Há dois mil anos...

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Capítulo I

A morte de Flamínio

SEGUNDA PARTE • SEGUNDA PARTE.


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O ano de 46 corria calmo.

Em Cafarnaum,  vamos encontrar, de novo, as nossas personagens mergulhadas numa serenidade relativa.

As autoridades administrativas, em Roma, não eram as mesmas. Entretanto, apoiado no prestígio do seu nome e nas consideráveis influências políticas de Flamínio Sevérus, perante o Senado, Públio Lêntulus continuava comissionado na Palestina,  onde gozava de todos os direitos e regalos políticos, na administração provincial.

 

Debalde continuara ali o senador, a despeito de todo o seu imenso desejo de voltar à sede do governo imperial, esperando o ensejo de reaver o filho, que o tempo continuava a reter no domínio das sombras misteriosas. Nos últimos anos, perdera por completo a esperança de atingir o seu desiderato, mesmo porque, considerava, a esse tempo Márcus Lêntulus deveria estar no seu primeiro período de juventude, tornando-se irreconhecível aos olhos paternos.

Outras vezes, ponderava o orgulhoso patrício que o filho não mais vivia; que, certamente, as forças perversas e criminosas que o haviam arrebatado do lar teriam exterminado, igualmente o gracioso menino sob a foice da morte, temendo uma punição inexorável. Lá dentro, porém, no imo d’alma, latejava a intuição de que Márcus ainda vivia, razão por que, entre as indecisões e alternativas, de todos os dias, resolvera, antes de tudo, ouvir a voz do dever paternal, lançando mão de todos os recursos para reencontrá-lo, permanecendo ali indefinidamente, contra os seus projetos mais decididos e mais sinceros.

 

A esse tempo, vamos encontrá-lo com os traços fisionômicos ligeiramente alterados, embora treze anos houvessem dobado sobre os dolorosos acontecimentos de 33. Seus cabelos ainda guardavam integralmente a cor natural e apenas algumas rugas, quase imperceptíveis, tinham vindo acentuar a sua fácies de profunda austeridade. Serena tristeza lhe pairava no semblante, invariavelmente, levando-o a isolar-se quase da vida comum, para mergulhar tão somente no oceano dos seus papéis e dos seus estudos, com a única preocupação de maior vulto, que era a educação da filha, buscando dotá-la das mais elevadas qualidades intelectivas e sentimentais. Sua vida no lar continuava a mesma, embora o coração muitas vezes lhe pedisse reatar o laço conjugal, atendendo àqueles treze anos de separação íntima, com a mais absoluta renúncia de Lívia a todas e quaisquer distrações que não fossem as da vida doméstica e da sua crença, fervorosa e sincera. A sós com as suas meditações, Públio Lêntulus deixava divagar o pensamento pelas recordações mais doces e mais distantes e, nessas horas de introspecção, ouvia a voz da consciência que subia do coração ao cérebro, como um apelo à razão inflexível, tentando destruir-lhe os preconceitos, mas o orgulho vencia sempre, com a sua rigidez inquebrantável. Algo lhe dizia no íntimo que sua mulher estava isenta de toda mácula, mas o espírito de vaidade preconceituosa lhe fazia ver, imediatamente, da esposa ao deixar o gabinete privado de Pilatos, em vestes de disfarce, ouvindo ainda, sinistramente, as palavras escarninhas de Fúlvia Prócula, nas suas calúnias estranhas e criminosas…

 

Lívia, porém, se insulara, envolta num véu de triste resignação, como quem espera as providências sobrenaturais, que nunca aparecem no inquieto decurso de uma existência humana. O esposo a conservava junto da filha, atendendo simplesmente à condição de mãe, não lhe permitindo, porém, de modo algum, interferir nos seus planos e trabalhos educativos.

Para Lívia, aquele golpe rude fora o maior sofrimento da sua vida. A própria calúnia não lhe doera tanto; mas, o reconhecer-se como dispensável junto da filha do seu coração, constituía a seus olhos a mais dolorosa humilhação da sua existência. Era por esse motivo que mais se abroquelava na fé, procurando enriquecer a alma sofredora, com as luzes da crença fervorosa e sincera.

Longe de conservar as energias orgânicas, tal como acontecera ao marido, seu rosto testemunhava as injúrias do tempo, com a sua pesada bagagem de sofrimentos e amarguras. Na sua fronte, que as dores haviam santificado, pendiam já alguns fios prateados, enquanto os olhos profundos se tocavam de brilho misterioso, como se houvessem intensificado o próprio fulgor, de tanto se fixarem no infinito dos céus. Seus traços fisionômicos, embora atestassem velhice prematura, revelavam ainda a antiga beleza, agora transformada em indefinível e nobre expressão de martírio e de virtude. Um único pedido fizera ao esposo, quando se viu isolada dos seus afetos mais queridos, no ambiente doméstico, longe do próprio contato espiritual com a filha, circunstância que ainda mais lhe afligia o coração amargurado: — foi apenas que lhe permitisse continuar nas suas práticas cristãs, em companhia de Ana, que tanto se lhe afeiçoara, com aquele espírito de dedicação que lhe conhecemos, a ponto de desprezar as oportunidades que se lhe ofereceram para constituir família. O senador deu-lhe ampla permissão em tal sentido, chegando a facultar-lhe recursos financeiros para atender aos numerosos operários da doutrina que a procuravam, discretamente, amparando-se nas suas possibilidades materiais para iniciativas renovadoras.

 

Falta-nos, agora, apresentar Flávia Lentúlia aos que a viram na infância, doente e tímida.

No esplendor dos seus vinte e dois anos, ostentava o fruto da educação que o pai lhe dera, com a forte expressão pessoal do seu caráter e da sua formação espiritual.

A filha do senador era Lívia, na encantadora graça dos seus dotes físicos, e era Públio Lêntulus, pelo coração. Educada por professores eminentes, que se sucederam no curso dos anos, sob a escolha dos Sevérus, que jamais se descuidaram dos seus amigos distantes, sabia o idioma pátrio a fundo, manejando o grego com a mesma facilidade e mantendo-se em contato com os autores mais célebres, em virtude do seu constante convívio com a intelectualidade paterna.

A educação intelectual de uma jovem romana, nessa época, era sem dúvida secundária e deficiente. Os espetáculos empolgantes dos anfiteatros, bem como a ausência de uma ocupação séria, para as mulheres do tempo, em face da incessante multiplicação e barateamento dos escravos, prejudicaram sensivelmente a cultura da mulher romana, no fastígio do Império, quando o espírito feminino rastejava no escândalo, na depravação moral e na vida dissoluta.

O senador, porém, fazia questão de ser um homem antigo. Não perdera de vista as virtudes heroicas e sublimadas das matronas inesquecíveis, das suas tradições familiares, e foi por isso que, fugindo à época, buscou aparelhar a filha para a vida social, com a cultura mais aprimorada possível, embora lhe enchesse igualmente o coração de orgulho e vaidade, com todos os preconceitos do tempo.

 

A jovem amava a mãe com extrema ternura, mas à vista das ordens do pai, que a conservava invariavelmente junto dele, nos seus gabinetes de estudo ou nas pequenas viagens costumeiras, não fazia mistério da sua predileção pelo espírito paterno, de quem presumia haver herdado as qualidades mais fulgurantes e mais nobres, sem conseguir entender a doce humildade e a resignação heroica da mãe, tão digna e tão desventurada.

O senador buscara desenvolver-lhe as tendências literárias, possibilitando-lhe as melhores aquisições de ordem intelectual, admirando-lhe a facilidade de expressão, principalmente na arte poética, tão exaltada naquela época.

O tempo transcorria com relativa calma para todos os corações.

De vez em quando, falava-se na possibilidade de regressar a Roma, plano esse cuja realização era sempre procrastinada, em vista da esperança de reencontrar o desaparecido.

 

Num dia suave do mês de março, quando as árvores frondosas se cobriam de flores, vamos encontrar na casa do senador um mensageiro que chegava de Roma a toda pressa.

