


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Dor


O Homem rude, escravo da Natureza, através de laborioso atrito no bosque cerrado, fez fogo crepitante, e a lenha, a consumir-se, lamentou com amargura:

— Ai de mim! quem me socorre? quem me livrará do incêndio devastador?

Mal se calara o combustível, grande porção de ferro bruto foi trazida ao braseiro e o minério chorou, clamando:

— Ó Céus! o calor me consome! desventurado que sou! quem me arrancará de semelhante inferno?

Emudeceu o infeliz e, depois de alguns dias, o ferro, convertido em arado, sulcava a terra, que gemia, dilacerada:

— Quem se atreve a rasgar-me o seio de mãe? Dou quanto tenho à vida… Por que me despedaçam o coração? Piedade! Piedade!…

O silêncio, todavia, tornou ao terreno. Decorridas algumas horas, o grão foi lançado às chagas da terra e, vendo-se tragado pelo solo, exclamou:

— Quem me atenta, assim, contra a fraqueza? Deus de bondade! não me entregueis à sanha dos maus… Tenho medo, a escuridão me sufoca e o frio me impele à morte!

Entretanto, acabou submetido e, pouco tempo depois, ressurgiu na forma de arbusto frágil que, dia a dia, cresceu, floriu e frutificou.

Quando a espiga madura se orgulhava ao sol, veio a segadeira que a decepou sem comiseração. A espiga, triste, reclamou, atormentada:

— Que será de mim? de onde procede o golpe que me abate?! justiça! justiça!

O debulhador, contudo, em momentos rápidos, cortou-lhe a voz, e agora, em lugar dela, apareciam bagas robustas e anchas de si.

A breve trecho, estas foram precipitadas na canoura do moinho, e, quando enorme pedra realizava o esmagamento, encheu-se o ar de brados comoventes:

— Socorro! socorro! salvem-nos! salvem-nos!…

O serviço da velha mó impôs, sem demora, estranha quietude, e onde existiam grãos preciosos apareceu lirial farinha, a qual, parecia, nada haveria de perturbar.

Veio, porém, o amassador, que, misturando-a a ingredientes diversos, com ela formou substanciosa massa.

A farinha chorava e lamentava-se dolorosamente e, ao ser conduzida ao forno, gritou, súplice:

— Que crime cometi para sofrer, assim, tamanha flagelação?

Pouco a pouco, o fortíssimo calor a emudeceu; findas algumas horas, era ela formoso pão na mesa do Homem.

O feliz comensal fez-se rodeado de várias presas, tais como a uva pisada no lagar, em forma de vinho, uma costela sanguinolenta de ovelha choupada ao amanhecer, ervilhas afogadas em molho excitante e alguns pequeninos cadáveres de peixe enlatado, e comeu, comeu, comeu… sem o menor pensamento de gratidão pelo repasto que tantos sacrifícios custara à Natureza.

Repetia-se, diariamente, a mesma cena, quando o Céu, compadecido e preocupado, enviou a Fé ao gastrônomo esquecido de si mesmo, e, com delicadeza, a virtude divina o convidou a trabalhar na sementeira do bem. Não seria razoável dar alguma coisa ao mundo que tudo lhe dava, auxiliando a Terra, de algum modo, no amparo às criaturas inferiores?

O Homem, no entanto, desferiu gargalhada escarninha e, menosprezando-a, refestelou-se em veludosa poltrona onde se pôs a roncar.

Reparou a Fé, sob forte assombro, que enquanto o ferro, o grão e o animal se achavam despertos, atendendo à finalidade que lhes competia nos círculos da Vida, o Homem, na vigília ou no sono, guardava as mesmas características de inconsciência quanto à própria destinação; em face de tanta dureza, retornou ela ao Paraíso, onde relacionou o que observara, rogando, então, ao Divino Poder fosse a Dor enviada ao Homem, com as atribuições de juiz compassivo e reto, a fim de despertá-lo.

E veio a Dor, e com ele ficou…



Bulão Pato n
Francisco Cândido Xavier


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