Tratava-se de um emissário de Flamínio Sevérus, que em longa carta comunicava ao amigo o seu precário estado de saúde, acrescentando que desejava abraçá-lo antes de morrer. Comovedores apelos constavam desse documento privado, suscitando ao espírito de Públio as mais acuradas ponderações. Todavia, a leitura de uma carta assinada por Calpúrnia, que viera em separado, era decisiva. Nesse desabafo, a veneranda senhora o informou do estado de saúde do marido, que, a seu ver, era precaríssimo, acentuando os penosos dissabores e angustiosas preocupações que ambos experimentavam acerca dos filhos, que, em plena mocidade, se entregavam às maiores dissipações, seguindo a corrente de desvarios sociais da época. Terminava a carta comovedora, pedindo ao amigo que voltasse, que os assistisse naquele transe, de modo que a sua amizade e paternal interesse representassem uma força moderadora junto de Plínio e de Agripa, que, homens feitos, se deixavam levar no turbilhão dos prazeres mais nefastos.

 

Públio Lêntulus não hesitou um instante. Mostrou à filha os documentos recebidos e, depois de examinarem, juntos, os pormenores do seu conteúdo, comunicou a Lívia o seu propósito de voltar a Roma na primeira oportunidade.

A nobre senhora lembrou-se, então, de quão diversa lhe seria a vida na grande cidade dos césares, com as ideias que agora possuía e pediu a Jesus não lhe faltasse a coragem necessária para vencer em todos os embates que houvesse de sustentar na sociedade romana, para conservar íntegra a sua fé.

A volta a Roma não reclamou, desse modo, grande demora. O mesmo emissário levou as instruções do senador para os seus amigos da Capital do Império e, daí a pouco, uma galera os esperava em Cesareia,  reconduzindo a família Lêntulus, de regresso, depois da permanência de quinze anos na Palestina. 

Desnecessário dizer dos pequeninos incidentes do retorno, tal a vulgaridade das viagens antigas, com a sua monotonia, aliada às vagarosas perspectivas e ao doloroso espetáculo do martírio dos escravos.

 

Cumpre-nos, entretanto, acrescentar que, nas vésperas da chegada, o senador chamou a filha e a mulher, dirigindo-lhes a palavra em tom discreto:

— Antes de aportarmos, convém lhes explique a minha resolução a respeito do nosso pobre Márcus.

Há muitos anos, guardo o maior silêncio em torno do assunto, para com os meus afeiçoados de Roma e não desejo ser considerado mau pai, em nosso ambiente social. Somente uma circunstância, como a que nos impõe esta viagem, me levaria a regressar, porquanto não se justifica que um pai abandone o filho em tais paragens, ainda mesmo torturado pela incerteza da continuidade de sua existência.

Assim, resolvi comunicar, a quantos mo perguntem, que o filho está morto há mais de dez anos, como, de fato, deverá estar para nós outros, visto a impossibilidade de o reconhecermos, na hipótese do seu reaparecimento.

Se soubessem de nossas mágoas, não faltariam embusteiros que desejassem ludibriar nossa boa fé, explorando o sentimentalismo familiar.

Ambas assentiram na decisão, que lhes parecia a mais acertada e, daí a minutos, o porto de Óstia  estava à vista, agora lindamente aparelhado pelo zelo do Imperador Cláudio,  que ali mandara executar obras interessantes e monumentais.

 

Nessa hora, não se observava o contentamento, natural em tais circunstâncias.

A partida, quinze anos antes, havia sido um cântico de esperança nas expectativas suaves do futuro, mas o regresso estava cheio do silêncio amargo das mais penosas realidades.

Além do desencanto da vida conjugal, Públio e Lívia não viam ali, entre os rostos amigos que os esperavam, as silhuetas de Flamínio e Calpúrnia, que consideravam irmãos muito amados.

Contudo, dois rapazes simpáticos e fortes, de gestos desembaraçados, nas suas togas irrepreensíveis, dirigiram-se a eles imediatamente, em escaleres confortáveis, mal a embarcação havia ancorado, rapazes esses que senador e esposa reconheceram de pronto, num afetuoso e comovido abraço.

Tratava-se de Plínio e seu irmão que, incumbidos pelos pais, vinham receber os queridos ausentes.

 

Apresentados à Flávia, ambos fizeram um movimento instintivo de admiração, recordando o dia da partida, quando a haviam acomodado no beliche, entre os seus gemidos e caretas de criança doente.

A jovem impressionara-se, também, com a figura de ambos, de quem possuía apagadas reminiscências, entre as recordações remotas da sua infância. Principalmente Plínio Sevérus, o mais moço, a havia impressionado profundamente, com os seus vinte seis anos completos, no mesmo porte elegante e distinto com que ela havia idealizado o herói da sua imaginação feminina.

Notava-se, igualmente, num relance, que o rapaz não ficara indiferente àquelas mesmas emoções, porque, trocadas as primeiras impressões da viagem e examinada a situação da saúde de Flamínio Sevérus, considerada pelos filhos como excessivamente grave, Plínio ofereceu o braço à jovem, enquanto Agripa lhe observava num leve tom de ciúme:

— Mas que é isso, Plínio? Flávia pode suscetibilizar-se com a tua intimidade excessiva!…

— Ora, Agripa — respondeu ele, com um franco sorriso —, estás muito prejudicado pelos formalismos da vida pública. Flávia não pode estranhar os nossos costumes, na sua condição de patrícia pelo nascimento e, ao demais, não nasci para as disciplinas do Estado, tão do teu gosto!…

 

A essas palavras, ditas com visível bom humor, acrescentou Públio Lêntulus, confortado pelo ambiente da sua predileção:

— Vamos, meus filhos!

E dando o braço à esposa, para desempenhar a comédia da sua felicidade conjugal na vida comum da grande cidade, seguido de Plínio, que amparava a jovem no seu braço forte e conquistador em assuntos do coração, desembarcaram junto de Agripa, a fim de descansarem um pouco, antes de seguirem diretamente para Roma, e, para o que, todas as providências haviam sido tomadas pelos irmãos Sevérus, com o máximo de carinho e espontânea dedicação.

Lívia não se esqueceu de Ana, providenciando para o seu conforto junto aos demais servos da casa, em todo o percurso de caminho que os separava da residência.

Em direção à cidade, pensou então o senador que, finalmente, ia rever o amigo muito amado. Há longos anos acariciava a ideia de confessar-lhe, de viva voz, todos os seus desgostos na vida conjugal, expondo-lhe com franqueza e sinceridade as suas preocupações, acerca dos fatos que o separavam da esposa, na intimidade do lar. Tinha sede de suas palavras afetuosas e de explicações consoladoras, porque sentia que amava a mulher acima de tudo, apesar de todos os dissabores experimentados. Não crendo sinceramente na sua queda, apenas seu orgulho de homem o afastava de uma reconciliação que cada dia se tornava mais imperiosa e necessária.

 

Em breve defrontavam a antiga residência, lindamente ornamentada para recebe-los. Numerosos servos se movimentavam, enquanto os recém-vindos faziam o reconhecimento dos lugares mais íntimos e mais familiares.

Havia quinze anos que o palácio do Aventino  aguardava os donos, sob o carinho de escravos dedicados e dignos.

Logo se servia uma refeição frugal no triclínio, enquanto os irmãos Sevérus, que participavam desse ligeiro repasto, esperavam os seus amigos, a fim de seguirem todos juntos para a residência de Flamínio, onde o enfermo os aguardava ansiosamente.

Plínio, em dado instante, como quem traz à baila uma notícia interessante e agradável, exclamou, dirigindo-se ao senador:

— Há bem tempo, ficamos conhecendo vosso tio Sálvio Lêntulus e sua família, que residem perto do Fórum. 

— Meu tio? — perguntou Públio, impressionado, como se as lembranças de Fúlvia lhe trouxessem ao íntimo uma aluvião de fantasmas. Mas, ao mesmo tempo, como se estivesse fazendo o possível por adormentar as próprias mágoas, acentuou com suposta serenidade:

— Ah! é verdade! Faz mais de doze anos que ele regressou da Palestina… 

 

Foi neste comenos que Agripa interveio como a vingar-se da atitude do irmão, quando ainda não havia desembarcado, exclamando intencionalmente:

— E por sinal que Plínio parece inclinado a desposar-lhe a filha, de nome Aurélia, com quem mantém as melhores relações afetivas, de muito tempo.

Ao ouvir essas palavras, Flávia Lêntulus fitou o interpelado, como se entre o seu coração e o filho mais moço de Flamínio já houvesse os mais fortes laços de compromissos sentimentais, dentro das leis misteriosas das afinidades psíquicas. Enquanto se passava esse duelo de emoções, Plínio fitou o irmão quase com ódio, dando a entender a impulsividade do seu espírito e respondendo com ênfase, como a defender-se de uma acusação injustificável, perante a mulher das suas preferências:

— Ainda desta vez, Agripa, estás enganado. Minhas relações com Aurélia não têm outro fundamento, além do da pura amizade recíproca, mesmo porque considero muito remota qualquer possibilidade de casamento, na fase atual da minha vida.

Agripa esboçou um sorriso brejeiro, enquanto o senador, compreendendo a situação, acalmava os ânimos, exclamando com bondade:

— Está bem, filhos; mas falaremos depois sobre meu tio. Sinto-me ansioso por abraçar o querido enfermo e não temos tempo a perder.

 

Em breves minutos um grupo de liteiras encaminhava-se para a nobre residência dos Sevérus, onde Flamínio aguardava o amigo, ansiosamente.

Sua fisionomia não acusava mais aquela mobilidade antiga e a empolgante expressão de energia que a caracterizava, mas, em compensação, grande placidez se lhe irradiava dos olhos, sensibilizando a quantos o visitavam nos seus derradeiros dias de lutas terrestres. A expressão do semblante era a do lutador derribado e abatido, exausto de combater as forças misteriosas da morte. Os médicos não tinham a menor esperança de cura, considerando o profundo desequilíbrio físico, aliado à mais forte desorganização do sistema cardíaco. As menores emoções determinavam alterações no seu estado, ensejando as mais amplas apreensões da família.

De vez em quando, os olhos serenos e tranquilos se fixavam detidamente na porta de entrada, como se esperassem alguém com o máximo interesse, até que rumores mais fortes, vindos do vestíbulo, anunciaram ao seu coração que ia cessar uma ausência de quinze anos consecutivos, entre ele e os amigos sempre lembrados.

 

Calpúrnia, igualmente muito abatida, abraçou Lívia e Públio, derramada em lágrimas e apertando Flávia nos braços, como se recebesse uma filha.

Ali mesmo, no vestíbulo, trocaram impressões e falaram das suas saudades intensas e das preocupações numerosas, até que Públio deliberou deixar as duas amigas em franca expansão afetiva e se encaminhou com Agripa a um dos compartimentos próximos do tablino, onde abraçou o grande amigo, com lágrimas de alegria.

Flamínio Sevérus estava magríssimo e suas palavras, por vezes, eram cortadas pela dispneia impressionante, dando a perceber que muito pouco tempo lhe restava de vida.

Sabendo da satisfação do pai na companhia íntima do leal amigo, Agripa retirou-se do vasto aposento, onde as sombras do crepúsculo começavam a penetrar caprichosamente, como se o fizessem no silêncio sagrado das naves religiosas.

Públio Lêntulus se surpreendeu, encontrando o velho companheiro em tal estado. Não supunha reve-lo tão depauperado. Agora, certificava-se de que era a ele, sim, que competia auxiliá-lo com os seus conselhos, levando-lhe as forças orgânicas e espirituais, com as suas exortações amigas e carinhosas.

 

Uma vez a sós, contemplou o amigo e mentor, como se estivesse a mirar uma criança enferma.

Flamínio, por sua vez, olhou-o face a face e, olhos rasos d’água, tomou-lhe as mãos nas suas dando-lhe a entender que recebia ali, naquele momento, um filho muito amado.

Num gesto brando e carinhoso, procurou sentar-se mais comodamente e, amparando-se nos ombros de Lêntulus, murmurou comovidamente ao seu ouvido:

— Públio, aqui já te não recebe o companheiro enérgico e resoluto doutros tempos. Sinto que apenas te esperava para poder entregar a alma aos deuses, tranquilamente, supondo já cumprida a missão que me competia na Terra, com a minha consciência retilínea e os meus honestos pensamentos.

 

Há mais de um ano pressinto o instante irremediável e fatal, que, agora, satisfeito o meu ardente desejo, deve estar avizinhando-se com a velocidade do relâmpago. Não desejava, pois, partir sem te apertar em meus braços, fazendo-te as últimas confidências neste leito de morte…

— Mas, Flamínio — respondeu-lhe o amigo, com serenidade dolorosa —, tudo me autoriza a crer nas tuas melhoras imediatas, e todos nós aguardamos a bênção dos deuses, de maneira que possamos contar com a tua companhia indispensável, por muito tempo ainda, neste mundo.

— Não, meu bom amigo, não te iludas com essas suposições e pensamentos. Nossa alma jamais se engana quando se avizinha das sombras do sepulcro… Não me demorarei em penetrar o mistério da grande noite, mas acredito, firmemente, que os deuses me saudarão com as luzes de suas auroras!…

 

E deixando o olhar, profundo e sereno, divagar pelo aposento, como se as paredes marmorizadas se dilatassem ao infinito, Flamínio Sevérus concentrou-se um minuto em meditações íntimas, continuando a falar, como se desejasse imprimir à conversação um novo rumo:

— Lembras-te daquela noite em que me confiaste os pormenores de um , no auge da tua emotividade dolorosa?

— Oh! se me lembro!… — revidou Públio Lêntulus recordando, de modo inexplicável, não só a palestra remota que resolvera a viagem à Palestina, mas também , no qual testemunhara os mesmos fenômenos intraduzíveis, na noite do . Ao lembrar-se daquela personalidade maravilhosa, estremeceu-lhe o coração, mas tudo fez por evitar ao amigo uma impressão mais forte e dolorosa, acrescentando com aparente serenidade: — Mas, a que vem tua pergunta, se hoje estou mais que convicto, de acordo contigo mesmo, que tudo aquilo não passava de simples impressões de uma fantasia sem importância?

— Fantasia? — replicou Flamínio, como se houvesse encontrado uma nova fórmula da verdade. — Já modifiquei por completo as minhas ideias. A enfermidade tem, igualmente, os seus belos e grandiosos benefícios. Retido no leito há muitos meses, habituei-me a invocar a proteção de Têmis,  de modo que não chegasse a ver nos meus padecimentos mais que o resultado penoso dos meus próprios méritos, perante a incorruptível justiça dos deuses, até que uma noite tive impressões iguais às tuas.

 

Não me recordo de haver guardado qualquer preocupação com a tua narrativa, mas o certo é que, há cerca de dois meses, me senti levado em sonho à mesma época da revolução de Catilina,  e observei a veracidade de todos os fatos que me relataste há dezesseis anos, chegando a ver o teu próprio ascendente, Públio Lêntulus Sura,  que era como que o teu retrato, tal a sua profunda semelhança contigo, mormente agora que te encontras nos teus quarenta e quatro anos, em plena fixação de traços fisionômicos.

Interessante é que me encontrava a teu lado, caminhando contigo na mesma estrada de clamorosas iniquidades. Lembro-me de nos vermos assinando sentenças iníquas e impiedosas, determinando o suplício de muitos dos nossos semelhantes… Todavia, o que mais me atormentava era observar-te a terrível atitude, determinando a cegueira de muitos dos nossos adversários políticos e assistindo, pessoalmente, ao desenrolar das flagelações do ferro em brasa, queimando numerosas pupilas para todo o sempre, aos gritos dolorosos das vítimas indefesas!…

Públio Lêntulus arregalou os olhos, de espanto, participando, igualmente, daquelas recordações que dormitavam fundo na sua alma ensombrada, e replicou, por fim:

— Meu bom amigo, tranquiliza o coração… Semelhantes impressões parecem reflexos de alguma emoção mais forte que perdurasse no âmago da tua memória, por minhas narrativas naquela noite de há tantos anos!…

 

Flamínio Sevérus esboçou, porém, um leve sorriso, como quem compreendia a intenção generosa e consoladora, redarguindo com serena bondade:

— Devo dizer-te, Públio, que esses quadros não me apavoraram e apenas te falo desse complexo de emoções, porque tenho a certeza de que vou partir desta vida e ainda ficarás, talvez por muito tempo, na crosta deste mundo. É possível que as recordações do teu espírito aflorem novamente e, então, quero que aceites a verdade religiosa dos gregos e dos egípcios. Acredito, agora, que temos vidas numerosas, através de corpos diversos. Sinto que meu pobre organismo está prestes a desfazer-se; entretanto, meu pensamento está vivaz como nunca e só em tais circunstâncias presumo entender o grande mistério de nossas existências. Pesa-me, no íntimo, haver praticado o mal no pretérito tenebroso, embora haja decorrido mais de um século sobre os tristes acontecimentos de nossas visões espirituais; todavia, aqui estou diante dos deuses, com a consciência tranquila.

Públio ouvia-o atentamente, entre penalizado e comovido. Procurava dirigir-lhe palavras confortadoras, mas a voz parecia morrer-lhe na garganta, embargada pelas emoções daquele doloroso momento.

 

Flamínio, porém, apertou-o de encontro ao coração, com os olhos rasos de pranto, sussurrando-lhe ao ouvido:

— Meu amigo, não tenhas dúvidas sobre as minhas palavras… Quero crer que estas horas sejam as últimas… No meu escritório estão todos os teus documentos e o memorial dos negócios de ordem material que movimentei em teu nome, na tua ausência e no concernente aos nossos problemas de ordem política e financeira. Não encontrarás dificuldade para catalogar, convenientemente, todos os papéis a que me refiro…

— Mas, Flamínio — replicou Públio, com enérgica serenidade —, acredito que teremos muito tempo para cuidar disso.

Nesse momento, Lívia e a filha, Calpúrnia e os rapazes, acercaram-se do nobre enfermo, trazendo-lhe sorriso amigo e palavras consoladoras.

O doente deu mostras de ânimo e alegria para cada um deles, encarecendo o abatimento de Lívia e a beleza exuberante de Flávia, com palavras meigas e quentes.

 

Ficando a sós, novamente, o generoso senador que a moléstia desfigurara, entre os linhos claros do leito, exclamou com bondade:

— Eis, meu amigo, as borboletas risonhas do amor e da mocidade, que o tempo faz desaparecer, célere, no seu torvelinho de impiedades…

E baixando a voz, como se quisesse transmitir ao amigo uma delicada confidência d’alma, continuou a falar pausadamente:

— Levo comigo, para o túmulo, numerosas preocupações pelos meus pobres filhos. Dei-lhes tudo o que me era possível, em matéria educativa; e, embora reconhecendo que ambos possuem sentimentos generosos e sinceros, noto que os seus corações são vítimas das penosas transições dos tempos que passam, nos quais temos o desgosto de observar os mais aviltantes rebaixamentos da dignidade do lar e da família.

Agripa vem fazendo o possível por se adaptar aos meus conselhos, entregando-se aos labores do Estado; mas Plínio teve a pouca sorte de se deixar seduzir por amigos pérfidos e desleais, que não desejam senão a sua ruína e o arrastam aos maiores desregramentos, nos ambientes suspeitos de nossas mais altas camadas sociais, levando muito longe o seu espírito de aventuras.

 

Ambos me proporcionam os maiores dissabores com os atos que praticam, testemunhando reduzidas noções de responsabilidade individual. Esbanjando grande parte da nossa fortuna própria, não sei que futuro será o da minha pobre Calpúrnia, se os deuses não me permitirem a graça de buscá-la, em breve, no exílio de sua saudade e da sua amargura, depois da minha morte!…

— Mas a mim — respondeu com interesse o interpelado — eles se me afiguram dignos do pai que os deuses lhes concederam, com a sua gentileza generosa e com a fidalguia de suas atitudes.

— Em todo caso, meu amigo, não podes esquecer que tua ausência de Roma foi muito longa e que muitas inovações se processaram nesse período.

Parecemos caminhar vertiginosamente para um nível de absoluta decadência dos nossos costumes familiares, bem como os nossos processos educativos, a meu ver, desmantelados em dolorosa falência!…

 

E como se desejasse trazer de novo a conversação para os assuntos de ordem imediata, da vida prática, acentuou:

— Agora que vejo tua filha esplendente de mocidade e de energia, renovo, intimamente, meus antigos projetos de traze-la para o círculo da nossa comunidade familiar.

Era meu desejo que Plínio a desposasse, mas meu filho mais moço parece inclinado a comprometer-se com a filha de Sálvio, não obstante a oposição de Calpúrnia a esse projeto; não por teu tio, sempre digno e respeitável aos nossos olhos, mas por sua mulher que não parece disposta a abandonar as antigas ideias e iniciativas do passado. Devo, porém, considerar que me resta ainda Agripa, a fim de concretizarmos as minhas futurosas esperanças.

Se puderes, algum dia, não te esqueças desta minha recomendação in extremis!…

— Está bem, Flamínio, mas não te canses. Dá tempo ao tempo, porque não faltará ocasião para discutir o assunto — replicou Públio Lêntulus, comovido.

 

Neste comenos, Agripa entrou na alcova, dirigindo-se ao pai, afetuosamente:

— Meu pai, o mensageiro enviado a Massília  acaba de chegar, trazendo as desejadas informações a respeito de Saul.

— E ele nada nos manda dizer sobre a sua vinda? — perguntou o enfermo, com bondoso interesse.

— Não. O portador apenas comunica que Saul partiu para a Palestina, logo depois de alcançar a consolidação da sua fortuna com os últimos lucros comerciais, acrescentando haver deliberado ir à Judeia,  para rever o pai que reside nas cercanias de Jerusalém.

— Pois sim — disse o enfermo, resignado —, à vista disso, recompensa o mensageiro e não te preocupes mais com os meus anteriores desejos.

 

Ao ouvi-los, Públio deu tratos ao cérebro para se recordar de alguma coisa que não podia definir com precisão. O nome de Saul não lhe era estranho. Com a circunstância de se localizar a residência do pai nas proximidades de Jerusalém, lembrou-se, finalmente, das personagens de suas recordações, com fidelidade absoluta. Rememorou em que fora obrigado a castigar um jovem judeu desse nome, nas cercanias da cidade, remetendo-o às galeras como punição do seu ato irrefletido, e, recordando, igualmente, o instante em que um agricultor israelita fora reclamar a liberdade do prisioneiro, dando-o como seu filho. Experimentando um anseio vago no coração, exclamou intencionalmente:

— Saul? Não é um nome característico da Judeia?

— Sim — respondeu Flamínio com serenidade —, trata-se de um escravo liberto de minha casa. Era , ainda jovem, adquirido por Valério, no mercado, para as bigas dos meninos, ao ínfimo preço de quatro mil sestércios. Tão bem se houve, entretanto, nos afazeres que lhe eram comumente designados, que, após levantar vários prêmios com as suas proezas no Campo de Marte,  destinados aos meus filhos, resolvi conceder-lhe a liberdade, dotando-o com os recursos necessários para viver e promover empreendimentos de sua própria conta. E parece que a mão dos deuses o abençoou no momento preciso, porque Saul é hoje senhor de uma fortuna sólida, com o resultado do seu esforço e trabalho.

Públio Lêntulus silenciou, intimamente aliviado, pois o seu prisioneiro, segundo notícias recebidas pelos prepostos do governo provincial se havia evadido para o lar paterno, fugindo, desse modo, à escravidão humilhante.

 

As horas da noite iam já avançadas.

O visitante lembrou-se, então, de que esperava avistar-se com Flamínio para uma palestra substanciosa e longa, a respeito de múltiplos assuntos, como, por exemplo, a sua penosa situação conjugal, o desaparecimento misterioso do filhinho, o seu encontro com Jesus de Nazaret. Mas, observava que Flamínio estava exausto, sendo justo e necessário adiar suas confidências amargas e penosas.

Foi então que se retirou do aposento para aguardar o dia seguinte, cheio de esperanças consoladoras.

Os dois amigos trocaram longo e significativo olhar no instante daquelas despedidas, que agora pareciam comuns, como as afetuosas saudações diárias doutros tempos.

Confortadoras exortações e promessas amigas foram trocadas, entre expressões de fraternidade e carinho, antes que Calpúrnia reconduzisse as visitas ao vestíbulo, com a sua bondade generosa e acolhedora.

Todavia, nas primeiras horas da manhã seguinte, um mensageiro apressado parava à porta do palacete dos Lêntulus, com a notícia alarmante e dolorosa.

Flamínio Sevérus piorara inesperadamente, sem que os médicos dessem aos seus familiares a menor esperança. Todas as melhoras fictícias haviam desaparecido. Uma força inexplicável lhe desequilibrara a harmonia orgânica, sem que remédio algum lhe paralisasse as aflições angustiosas.

 

Dentro de poucas horas, Públio Lêntulus e os seus encontravam-se de novo na vivenda confortável dos amigos.

Enquanto penetra ele, ansioso, no quarto do velho companheiro de lutas terrestres, Lívia, na intimidade de um apartamento, dirige-se à Calpúrnia nestes termos:

— Minha amiga, já ouviste falar em Jesus de Nazaret?

A orgulhosa matrona, que não perdia a linha de suas vaidades em família, ainda nos momentos das mais angustiosas preocupações, arregalou os olhos, exclamando:

— Porque mo perguntas?

— Porque Jesus — respondeu Lívia, humildemente — é a misericórdia de todos os que sofrem e não posso esquecer-me da sua bondade, agora, que nos vemos em provações tão ásperas e tão dolorosas.

— Suponho, querida Lívia — redarguiu Calpúrnia, gravemente —, que esqueceste todas as recomendações que te fiz antes de partires para a Palestina, porque, pelas tuas advertências, estou deduzindo que aceitaste de boa fé as teorias absurdas da igualdade e da humildade, incompatíveis com as nossas tradições mais vulgares, deixando-te levar nas águas enganosas das crenças errôneas dos escravos.

 

— Mas, não é isso. Refiro-me à fé cristã, que nos anima nas lutas da existência e consola o coração atormentado nas provações mais ríspidas e mais amargosas…

— Essa crença está chegando agora à sede do Império e por sinal que tem encontrado a repulsa geral dos nossos homens mais sensatos e ilustres.

— Eu, porém, conheci Jesus de perto e a sua doutrina é de amor, de fraternidade e de perdão… Conhecendo os teus justos receios por Flamínio, lembrei-me de apelar para o profeta de Nazaret, que, na Galileia,  era a providência de todos os aflitos e de todos os sofredores!

— Ora, minha filha, sabes que a fraternidade e o perdão das faltas não se compadecem, de modo algum, com as nossas ideias de honra, de pátria e de família, e o que mais me admira é a facilidade com que Públio te permitiu tão íntimo contato com as concepções errôneas da Judeia,  a ponto de modificares tua personalidade moral, segundo me deixas entrever.

— Todavia…

 

Ia Lívia esclarecer, da melhor maneira, os seus pontos de vista, com respeito ao assunto, quando Agripa entrou inopinadamente no gabinete, exclamando com a mais forte emoção:

— Minha mãe, venha depressa, muito depressa!… Meu pai parece agonizante!…

Num átimo, ambas penetraram no aposento do moribundo, que tinha os olhos parados como se fora acometido, inesperadamente, de um delíquio irrefreável.

Públio Lêntulus guardava, entre as suas, as mãos do moribundo, mirando-lhe ansiosamente o fundo das pupilas.

Aos poucos, porém, o tórax de Flamínio parecia mover-se de novo aos impulsos de uma respiração profunda e dolorosa. Em seguida, os olhos revelaram forte clarão de vida e consciência, como se a lâmpada do cérebro se houvesse reacendido num movimento derradeiro. Contemplou, em torno, os familiares e amigos bem-amados, que se debruçavam sobre ele, inquietos e ansiosos. Um médico muito amigo, que o assistia invariavelmente, compreendendo a gravidade do momento, retirara-se para o átrio, enquanto em volta do agonizante somente se ouvia a respiração opressa dos nossos conhecidos destas páginas.

 

Flamínio passeou o olhar brilhante e indefinível por todos os rostos, como se procurasse, mais detidamente, a esposa e os filhos, exclamando em frases entrecortadas:

— Calpúrnia, estou… na hora extrema… e dou graças aos deuses… por sentir a consciência… desanuviada e tranquila… Esperar-te-ei na eternidade… um dia… quando Júpiter… houver por bem… chamar-te para meu lado…

A veneranda senhora ocultou o rosto nas mãos, dando expansão às lágrimas, sem conseguir articular palavra.

— Não chores… — continuou ele, como a aproveitar os momentos derradeiros —, a morte… é uma solução… quando a vida… já não tem mais remédio… para as nossas dores…

 

E olhando ambos os filhos, que o contemplavam com ansiedade, de olhos lacrimejantes, tomou a mão do mais moço, murmurando:

— Desejaria… meu Plínio… ver-te feliz… muito feliz… É intenção tua… desposares a filha de Sálvio?…

Plínio compreendeu as alusões paternas naquele momento grave e decisivo, fazendo um leve sinal negativo com a cabeça, ao mesmo tempo que fixava os olhos grandes e ardentes em Flávia Lentúlia, como a indicar ao pai a sua preferência.

O moribundo, por sua vez, com a profunda lucidez espiritual dos que se aproximam da morte, com plena consciência da situação e dos seus deveres, entendeu a atitude silenciosa do filho estremecido e, tomando a mão da jovem, que se inclinava afetuosamente sobre o seu peito, apertou as mãos de ambos de encontro ao coração, murmurando com íntima alegria:

— Isso é mais… uma razão… para que eu parta… tranquilo… Tu, Agripa… hás-de ser também… muito feliz… e tu… meu caro… Públio… — junto de Lívia… haverás de viver…

 

Todavia, um soluço mais forte escapara-se-lhe inopinadamente e a sucessão dos singultos violentos e dolorosos obrigou-o a calar-se, enquanto Calpúrnia se ajoelhava e lhe cobria as mãos de beijos…

Lívia, também genuflexa, olhava para o alto como se desejasse descobrir os seus arcanos. A seus olhos, apresentava-se aquela câmara mortuária repleta de vultos luminosos e de outras sombras indefiníveis, que deslizavam tranquilamente em torno do moribundo. Orou no imo d’alma, rogando a Jesus força e paz, luz e misericórdia para o grande amigo que partia. Nesse instante, lobrigou a radiosa figura de Simeão, rodeada de claridade azulada e resplandecente.

Flamínio agonizava…

À medida que transcorriam os minutos, os olhos se lhe tornavam vítreos e descoloridos. Todo o corpo transudava um suor abundante, que alagava o linho alvíssimo das cobertas.

 

Lívia notou que todas as sombras presentes se haviam também ajoelhado e somente o vulto imponente de Simeão ficara de pé, como se fora uma sentinela divina, colocando as mãos radiosas na fronte abatida do moribundo. Notou, então, que seus lábios se entreabriam para a oração, ao mesmo tempo que doces palavras lhe chegavam, nítidas, aos ouvidos espirituais:

— Pai Nosso que estás no Céu, santificado seja o vosso nome, venha a nós o vosso reino de misericórdia e seja feita a vossa vontade, assim na Terra como nos Céus!… (Mt 6:9)

Nesse instante, Flamínio Sevérus deixava escapar o último suspiro. Marmórea palidez lhe cobriu os traços fisionômicos, ao mesmo tempo que uma infinda serenidade se estampava na sua máscara cadavérica, como se a alma generosa houvesse partido para a mansão dos bem-aventurados e dos justos.

 

Somente Lívia, com a sua crença e a sua fé, pôde conservar-se de ânimo sereno, entre quantos a rodeavam no doloroso transe. Públio Lêntulus, entre lágrimas comovedoras, certificava-se de haver perdido o melhor e o maior dos amigos. Nunca mais a voz de Flamínio lhe falaria das mais belas equações filosóficas, sobre os problemas grandiosos do destino e da dor, nas correntes intermináveis da vida. E, enquanto se abriam as portas do palácio para as homenagens da sociedade romana; e enquanto se celebravam solenes exéquias implorando a proteção dos do morto, seu coração de amigo considerava a realidade dolorosa de se haver rasgado, para sempre, uma das mais belas páginas afetivas, no livro da sua vida, dentro da escuridão espessa e impenetrável dos segredos de um túmulo.




Emmanuel
Francisco Cândido Xavier

Dois amigos

PRIMEIRA PARTE • PRIMEIRA PARTE
Os últimos clarões da tarde haviam caído sobre o casario romano.

 

As águas do Tibre,  ladeando o Aventino,  deixavam retratados os derradeiros reflexos do crepúsculo, enquanto nas ruas estreitas passavam liteiras apressadas, sustidas por escravos musculosos e lépidos.

 

Nuvens pesadas amontoavam-se na atmosfera, anunciando aguaceiros próximos, e as últimas janelas das residências particulares e coletivas fechavam-se com estrépito, ao sopro dos primeiros ventos da noite.

 

 

Entre as construções elegantes e sóbrias, que exibiam mármores preciosos, no sopé da colina, um edifício havia que reclamava a atenção do forasteiro pela singularidade das suas colunas severas e majestosas. Uma vista de olhos ao seu exterior indicava a posição do proprietário, dado o aspecto artístico e imponente.

 

Era, de fato, a residência do senador Públio Lêntulus Cornélius, homem ainda moço, que, à maneira da época, exercia no Senado funções legislativas e judiciais, de acordo com os direitos que lhe competiam, como descendente de antiga família de senadores e cônsules da República.

 

 

O Império, fundado com Augusto,  havia limitado os poderes senatoriais, cujos detentores não exerciam nenhuma influência direta nos assuntos privativos do governo imperial, mas mantivera a hereditariedade dos títulos e dignidades das famílias patrícias, estabelecendo as mais nítidas linhas de separação das classes, na hierarquia social.

 

São dezenove horas de um dia de maio de 31 da nossa era. Públio Lêntulus, em companhia do seu amigo Flamínio Sevérus, reclinado no triclínio, termina o jantar, enquanto Lívia, a esposa, expede ordens domésticas a uma jovem escrava etrusca.

 

O anfitrião era um homem relativamente jovem, aparentando menos de trinta anos de idade, não obstante o seu perfil orgulhoso e austero, aliado à túnica de ampla barra purpúrea, que impunha certo respeito a quantos se lhe aproximavam, contrastando com o amigo que, revestindo a mesma indumentária de senador, deixava entrever idade madura, iluminada de cãs precoces, em penhor de bondade e experiência da vida.

 

 

Deixando a jovem senhora entregue aos cuidados domésticos, ambos se dirigiram ao peristilo, por buscarem um pouco de oxigênio da noite cálida, embora o aspecto ameaçador do firmamento denunciasse chuva iminente.

 

— A verdade, meu caro Públio — exclamava Flamínio, pensativo —, é que te consomes a olhos vistos. Trata-se de uma situação que precisa modificar-se sem perda de tempo. Já recorreste a todos os facultativos no caso de tua filhinha?

 

— Infelizmente — retorquia o patrício com amargura — já lancei mão de todos os recursos ao nosso alcance. Ainda nestes últimos dias, minha pobre Lívia levou-a a distrair-se em nossa vivenda do Tíbur,  procurando um dos melhores médicos da cidade, que afirmou tratar-se de um caso sem remédio na ciência dos nossos dias. O facultativo não chegou a positivar o diagnóstico, certamente em razão da sua comiseração pela doentinha e pelo nosso paternal desespero; mas, segundo nossas observações, acreditamos que o médico de Tíbur presume tratar-se de um caso de lepra.

 

— É uma presunção atrevida e absurda!

 

— Entretanto, se não podemos admitir qualquer dúvida com relação aos nossos antepassados, sabes que Roma está cheia de escravos de todas as regiões do mundo e são eles o instrumento de nossos trabalhos de cada dia.

 

— É verdade… — concordou Flamínio, com amargura.

 

 

Um laivo de perspectivas sombrias transparecia na fronte dos dois amigos, enquanto as primeiras gotas de chuva satisfaziam a sede das roseiras floridas, que enfeitavam as colunas graciosas e claras.

 

— E o pequeno Plínio? — perguntou Públio, como desejoso de proporcionar novo rumo à conversação.

 

— Esse, como sabes, continua sadio, demonstrando ótimas disposições. Calpúrnia atrapalha-se, a cada momento, para satisfazer-lhe os caprichos dos doze anos incompletos. Às vezes, é voluntarioso e rebelde, contrariando as observações do velho Parmênides, só se entregando aos exercícios da ginástica quando muito bem lhe apraz; no entanto, tem grande predileção pelos cavalos. Imagina que, num momento de irreflexão própria da idade, burlando toda a vigilância do irmão, concorreu a uma tirada de bigas realizada nos treinos comuns de um estabelecimento esportivo do Campo de Marte,  obtendo um dos lugares de maior destaque. Quando contemplo meus dois filhos, lembro-me sempre da tua pequena Flávia Lentúlia, porque bem sabes dos meus propósitos para o futuro, no sentido de estreitar os antigos laços que prendem as nossas famílias.

 

 

Públio ouvia o amigo, calado, como se a inveja lhe espicaçasse o coração carinhoso de pai.

 

— Todavia — revidou — apesar de nossos projetos, os áugures não favorecem nossas esperanças, porque a verdade é que minha pobre filha, com todos os nossos cuidados, mais parece uma dessas infelizes criaturinhas atiradas ao Velabro . 

— Contudo, confiemos na magnanimidade dos deuses…

 

— Dos deuses? — repetiu Públio, com mal disfarçado desalento. — A propósito desse recurso imponderável, tenho excogitado mil teorias no cérebro fervilhante. Há tempos, em visita a tua casa, tive ocasião de conhecer mais intimamente o teu velho liberto grego. Parmênides falou-me da sua mocidade e permanência na Índia, dando-me conta das crenças hindus, com as suas coisas misteriosas da alma. Acreditas que cada um de nós possa regressar, depois da morte, ao teatro da vida, em outros corpos?

 

— De modo algum — replicou Flamínio, energicamente. — Parmênides, não obstante o seu caráter precioso, leva muito longe as suas divagações espirituais.

 

— Entretanto, meu amigo, começo a pensar que ele tem razão. Como poderíamos explicar a diversidade da sorte neste mundo? Porque a opulência dos nossos bairros aristocráticos e as misérias do Esquilino?  A fé no poder dos deuses não consegue elucidar esses problemas torturantes. Vendo minha desventurada filhinha com a carne dilacerada e apodrecida, sinto que o teu escravo está com a verdade. Que teria feito a pequena Flávia, nos seus sete anos incompletos para merecer tão horrendo castigo das potências celestiais? Que alegria poderiam encontrar as nossas divindades nos soluços de uma criança e nas lágrimas dolorosas que nos calcinam o coração? Não será mais compreensível e aceitável que tenhamos vindo de longe com as nossas dívidas para com os poderes do Céu?

 

 

Flamínio Sevérus meneou a cabeça, como quem deseja afastar uma dúvida, mas, retomando o seu aspecto habitual, obtemperou com firmeza:

 

— Fazes mal em alimentar semelhantes conjecturas no teu foro íntimo. Nos meus quarenta e cinco anos de existência, não conheço crenças mais preciosas do que as nossas, no culto venerável dos antepassados. É preciso considerares que a diversidade das posições sociais é um problema oriundo da nossa arregimentação política, a única que estabeleceu uma divisão nítida entre os valores e os esforços de cada um; quanto à questão dos sofrimentos, convém lembrar que os deuses podem experimentar nossas virtudes morais, com as maiores ameaças à enfibratura do nosso ânimo, sem que necessitemos adotar os absurdos princípios dos egípcios e dos gregos, princípios, aliás, que já os reduziram ao aniquilamento e ao cativeiro. Já ofereceste algum sacrifício no templo, depois de tão angustiosas dúvidas?

 

— Tenho sacrificado aos deuses, segundo os nossos hábitos — respondeu Públio, compungidamente — e ninguém mais que eu se orgulha das gloriosas virtudes de nossas tradições familiares. Entretanto, minhas observações não surgem tão somente a propósito da filhinha. Há muitos dias, ando torturado com o espantoso enigma de um sonho.

 

— Um sonho? Como pode a fantasia abalar, desse modo, a fibra de um patrício?

 

 

Públio Lêntulus recebeu a pergunta mergulhado em profundas cismas. Seus olhos parados presumiam devorar uma paisagem que o tempo distanciara no transcurso dos anos.

 

A chuva, agora em bátegas pesadas, caía continuadamente, fazendo os mais fortes transbordamentos do implúvio e represando-se na piscina que enfeitava o pátio do peristilo.

 

Os dois amigos haviam-se recolhido a um largo banco de mármore, reclinando-se nos estofos orientais que o forravam, prosseguindo na palestra amistosa.

 

— Sonhos há — prosseguiu Públio — que se distinguem da fantasia, tal a sua expressão de realidade irretorquível.

 

 

Voltava eu de uma reunião no Senado, onde havíamos discutido um problema de profunda delicadeza moral, quando me senti presa de inexplicável abatimento.

 

Recolhi-me cedo e, quando parecia divisar junto de mim a imagem de Têmis,  que guardamos no altar doméstico, considerando as singulares obrigações de quem exerce as funções da justiça, senti que uma força extraordinária me selava as pálpebras cansadas e doloridas. No entanto, via outros lugares, reconhecendo paisagens familiares ao meu espírito, das quais me havia esquecido inteiramente.

 

 

Realidade ou sonho, não o sei dizer, mas vi-me revestido das insígnias de cônsul, ao tempo da República. Parecia-me haver retrocedido à época de Lúcio Sérgius Catilina,  pois o via a meu lado bem como a Cícero,  que se me figuravam duas personificações, do mal e do bem. Sentia-me ligado ao primeiro por laços fortes e indestrutíveis, como se estivesse vivendo a época tenebrosa da sua conspiração contra o Senado, e participando, com ele, da trama ignominiosa que visava a mais íntima organização da República. Prestigiava-lhe as intenções criminosas, aderindo a todos os seus projetos com a minha autoridade administrativa, assumindo a direção de reuniões secretas, onde decretei assassínios nefandos… Num relâmpago, revivi toda a tragédia, sentindo que minhas mãos estavam nodoadas do sangue e das lágrimas dos inocentes. Contemplei, atemorizado, como se estivesse regressando involuntariamente a um pretérito obscuro e doloroso, a rede de infâmias perpetradas com a revolução, em boa hora esmagada pela influência de Cícero; e o detalhe mais terrível é que eu havia assumido um dos papéis mais importantes e salientes na ignomínia… Todos os quadros hediondos do tempo passaram, então, à frente dos meus olhos espantados…

 

 

Todavia, o que mais me humilhava nessas visões do passado culposo, como se a minha personalidade atual se envergonhasse de semelhantes reminiscências, é que me prevalecia da autoridade e do poder para, aproveitando a situação, exercer as mais acerbas vinganças contra inimigos pessoais, contra quem expedia ordens de prisão, sob as mais terríveis acusações. E ao meu coração desalmado não bastava o recolhimento dos inimigos aos calabouços infectos, com a consequente separação dos afetos mais caros e mais doces, da família. Ordenei a execução de muitos, na escuridão da noite, acrescendo a circunstância de que a muitos adversários políticos mandei arrancar os olhos, na minha presença, contemplando-lhes os tormentos com a frieza brutal das vinditas cruéis!… Ai de mim que espalhava a desolação e a desventura em tantas almas, porque, um dia, se lembraram de eliminar o verdugo cruel!

 

 

Depois de toda a série de escândalos que me afastaram do Consulado, senti o término dos meus atos infames e misérrimos, diante de carrascos inflexíveis que me condenaram ao terrível suplício do estrangulamento, experimentando, então, todos os tormentos e angústias da morte…

 

O mais interessante, porém, é que revi o inenarrável instante da minha passagem pelas águas escuras do , quando me parecia haver descido aos lugares sombrios do Averno,  onde não penetram as claridades dos deuses. A grande multidão de vítimas acercou-se, então, de minhalma angustiada e sofredora, reclamando justiça e reparação e rebentando em clamores e soluços, que me pereciam no recôndito do coração.

 

 

Por quanto tempo estive, assim, prisioneiro desse martírio indefinível? Não sei dizê-lo. Apenas me recordo haver lobrigado a figura celeste de Lívia que no meio desse turbilhão de pavores, estendia-me as mãos fúlgidas e carinhosas.

 

Afigurava-me que minha esposa me era familiar de épocas remotíssimas, porque não hesitei um instante em lhe tomar as mãos suaves, que me conduziram a um tribunal, onde se alinhavam figuras estranhas e venerandas. Cãs respeitáveis aureolavam o semblante sereno desses juízes do Céu, emissários dos deuses para julgamento dos homens da Terra. A atmosfera caracterizava-se por estranha leveza, cheia de luzes cariciosas que iluminavam, perante todos os presentes, os meus pensamentos mais secretos.

 

Lívia devia ser o meu anjo-tutelar nesse conselho de magistrados intangíveis, porque sua destra pairava sobre minha cabeça, como a impor-me resignação e serenidade, a fim de ouvir as sentenças supremas.

 

 

Desnecessário será dizer-te do meu espanto e do meu receio, diante desse tribunal que eu desconhecia, quando a figura daquele que me pareceu a sua autoridade central dirigiu-me a palavra, exclamando:

 

— Públio Lêntulus,  a justiça dos deuses, na sua misericórdia, determina tua volta ao turbilhão das lutas do mundo, para que laves as nódoas de tuas culpas nos prantos remissores. Viverás numa época de maravilhosos fulgores espirituais, lutando com todas as situações e dificuldades, não obstante o berço de ouro que te receberá ao renasceres, a fim de que edifiques tua consciência denegrida, nas dores que purificam e regeneram!… Feliz de ti se bem souberes aproveitar a oportunidade bendita da reabilitação pela renúncia e pela humildade… Determinou-se que sejas poderoso e rico, a fim de que, com o teu desprendimento dos caminhos humanos, no instante preciso, possas ser elemento valioso para os teus mentores espirituais. Terás a inteligência e a saúde, a fortuna e a autoridade, como ensanchas à regeneração integral de tua alma, porque chegará um momento em que serás compelido a desprezar todas as riquezas e todos os valores sociais, se bem souberes preparar o coração para a nova senda de amor e humildade, de tolerância e de perdão, que será rasgada, em breves anos, à face escura da Terra!… A vida é um jogo de circunstâncias que todo Espírito deve entrosar para o bem, no mecanismo do seu destino. Aproveita, pois, essas possibilidades que a misericórdia dos deuses coloca ao serviço da tua redenção. Não desprezes o chamamento da verdade, quando soar a hora do testemunho e das renúncias santificadoras… Lívia seguirá contigo pela via dolorosa do aperfeiçoamento, e nela encontrarás o braço amigo e protetor para os dias de provações ríspidas e acerbas. O essencial é a tua firmeza de ânimo no caminho escabroso, purificando tua fé e tuas obras, na reparação do passado delituoso e obscuro!…

 

 

A essa altura, a voz altiva do patrício ia-se tornando angustiada e dolorosa. Amargas comoções íntimas represavam-se-lhe no coração, atormentado por incoercível desalento.

 

Flamínio Sevérus ouvia-o com interesse e atenção, rebuscando o meio mais fácil de lhe desvanecer impressões tão penosas. Sentia ímpetos de desviar-lhe o curso dos pensamentos, arrancando-lhe o espírito daquele mundo de emoções impróprias da sua formação intelectual, apelando para sua educação e para o seu orgulho; mas, ao mesmo tempo, não conseguia sopitar as próprias dúvidas íntimas, em face daquele sonho, cuja nitidez e aspecto de realidade o deixavam aturdido. Compreendia que era necessário primeiro restabelecer sua própria fortaleza de ânimo, entendendo que a lógica da brandura deveria ser o escudo de suas palavras, para esclarecimento do amigo que ele mais considerava irmão.

 

Foi assim que, pousando a mão esguia e branca nos seus ombros, perguntou com amável doçura:

 

— E depois, que mais viste?

 

 

Públio Lêntulus, sentindo-se compreendido, recobrou energias novas e continuou:

 

— Depois das exortações daquele juiz severo e venerando, não mais lobriguei o vulto de Lívia a meu lado, mas outras criaturas graciosas, envolvidas em peplos que me pareciam de neve translúcida, confortando-me o coração com os seus sorrisos acolhedores e bondosos.

 

Atendendo-lhes ao apelo carinhoso, senti que meu Espírito regressava à Terra.

 

Observei Roma, que já não era bem a cidade do meu tempo; um sopro de beleza estava reconstituindo a sua parte antiga, porque notei a existência de novos circos, teatros suntuosos, termas elegantes e palácios encantadores, que meus olhos não haviam conhecido antes.

 

Tive ocasião de ver meu pai entre os seus papiros e pergaminhos, estudando os processos do Senado, tal qual se verifica hoje conosco, e, depois de implorar a bênção dos deuses, no altar doméstico de nossa casa, experimentei uma sensação de angústia no recesso de minhalma. Pareceu-me haver sofrido dolorosa comoção cerebral e fiquei adormentado numa vertigem indefinível.

 

Não sei descrever literalmente o que se passou, mas despertei com febre alta, como se aquela digressão do pensamento, pelos mundos de Morfeu,  me houvesse trazido ao corpo dolorosa sensação de cansaço.

 

 

Ignoro o teu julgamento, em face desta confidência amargurada e penosa, mas desejaria me explicasses algo a respeito.

 

— Explicar-te? — obtemperou Flamínio, tentando imprimir à voz uma tonalidade de convicção enérgica. — Bem sabes do respeito que me inspiram os áugures  do templo, mas, afinal, o que te ocorreu não pode passar, simplesmente, de um sonho, e tu não ignoras como devemos temer a fantasia dentro de nossas perspectivas de homens práticos. Por sonharem excessivamente os atenienses ilustres, transformaram-se em escravos misérrimos, constituindo obrigação de nossa parte o reconhecimento da bondade dos deuses que nos concederam o senso da realidade, necessário às nossas conquistas e triunfos. Seria lícito renunciasses ao amor de ti mesmo e à posição de tua família, tão somente levado pela fantasia?

 

 

Públio deixou que o amigo discorresse abundantemente sobre o assunto, recebendo-lhe as exortações e conselhos, mas, depois, tomando-lhe as mãos generosas, exclamou angustiado:

 

— Meu amigo, eu seria indigno da magnanimidade dos deuses se me deixasse conduzir ao sabor dos acontecimentos. Um simples sonho não me daria margem a tão dolorosas conjeturas, mas a verdade é que ainda te não disse tudo.

 

Flamínio Sevérus franziu o sobrolho, rematando:

 

— Ainda não disseste tudo? Que significam estas afirmativas?

 

No seu íntimo generoso, angustiosa dúvida fora já implantada com a descrição minuciosa daquele sonho impressionante e doloroso, e era com grande esforço que o seu coração fraternal trabalhava por ocultar ao amigo as penosas emoções que intimamente o atormentavam.

 

 

Públio, mudo, tomou-lhe do braço, conduzindo-o às galerias do tablino localizado a um canto do peristilo, nas proximidades do altar doméstico, onde oficiavam os mais puros e mais santos afetos da família.

 

Os dois amigos penetraram o escritório e a sala do arquivo com profundo sinal de respeitoso recolhimento.

 

A um canto, dispunham-se em ordem numerosos pergaminhos e papiros, enquanto, nas galerias, avultavam retratos de cera, de antepassados e avoengos da família.

 

Públio Lêntulus tinha os olhos úmidos e a voz trêmula, como se profundas emoções o dominassem naquelas circunstâncias. Aproximando-se de uma imagem de cera, entre as muitas que ali se enfileiravam, chamou a atenção de Flamínio, com uma simples palavra:

 

— Reconheces?

 

— Sim — respondeu o amigo, estremecendo —, reconheço esta efígie. Trata-se de Públio Lêntulus Sura,  teu bisavô paterno, estrangulado há quase um século, na revolução de Catilina. 

 

— Faz precisamente noventa e quatro anos que o pai de meu avô foi eliminado nessas tremendas circunstâncias — exclamou Públio, com ênfase, como quem está de posse de toda a verdade — Repara bem os traços desta figura, para verificares a semelhança perfeita que existe entre mim e esse longínquo antepassado. Não estaria aqui a chave do meu sonho doloroso?

 

 

O nobre patrício observou a notável identidade de traços fisionômicos daquela efígie morta com o semblante do amigo presente. Suas vacilações atingiram o auge, em face daquelas demonstrações alucinantes. Ia elucidar o assunto, encarecendo a questão da linhagem e da hereditariedade, mas o interlocutor, como se adivinhasse os mínimos detalhes de suas dúvidas, antecipou o julgamento, exclamando:

 

— Eu também participei de todas as hesitações que ferem o teu raciocínio, lutando contra a razão, antes de aceitar a tese de nossas conversações desta noite. A semelhança pela imagem, ainda a mais extrema, é natural e é possível; isto, porém, não me satisfaz plenamente. Expedi, nestes últimos dias, um dos servos de nossa casa, a Taormina,  em cujas adjacências possuímos antiga habitação, onde se guardava o arquivo do extinto, que fiz transportar para aqui.

 

 

E, num movimento de quem estava certo de todos os seus conceitos, revirava nas mãos nervosas vários documentos, exclamando:

 

— Repara estes papiros! São notas de meu bisavô, acerca dos seus projetos no Consulado. Encontrei neste acervo de pergaminhos diversas minutas de sentenças de morte, as quais já havia observado nas minhas digressões do sonho inexplicável… Confronta estas letras! Não se parecem com as minhas? Que desejaríamos mais, além destas provas caligráficas? Há muitos dias, vivo este obscuro dilema no íntimo do coração… Serei eu Públio Lêntulus Sura,  reencarnado?

 

 

Flamínio Sevérus deixou pender a fronte, com indisfarçável inquietação e indizível amargura.

 

Numerosas haviam sido as provas da lucidez e da lógica do amigo. Tudo conspirava para que o seu castelo de explicações desmoronasse, fragorosamente, diante dos fatos consumados, mas procuraria novas forças, a fim de salvaguardar o patrimônio das crenças e tradições dos seus maiores, tentando esclarecer o espírito do companheiro de tantos anos.

 

— Meu amigo — murmurou, abraçando-o —, concordo contigo, em face destes acontecimentos alucinantes. O fato é dos que empolgam o espírito mais frio, mas não podemos arriscar nossas responsabilidades no rumo incerto das primeiras impressões. Se ele nos parece a realidade, existem as realidades imediatas e positivas, aguardando o nosso concurso ativo. Considerando as tuas ponderações e acreditando mesmo na veracidade do fenômeno, não acredito devamos mergulhar o raciocínio nestes assuntos misteriosos e transcendentes. Sou avesso a essas perquirições, certamente em virtude das minhas experiências da vida prática. Concordando, de modo geral, com o teu ponto de vista, recomendo-te não estende-lo além do círculo de nossa intimidade fraternal, mesmo porque, não obstante a propriedade de conceitos com que me dás testemunho da tua lucidez, sinto-te cansado e abatido nesse torvelinho de trabalhos do ambiente doméstico e social.

 

 

Fez uma pausa nas suas observações comovidas, como quem raciocinasse procurando recurso eficaz para remediar a situação, e exclamou com doçura:

 

— Poderias descansar um pouco na Palestina,  levando a família para essa estação de repouso.

 

Existem ali regiões de clima adorável, que operariam, talvez, a cura de tua filhinha, restabelecendo simultaneamente as tuas forças orgânicas. Quem sabe? Esquecerias o tumulto da cidade, regressando mais tarde ao nosso meio, com energias novas. O atual Procurador da Judeia   é nosso amigo. Poderíamos harmonizar vários problemas do nosso interesse e de nossas funções, porquanto não me seria difícil obter do Imperador dispensa dos teus trabalhos no Senado, de modo a que continuasses recebendo os subsídios do Estado, enquanto permanecesses na Judeia.  Que julgas a respeito? Poderias partir tranquilo, pois eu tomaria a meu cargo a direção de todos os teus negócios em Roma, zelando pelos teus interesses e pelas tuas propriedades.

 

 

Públio deixou transparecer no olhar uma chama de esperança, e, como quem estivesse examinando, intimamente, todas as razões favoráveis ou contrárias à execução do projeto, ponderou:

 

— A ideia é providencial e generosa, mas a saúde de Lívia não me autoriza a tomar uma resolução pronta e definitiva.

 

— Porquê?

 

— Esperamos, para breve, o segundo rebento do nosso lar.

 

— E quando esperas esse advento?

 

— Dentro de seis meses.

 

— Interessa-te a viagem depois do inverno próximo?

 

— Sim.

 

— Pois bem: estarás, então, na Judeia, precisamente daqui a um ano.

 

 

Os dois amigos reconheceram que a palestra havia sido longa.

 

Cessara o aguaceiro. O firmamento esplendia de constelações lavadas e límpidas.

 

Iniciara-se já o tráfego das carroças barulhentas, com os gritos pouco amáveis dos condutores, porque na Roma imperial as horas do dia eram reservadas, de modo absoluto, ao tráfego dos palanquins patrícios e ao movimento dos pedestres.

 

Flamínio despediu-se comovidamente do amigo, retomando a liteira suntuosa, com o auxílio dos seus escravos decididos e hercúleos.

 

Públio Lêntulus, tão logo se viu só, encaminhou-se ao terraço onde corriam céleres as brisas da noite alta.

 

À claridade do luar opulento, contemplou o casario romano espalhado pelas colinas sagradas da cidade gloriosa.  Espraiou os olhos na paisagem noturna considerando os problemas profundos da vida e da alma, deixando pender a fronte, entristecido. Incoercível tristeza dominava-lhe o ânimo voluntarioso e sensível, enquanto uma onda de amor-próprio e de orgulho lhe sopitava as lágrimas íntimas do coração atormentado por angustiosos pensamentos.


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Mateus 6:9

Portanto, vós orareis assim: Pai nosso, que estás nos céus, santificado seja o teu nome;

mt 6:9
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